Dimmi Amora, da Agência iNFRA
O engenheiro Davi Barreto, formado pelo ITA (Instituto Tecnológico da Aeronáutica), terá um desafio que ele prefere sintetizar com uma metáfora rodoviária.
“Será trocar o pneu com o carro andando”, disse o novo diretor da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), em sua primeira entrevista após ser nomeado para mandato até 2023, em relação às mudanças que acha necessárias para que a agência possa se livrar dos passivos regulatórios e avançar em novas concessões no setor de transportes.
Mestre em Regulação pela UnB (Universidade de Brasília), Barreto defendeu que, para ser mais eficiente, será necessário para a agência atuar de forma diferente do que vem fazendo e assim dar conta de executar o agressivo calendário de licitações que o governo federal tem para o setor, especialmente o rodoviário.
“Se a gente usar o mesmo modus operandi, acho que vai ser um desafio muito grande e complicado. Tem que mudar a forma de trabalhar. Não dá para a agência ficar atolada em revisões ordinárias anuais, analisando obras e obras todos os dias”, apontou o novo diretor.
Aos 40 anos, Davi Barreto deixou o cargo de conselheiro substituto do TCE (Tribunal de Contas do Estado) do Ceará, ao qual chegou por concurso após deixar o cargo de auditor do TCU (Tribunal de Contas da União), para assumir uma diretoria na agência onde vai ganhar menos e, provavelmente, trabalhar mais. Rejeitando qualquer rótulo de heroísmo, ele afirma que vê a atitude como normal.
“A vida é muito dinâmica para a gente ficar preso a um cargo. Acho que temos que estar mais atrelados a uma missão, a um objetivo, àquilo que te faz mais feliz para acordar bem de manhã”, disse o novo diretor nesta conversa com a Agência iNFRA.
Qual seu diagnóstico sobre a agência, que você percebeu no período em que se preparava para a sabatina no Senado?
Conversei muito com as pessoas nesse período. De uma forma geral, quando se olha em perspectiva de longo prazo, é lógico que a agência evoluiu. Se olhar nos últimos 10 anos, tem novas metodologias, trabalha com análise de impacto regulatório, audiências públicas, melhorou a transparência. Em vários aspectos de governança regulatória, a agência evoluiu bastante. Mas temos desafios. Na minha opinião, talvez o principal desafio da ANTT seja compatibilizar um passivo muito grande de gestão contratual, principalmente em rodovias. Há muitas inexecuções, que é a regra dos contratos, ou de boa parte deles. Os relatórios da agência e do TCU sempre apontaram isso. Seja por dificuldades atribuídas às concessionárias ou não atribuídas a elas, como os problemas de licenciamento.
E como avançar?
O modo como os contratos são estruturados e geridos vem levando a uma inexecução maior que o esperado. Temos que dar uma solução para esses passivos e fazer esses contratos acontecerem de fato. E, ao mesmo tempo, se preparar para o futuro. Será trocar o pneu com o carro andando. O que vai fazer com a 3ª Etapa? Vai caducar? Vai relicitar? Quais vão ser os parâmetros para isso? Cabe a decisão final ao ministério, mas a agência vai ser parte importante no processo de fazer a contabilidade, dar as soluções regulatórias. E, ao mesmo tempo, tem um pipeline agressivo de projetos em rodovias e em ferrovias também e a agência tem que pensar em melhores contratos. Os contratos que persistem até hoje, apesar de terem melhorado ao longo do tempo, eles ainda são imperfeitos. Ainda se pode fazer muita coisa.
Você está falando apenas dos contratos de rodovias?
De ferrovias também. São contratos da década de 1990 que não incentivam o aumento de desempenho, o investimento na malha. Tem que se repensar esses contratos.
O secretário do PPI vem afirmando que os contratos de rodovias continuam sendo direcionados para obras e não para serviços. É possível estabelecer padrões de desempenho exclusivamente ou pelo menos avançar com isso?
