Marisa Wanzeller e Geraldo Campos Jr., da Agência iNFRA
O segmento de energia eólica passou por um “inferno astral” em 2024, na avaliação da presidente da Abeeólica (Associação Brasileira de Energia Eólica e Novas Tecnologias), Elbia Gannoum, principalmente por conta do curtailment (cortes na produção de energia impostos aos geradores que provocam prejuízos). “Foi o pior ano da eólica para nós”, disse a executiva, em entrevista à Agência iNFRA.
Para Elbia, a solução para o problema seria a “a ANEEL [Agência Nacional de Energia Elétrica] cumprir a lei” e garantir o ressarcimento dos cortes aos agentes. “É o que está na lei de 2004, que tanto o ambiente de contratação livre quanto o ambiente de contratação regulada sejam tratados do mesmo jeito, porque corte de geração é corte de geração”, disse. “Essa inovação da ANEEL foi absurda, na nossa perspectiva”, completou a executiva.
Se os geradores precificarem antecipadamente o risco do curtailment, a conta acabará recaindo sobre o consumidor ainda mais cara, explicou ela: “Se eu vou fazer uma usina eólica, mas não tenho garantia se eu vou gerar e ter receita, vou precificar ex-ante esse eventual corte de geração que pode acontecer e pode não acontecer, mas eu já vou pôr ele no preço e alguém vai pagar essa conta. Esse alguém é o consumidor”.
A presidente da Abeeólica também falou sobre a sanção do Marco Legal das Eólicas Offshore (Lei 15.097/2025), e sobre as expectativas para o primeiro leilão de cessão de uso do mar, que pode vir a ocorrer no segundo semestre de 2025. Além disso, apresentou uma perspectiva de retomada de crescimento da indústria eólica no Brasil no médio prazo, após enfrentar uma crise que surgiu na segunda metade de 2023 e eclodiu no último ano. Leia a seguir os principais trechos da entrevista:
Agência iNFRA – O presidente Lula sancionou esse mês o Marco Legal das Eólicas Offshore. Como os investidores estão reagindo a esse momento e quais são as perspectivas?
Elbia Gannoum – Até ano passado eu conversava muito com os investidores porque havia uma percepção de um certo atraso na aprovação da lei. Eu sempre dizia que aprovar uma nova lei é mesmo muito demorado.
Agora, foi muito importante ter sido aprovada ali, porque eu entendia como um limite final para o Brasil. Devido ao contexto internacional, o Brasil precisava se posicionar rapidamente. O mundo todo está fazendo, os recursos são escassos, o capital se direciona para outros mercados. Realmente já não teria mais como segurar os investidores aqui no Brasil.
A demora foi por conta dos “jabutis”(artigos estranhos à lei)”?
A gente sabe que um dos fatores da demora foi essa negociação associada aos jabutis, os artigos estranhos à lei. Que não é de nossa gerência, que também envolve uma complexidade do Congresso muito grande. Mas mesmo com os jabutis, a gente comemorou muito a aprovação. É claro, a gente gostaria que o PL saísse limpo disso, ficasse longe da discussão de jabutis, mas não foi possível.
Eu saí muito feliz do ano de 2024, mas agora vêm outras questões, como a regulamentação e preparação do leilão. Mas eu estou começando o ano de 2025 muito, muito animada com tudo que a gente tem pela frente.
Quando você fala em regulamentação, quais são os próximos passos?
O passo mais fundamental com relação às eólicas offshore é preparar o chamado leilão de cessão de uso do mar. Aliás, o projeto de lei só existiu e a lei só existe porque é necessária uma aprovação legal dada à Constituição para ceder o mar, que é um bem da União, para exploração de recursos energéticos. E aí não é só eólica, pode ser solar, pode ser outras fontes, porque essa autorização não existia.
Nós precisamos fazer um ajuste no decreto que já existe, talvez um novo decreto, aí o MME [Ministério de Minas e Energia] que é responsável. Um decreto regulamentando essa lei, e portarias regulamentando o decreto, preparando o leilão de cessão de uso do mar.
Quando seria esse primeiro leilão?
Eu trabalho, o setor vai trabalhar, e eu tenho visto isso por parte da EPE [Empresa de Pesquisa Energética], do MME também, para fazer o primeiro leilão de cessão de uso do mar talvez no segundo semestre, de preferência ali próximo a COP 30 (novembro), que vai ser no Brasil.
