Adalberto Vasconcelos*
Em artigo publicado pela Agência iNFRA, em março deste ano, tratei do instituto da relicitação, instituído pela Medida Provisória 752, de 24 de novembro de 2016, convertida na Lei n.º 13.448, de 5 de junho de 2017.
Tendo em vista algumas controvérsias observadas nos processos de relicitação de ativos do setor aeroportuário e rodoviário, somadas a diversos questionamentos recebidos acerca de sua operacionalidade, entendo oportuno e relevante retornar ao tema para nova reflexão.
O novo instituto foi bastante festejado por trazer solução rápida e amigável para lidar com as parcerias “cujas disposições contratuais não estejam sendo atendidas ou cujos contratados demonstrem incapacidade de adimplir as obrigações contratuais ou financeiras assumidas originalmente” (caput do art. 13 da Lei n.º 13.448/2017), o que, em grande medida, tornou o instrumento mais adequado para pôr termo a contratos de concessão afetados, entre outros, por cenários adversos, como períodos de recessão econômica, em decorrência de fatores macroeconômicos e, mais recentemente, em virtude de força maior, como a pandemia que marcou os anos de 2020 e 2021, com perspectiva de ter seus efeitos alongados ainda indefinidamente.
Entre as inúmeras questões endereçadas por meio da relicitação, está a possibilidade de o novo concessionário pagar diretamente ao concessionário anterior a eventual indenização pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados (inciso I do §1º do art. 15 da Lei n.º 13.448/2017).
Em sua concepção original, eventual indenização devida pelo Poder Público ao concessionário anterior, necessariamente, seria paga pelo novo contratado. Portanto, sem o comprometimento direto de recursos públicos e sem a necessidade de submeter-se aos ritos orçamentários e financeiros a que se sujeita a despesa pública. Em que pese esse racional tenha sido externado na exposição de motivos que acompanhou a Medida Provisória 752/20161, formalmente, no texto da Lei, o pagamento de eventual indenização pelo novo contratado consta como possibilidade, a ser definida nos termos e limites previstos no edital de relicitação, o que abriu inapropriadamente margem para a construção de novas sistemáticas de pagamento de indenização, com elevado nível de incerteza, tanto para o atual quanto para o futuro concessionário. É o caso da relicitação da concessão do aeroporto São Gonçalo do Amarante e da concessão da BR-040/DF/GO/MG.
A minuta do edital de relicitação do aeroporto São Gonçalo do Amarante estabelece que a contribuição inicial, decorrente da oferta realizada no Leilão, “deverá ser utilizada para o pagamento da indenização referente a bens reversíveis não amortizados ou depreciados devida à Concessionária Anterior”. No entanto, tendo em vista a indefinição quanto ao eventual montante a ser indenizado, o referido instrumento dispôs que, no caso de o valor da contribuição inicial não ser suficiente para pagar a indenização devida ao concessionário anterior, os valores remanescentes serão custeados pela União Federal, de acordo com os prazos e procedimentos orçamentários vigentes. Veja-se:
“2.11. A Concessionária se obriga a pagar a Contribuição Inicial conforme as condições indicadas abaixo.
2.11.1. A Contribuição Inicial, decorrente da oferta realizada no Leilão, corresponde a R$ _______________________________________ e deverá ser utilizada para pagamento da indenização referente a bens reversíveis não amortizados ou depreciados devida à Concessionária Anterior na forma do artigo 15, parágrafo 3º, da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017.
(…)
2.11.3. Caso o valor da indenização de que trata o § 3º do artigo 15 da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017, seja inferior ao montante da Contribuição Inicial, a Concessionária deverá realizar o pagamento integral à Concessionária Anterior e recolher o saldo remanescente ao FNAC, conforme as indicações da ANAC, em até 15 (quinze) dias a contar do recebimento das informações de que trata o item 2.11.2.
2.11.4. Caso o valor da indenização de que trata no § 3º do artigo 15 da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017, seja igual ou superior ao valor da Contribuição Inicial, a Concessionária deverá recolher a totalidade da Contribuição Inicial à Concessionária Anterior, cabendo à União Federal a satisfação da diferença remanescente, se houver.