E quais as expectativas de primeiros investimentos no segmento offshore? Para quando seria isso?
Um leilão já é um investimento, e depois tem os investimentos de estudos para a licença e depois o investimento na construção efetiva do projeto. A construção efetiva não se dá antes de 2028, porque são de dois a três anos para se conseguir a licença.
O que eu acho mais interessante nessas situações é você criar ali uma disposição marginal a investir. Você já deslancha uma cadeia de investimentos que vem pela frente. E em um cenário muito diferente: em 2028 a gente vai ter outro Brasil, outro mundo.
Hoje a situação do mercado para a contratação não está boa. Tem sobra de energia, PLD [Preço de Liquidação das Diferenças] baixo. Mas em um cenário lá na frente em que você está falando de descarbonização da economia, data center, retomada do crescimento econômico, aceleração da transição energética, é outro mundo.
Existem quantos projetos no Ibama esperando licença para projetos offshore? Houve desistências ao longo da tramitação PL no Congresso?
Não, na realidade, os projetos estão lá. Ali tem mais de 200 GW [gigawatts]. Imagina se o Brasil vai fazer 200 GW de offshore agora, não tem nem como. É uma sinalização. E a aprovação da lei traz um novo ânimo ao mercado.
Eu, efetivamente, não me preocupo muito com isso. Eu me preocupo mais com a organização desse leilão de cessão, se o ministério vai fazer uma cessão independente, ou se vai fazer uma cessão planejada. Acho que os primeiros leilões terão que ser cessão independente.
O presidente Lula vetou a maioria dos jabutis do Marco Legal das Eólicas Offshore, mas agora o Congresso precisa apreciar esses vetos. Na visão da Abeeólica, é importante a manutenção dos vetos?
Na realidade, manter um veto é sempre importante, falando do ponto de vista institucional, falando do ponto de vista de país. E aí eu não estou falando mais de energia, estou falando de instituições, a relação entre poderes Executivo e Legislativo precisa ser a mais afinada possível. Qualquer tentativa de derrubar vetos, institucionalmente não é bacana. Esse já é um primeiro ponto.
Do ponto de vista de setor, eu noto que a gente precisa pensar num setor descarbonizado.
Partir para a transição energética. E a gente sabe que esses jabutis, eles estão indo na contramão da transição.
Nós, da associação, nos juntamos com outras associações, [porque] além de impactos tarifários, [tem] a questão da descarbonização da economia. E outra coisa, aquela obrigatoriedade de contratação de térmica [prevista em um dos jabutis vetados], tira todo o mercado de renováveis pela frente.
Eu acho que o setor fez um papel muitíssimo importante de conseguir esses vetos e é mérito nosso. Nós vamos continuar trabalhando para convencer o Legislativo de que é importante que esses vetos sejam mantidos. Mas a nossa ingerência sobre o processo é bem baixa.
Há outro assunto muito falado, o curtailment (corte forçado de geração de energia). No fim de 2024 a ANEEL encerrou uma Consulta Pública e abriu outra, e há uma decisão judicial endereçando soluções sobre isso. Sobre a parte que está na ANEEL, o que vocês estão esperando na condução disso em 2025? E sobre essa liminar, como está isso hoje?
Na realidade, é até importante separar os temas, embora o tema geral seja curtailment. O que a ANEEL fez na consulta pública é diferente do que a gente conseguiu lá no juízo, que é o seguinte: quando a ANEEL fez a regulamentação do curtailment, lá atrás, o escopo do ressarcimento foi bem menor do que aquilo que nós agentes entendemos que seja razoável ser pago.
O que está na lei do setor, que é de 2004, sobre constrained-off ou curtailment, é que o agente não tem gerência sobre a operação do sistema e, portanto, quando ele for determinado a parar de gerar, ele tem que ser ressarcido. Ponto. Acabou. Esse é o dado.
E quando a ANEEL foi regulamentar, ela inovou a lei. Na nossa visão, a ANEEL não cumpriu a lei. Ela fez uma regulamentação que trouxe alguns recortes, criou alguns conceitos ali, e que fere a lei e nossos interesses em termos de ressarcimento. Então, diante dessa decisão, dessa regulação geral que a ANEEL fez, nós entramos com o processo administrativo e na sequência com o processo judicial.
Na justiça a gente conseguiu uma liminar, essa liminar caiu, a própria ANEEL derrubou, e depois nós restabelecemos a liminar. E a ANEEL entrou agora com recurso. É uma briga na justiça do escopo do curtailment. Do espectro mais amplo do curtailment.
E o que está em consulta pública já é detalhamento do escopo pela ANEEL. Agora, existe uma discussão maior, que é o amplo escopo do pagamento do curtailment. Então, são questões distintas.
E para vocês, qual é a solução desse problema?
A solução desse problema é a ANEEL cumprir a lei. É o que está na lei de 2004, que tanto o ambiente de contratação livre quanto o ambiente de contratação regulada sejam tratados do mesmo jeito, porque corte de geração é corte de geração, não interessa se em mercado livre. Essa inovação da ANEEL foi absurda, na nossa perspectiva.
A ANEEL tem que tratar os dois ambientes da mesma forma. Não existe um corte de geração para uma coisa e um corte para outra. Corte de geração é corte de geração.
Esse é o nosso ponto, essas classificações que a ANEEL faz, que é curtailment por segurança, curtailment por não sei das quantas, isso aí não faz sentido. Cortou, cortou.
Essa é a nossa grande briga, a tal da classificação do corte.
Vamos supor que você faz um corte de geração por segurança. Mas foi [devido a] um atraso de linha. E qual a gerência que eu, gerador, tenho numa linha que a ANEEL licitou e que está atrasada? Porque que eu, gerador, vou ter que pagar por isso?
Um dos pontos levantados é que se ressarcir tudo, o custo vai para o consumidor. Como vocês respondem isso?
Ora, o Brasil quando optou por um Sistema Interligado Nacional, lá atrás, optou por um sistema de otimização para levar a energia elétrica ao consumidor ao menor custo e com a maior segurança possível. É por isso que 99% do nosso sistema é interligado.
E quando a gente olha a experiência de outros locais, Estados Unidos e a própria Europa, a gente sabe que o Brasil acertou muito bem ao escolher esse modelo otimizado. É por isso que a gente tem a matriz elétrica mais limpa do mundo e, do ponto de vista do suprimento, é a energia mais barata do mundo.
Então, essa otimização, ela faz muito sentido para o Brasil. Agora, não dá para você suprir energia para o consumidor com zero risco. Você tem que aceitar algum grau de risco. Se você quer um sistema mais robusto, vai garantir a energia a qualquer custo. E se você quer um sistema mais barato, vai ter que abrir mão da segurança.
O Brasil já tem lições muito importantes de que esse sistema interligado, otimizado, funciona bem, só que ele vai ter um custo. E esse custo, ele tem que ser dividido no sistema, com os consumidores.
Então, eu entendo, acho muito razoável que seja o consumidor que pague pela segurança. Se o operador do sistema mandou desligar, ele mandou desligar por segurança. E quem é responsável por pagar a conta da segurança? É o mesmo cara que tem a garantia de que a energia que está chegando na casa dele. E esse cara é o consumidor.
Imagina se você coloca esse risco de não gerar energia na mão do gerador. É um risco que o gerador vai calcular ex-ante. Se eu vou fazer uma usina eólica, mas não tenho garantia se eu vou gerar e ter receita, vou precificar ex-ante esse eventual corte de geração que pode acontecer e pode não acontecer, mas eu já vou pôr ele no preço e alguém vai pagar essa conta. Esse alguém é sempre o consumidor que paga a conta.
Agora, quando eu adoto um sistema em que você vai pagar o risco ex-post, depois que ele aconteceu, depois que o sinistro aconteceu, você vai pagar efetivamente um problema que aconteceu e não o problema esperado. Então não tem muita racionalidade econômica você alocar esse risco no gerador.
A gente discute muito a respeito do modelo do setor em alocar adequadamente os riscos e os custos. Neste caso de geração de atendimento de sistema, quando você coloca o risco no consumidor, você está garantindo a segurança do sistema para ele, e vai cobrar se eventualmente acontecer o sinistro.
Quando você joga no colo do gerador, ele vai precificar antecipadamente. Nessa conta, vai ficar mais caro para o consumidor.
No último ano também se falou muito sobre a crise das eólicas. Em que pé está essa situação? Há perspectiva de retomada de crescimento?