2.11.4.1. A diferença remanescente entre o valor da Contribuição Inicial e o valor devido à Concessionária Anterior na forma prevista no § 3º do artigo 15 da Lei nº 13.448, de 05 de junho de 2017, será custeada pela União Federal, de acordo com os prazos e procedimentos orçamentários vigentes”. (grifos não constantes do original)
Por sua vez, de maneira mais inovadora ainda, ao arrepio do disposto na Lei n.º 13.448/2017, o primeiro termo aditivo ao contrato de concessão da BR-040 S/A, segmentou o valor da indenização em valor reconhecido e valor controverso, com sistemática de pagamento distinta para ambos, senão veja-se:
“(v) VALOR RECONHECIDO: valor reconhecido pela ANTT e que deverá ser pago antes do início do NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO, o qual abarca a indenização pelos bens reversíveis não amortizados ou depreciados (subcláusula 9.1), com os descontos previstos no art. 11 do Decreto nº 9.957/2019, relativos às multas (subcláusula 9.2) e ao valor excedente da receita tarifária (subcláusula 5.4);
(vi) VALOR CONTROVERSO: valor sobre o qual Concessionária e ANTT discordam e que deverá ser pago após decisão arbitral ou advinda de outro mecanismo de resolução de controvérsia; e
(…)
9.3 As Partes convencionam, nos termos do inciso XV do art. 8º do Decreto nº 9.957/2019, que o VALOR RECONHECIDO da indenização será pago pelo FUTURO CONTRATADO, conforme será previsto no edital da relicitação, constituindo condição para o início da vigência do NOVO CONTRATO DE CONCESSÃO, nos termos do art. 15, § 3º, da Lei nº 13.448/2017 e art. 11, § 2º, do Decreto nº 9.957/2019.
9.4. Eventual VALOR CONTROVERSO da indenização e demais haveres e deveres decorrentes de decisão judicial, arbitral ou outro mecanismo privado de resolução de conflitos, em conformidade ao previsto no §2º do art. 11 do Decreto nº 9.957/2019, serão apurados e pagos posteriormente.” (grifos não constantes do original)
Em ambos os casos, a indefinição quanto ao eventual valor de indenização tornou necessária a previsão de responsabilidade da União Federal pelo pagamento de parte das indenizações, portanto, sujeito às regras orçamentárias e financeiras. Considerando a disposição legal que estabelece que o pagamento da indenização devida ao concessionário anterior é condição para o início do novo contrato de parceria (art. 15, §3º, da Lei n.º 13.448/2017), o que se tem, nessa hipótese, é a incerteza quanto ao momento em que se dará o pagamento da indenização ao anterior concessionário e quanto ao início do novo contrato de concessão, além, é claro, do risco fiscal criado para a União.
Não obstante louvável a preocupação do Poder Público em firmar nova parceria para a exploração do ativo e assim dar início aos estudos de viabilidade técnica, econômico-financeira e ambiental, a realização da relicitação do ativo, pendente a necessária conclusão do processo de devolução, mostra-se, no mínimo, prematura.
Conforme mencionado no artigo publicado anteriormente, o processo de relicitação, na realidade, é formado por dois processos distintos, mas conectados entre si: i) o processo referente à devolução do ativo atualmente concedido (processo acessório), e ii) o processo relativo à contratação de novo concessionário para exploração do ativo devolvido (processo principal).
O processo de devolução do ativo concedido, ainda que acessório ao processo de contratação de novo concessionário, contém elemento essencial ao adequado desfecho de ambos os processos, qual seja, o valor de “indenizações eventualmente devidas ao contratado pelos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados.” (art. 17, §1º, inciso VII, da Lei n.º 13.448/2017).
A conexão entre ambos os processos, conforme visto, é tão estreita que o pagamento da indenização ao concessionário anterior é condição para o início do novo contrato de parceria. Logo, mesmo que tenha havido a seleção de novo concessionário e firmado o contrato, a nova avença não produzirá eficácia até que a indenização devida ao concessionário anterior seja totalmente paga. De forma simétrica, não pode ocorrer a devolução do ativo, pelo concessionário anterior, antes de resolvida a questão da indenização.