A crise das eólicas é um ponto muito relevante e nós começamos a perceber sinais de crise já ali na segunda metade de 2023, foi agravando e aí em 2024 eclodiu essa crise. Ela está muito associada à sustentação da cadeia de produção da indústria eólica brasileira, uma vez que a eólica é 80% nacional.
Nós construímos toda uma cadeia de suprimento que nós precisamos sustentá-la ao longo do tempo. Caso contrário, a gente perde essa cadeia de produção, e o Brasil é um país que precisa se industrializar e está muito empenhado em seguir esse processo de industrialização.
O primeiro sinal foi associado a uma queda natural do mercado, já percebendo de 2022 para cá, pelo movimento da economia brasileira crescendo pouco há muitos anos, isso em algum momento impacta na contratação de energia, tanto que a gente não teve mais leilões robustos como tínhamos no passado.
Outro fator muito importante é aquele efeito pêndulo. Em 2021 houve um grande problema de suprimento, já em 2022 veio água pra caramba, aí o PLD foi lá embaixo. Já que o mercado regulado não contrata tanto, a nossa dependência do mercado livre é muito grande. E o mercado livre, diante de PLD baixo, ele não contrata, ele arbitra no mercado.
E um terceiro fator, que talvez seja o mais grave dele, foi a questão da GD [Geração Distribuída] solar. Aquilo que poderia ter de mercado, a GD absorveu, tendo em vista os subsídios muito pesados para a GD solar.
Então esses fatores somados nos trouxeram a conclusão em 2023 e 2024 que a cadeia de produção estava em risco muito grave e levamos isso inclusive ao governo federal. O próprio presidente Lula se interessou para entender, porque afinal de contas é uma indústria que nós construímos e temos muito orgulho dela.
Qual seria a solução para a retomada do segmento, na sua avaliação?
Naquela ocasião, a gente não tinha muitas soluções de curto prazo. Uma crise com essa envergadura, com essa profundidade, você tem poucas soluções de curto prazo. Mas nós colocamos algumas ali importantes, pensando em resultados mais de médio e longo prazo, mas algumas de curto prazo.
Por exemplo, as questões de financiamento. Uma das propostas foi que a gente melhorasse as condições do Fundo Clima. E nós conseguimos essa mudança do Fundo Clima em dezembro. Uma resolução do CMN (Conselho Monetário Nacional) com uma taxa mais adequada. O governo mostrou uma disposição muito grande. Nós falamos ali da importância de fazer as leis, como Mercado de Carbono, e isso aconteceu também, mas que traz resultados mais de médio e longo prazo.
E no meio do caminho veio o curtailment. Foi um inferno astral 2024 nessa perspectiva de mercado. De um lado, foi bom pela aprovação das leis, mas foi o pior ano da eólica para nós.
E as medidas mais de médio prazo são a retomada do mercado brasileiro, a contratação de hidrogênio, daí a importância de aprovar o PL de hidrogênio verde, os data centers, inteligência artificial, que são coisas que vão vir mais a médio prazo.
Estamos sobrevivendo à crise, tentando ficar com o nariz de fora, porque a gente sabe que a economia brasileira vai voltar a crescer, aliás desde 2023 ela está voltando a crescer. A gente sabe que o Brasil é um grande mercado que tem um grande potencial e essas mudanças estruturais podem trazer aí uma boa retomada.
Agora, vai ser uma retomada sustentada no prazo, nessa lógica de transição energética, nessa lógica do Brasil ser um grande provedor de recursos renováveis para a economia global diante das mudanças climáticas e da necessária transição energética.
E quais são as expectativas para o setor e para o segmento neste ano?
A nossa perspectiva para 2025, e eu estou começando o ano muito animada, é que a gente tem muita lei para regulamentar, tem muito trabalho justamente para criar essa base regulatória para atrair investimentos.
Começamos o ano já com essa perspectiva melhor de fundo clima e de que vai ser um ano de preparação para uma retomada do crescimento da energia renovável no Brasil. Mas não vai ser efetivamente um ano de crescimento ainda porque o crescimento não vem da noite para o dia, porque a gente está falando de infraestrutura, um acontecimento hoje é resultado de uma decisão de dois anos atrás.
Então, uma retomada efetiva, assim, de você ver número dos resultados, só entre 2027 e 2028. Mas é a vida. A gente está falando de infraestrutura, de um país em desenvolvimento e o Brasil precisa fazer umas lições de casa importantes do ponto de vista macroeconômico para retomar os investimentos também.