Nesse sentido, ainda que seja possível o início do processo de relicitação do ativo concomitantemente ao seu processo de devolução, não há como concluí-lo sem a determinação do valor a ser indenizado ao concessionário anterior e seu efetivo pagamento.
Vale repisar que a relicitação é processo de devolução amigável do ativo, conduzida por meio de acordo entre as partes, em que o concessionário anterior adere, de forma irrevogável e irretratável (inciso I do art.15 da Lei n.º 13.448/2017), sem saber o valor a ser recebido de indenização, tendo, no entanto, a garantia de que, caso não concorde com o valor, a controvérsia será dirimida por meio de arbitragem (inciso III do art.15 da Lei n.º 13.448/2017) e somente deixará o ativo após o pagamento total da indenização, condição para início do novo contrato de parceria (§3º do artigo 15 da Lei n.º 13.448/2017).
Com efeito, a Lei n.º 13.448/2017 não segrega o valor da indenização em “valor reconhecido” e “valor controverso”, ou seja, a indenização total dos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados é condição legal e necessária para o início do novo contrato de parceria (§3º do art. 15 da Lei n.º 13.448/2017), não podendo ser modificado esse requisito essencial para a relicitação por norma infralegal. Em prosperar a indevida sistemática de “pagamento parcelado” da indenização ao anterior concessionário, como quer o Poder Público, estar-se-á diante de risco moral (moral hazard) inverso, ocasionando insegurança jurídica e imprevisibilidade na implementação do instituto da relicitação, o que certamente afetará a credibilidade do referido processo e afastará investidores estrangeiros para os futuros certames licitatórios de ativos de infraestrutura.
Ademais, é cristalino que o levantamento dos valores de indenização ao concessionário anterior compõe o estudo técnico necessário à relicitação, nos termos previsto no inciso VII do art. 17 da Lei n.º 13.448/2017, in verbis:
“Art. 17. O órgão ou a entidade competente promoverá o estudo técnico necessário de forma precisa, clara e suficiente para subsidiar a relicitação dos contratos de parceria, visando a assegurar sua viabilidade econômico-financeira e operacional.
§ 1º Sem prejuízo de outros elementos fixados na regulamentação do órgão ou da entidade competente, deverão constar do estudo técnico de que trata o caput deste artigo:
(…)
VII – o levantamento de indenizações eventualmente devidas ao contratado pelos investimentos em bens reversíveis vinculados ao contrato de parceria realizados e não amortizados ou depreciados.” (grifos não constantes do original)
Dessa forma, indubitavelmente, é necessário o levantamento total do valor da indenização para servir de input para o estudo técnico requerido pelo citado artigo 17. Ainda, de acordo com o §3º do art. 11 do Decreto n.º 9.957/20192, é necessária a certificação do cálculo da indenização por empresa de auditoria independente de que trata o parágrafo único do art. 7º do aludido dispositivo. Assim, para concluir os estudos necessários a promover nova licitação do ativo devolvido, deve-se ter o levantamento conclusivo do valor das indenizações eventualmente devidas, pelo Poder Concedente, ao anterior concessionário, incluindo o resultado de eventuais controversas a serem dirimidas em sede de arbitragem.
Considerando que, por meio do instituto da relicitação, o concessionário anterior é obrigado a assegurar a continuidade da prestação do serviço (caput do art. 13 da Lei n.º 13.448/2017), a condução do processo de relicitação apartado do processo de devolução do ativo, a princípio, não traz maiores benefícios para o Poder Público, muito menos se considerada a percepção de risco pelos possíveis interessados na devolução de ativos por meio do instituto da relicitação e pelos potenciais novos licitantes.
Com efeito, observa-se que a desvinculação do processo de relicitação do ativo do processo de devolução, nos termos ora regulamentados pelo Poder Público, desnatura o próprio instituto da relicitação em si, acarretando insegurança jurídica e imprevisibilidade ao processo, e, a meu ver, transforma a relicitação do ativo, em verdade, em precipitada nova licitação.