Exclusivamente parece um passo muito ousado por agora. Mas avançar com certeza. Por que não trabalhar com padrões de desempenho, índice de qualidade e deixar que a concessionária pense e implemente as diferentes intervenções de infraestrutura, como duplicações, contornos, trevos, retornos, para atingir esse padrão? Inverter um pouco. Obviamente que algumas intervenções vão ter que estar no PER (Programa de Exploração de Rodovias) e tem que colocar de alguma forma a obrigação. Mas tem que reverter um pouquinho essa regra. A lógica de fiscalizar obra torna a atividade regulatória extremamente difícil, diria ineficaz. Chegam diversos projetos executivos para a agência analisar, discutir se é viável ou não, se o preço é adequado ou não. A assimetria é muito grande. Tem que inverter essa lógica. Aeroportos já fazem isso. É uma infraestrutura diferente. Tem algumas obras que são obrigatórias. Mas a lógica é muito mais sobre a qualidade de serviço, com uma obra referencial, em que você vai entregar a qualidade. Se uma rodovia está saturada em um trecho tal, talvez melhor que dizer duplica ou faz um contorno, é exigir que aquele trecho vá para um padrão melhor de qualidade e deixar que a solução vá para a concessionária. O norte é esse.
Haverá uma oportunidade agora que são vários contratos chegando para serem feitos. Com a estrutura da ANTT, é possível dar o andamento que está previsto ou desejado pelo governo?
Se a gente usar o mesmo modus operandi acho que vai ser um desafio muito grande e complicado. Tem que mudar a forma de trabalhar. Não dá para a agência ficar atolada em revisões ordinárias anuais, analisando obras e obras todos os dias. A agência teve um ciclo de analisar obras, fazer revisões e reajustes em períodos curtos que tornam o trabalho extremamente demandante para o corpo técnico. Ele está atolado em discutir revisões, reajustes, novas obras. Muita coisa no varejo. Tem que inverter a lógica. Da forma como está, o resultado é esse. O quadro que tem de inexecuções obviamente não é devido a falta de competência ou má vontade do corpo técnico e diretivo. Pelo contrário, é um corpo técnico motivado, capacitado, com muita gente boa, com mestrado, doutorado na área, que conhece do setor. Agora, a metodologia de trabalho gera esses gargalos que a gente observa.
Houve recentemente uma decisão do TCU sobre novas concessões de rodovias que foi comemorada devido à conciliação que daria mais velocidade às concessões. Mas ainda parece na visão de analistas muito focada no modelo antigo. Criar o modelo novo vai iniciar um novo diálogo no TCU?
Convivi muito tempo com esse diálogo e acho muito importante. Geralmente, em regra, o TCU aponta os pontos que de fato têm problemas. As obras não executadas, mudança ou incremento de tira e põe de obras em contrato, e isso gera inexecução, aumento de pedágio, o usuário não entende. Os problemas levantados pelo TCU são consenso com a agência. A discussão é como resolver. O papel do TCU é apontar os problemas e talvez sugerir formas, dada a visão que ele tem de outros setores, e possíveis encaminhamentos. E a agência tem que trazer as soluções. Temos um problema com partes relacionadas. É natural, a concessionária tem uma construtora, tem os ganhos de escala com isso. Mas existem os riscos inerentes com partes relacionadas. Qual a solução regulatória para isso? Fala-se agora em modelo chileno, processo competitivo, é uma solução regulatória. Não acho que uma nova solução regulatória, novo modo de ver os contratos é panaceia, não é mudar tudo de uma hora para outra, ou que isso vai gerar desgaste ou dificuldade com o TCU. Pelo contrário. Acho que eles esperam isso. Criatividade, inovação, modelos robustos e efetivos para resolver um problema concreto. Fazer mais do mesmo… Acho que é esse ponto que o TCU bate. Do jeito que está não dá para ficar. Temos que evoluir. A forma é a agência que vai falar. Regulação é dinâmica, os contratos vão amadurecendo. Lógico que não dá para ficar mudando a regra do jogo toda hora. Mas as evoluções incrementais fazem parte do jogo e acho que o TCU é aberto em relação a isso.
O ministro Bruno Dantas tem insistido numa tese de que há um problema reputacional no setor e com falta de governança na agência o controle tem que ser mais apertado. Como dá para mudar isso?
É importante que a agência seja reconhecida como uma entidade autônoma, independente e técnica. Tão importante quanto ser, ela tem que ser percebida. É uma lógica básica de controle. Qualquer controlador, além de ser autônomo, independente e técnico, ele tem que ser reconhecido assim. Acho que o principal caminho da ANTT e de todas as entidades reguladoras é investir nos mecanismos de governança. O PL das Agências foi uma excelente notícia. As agências têm que investir em mecanismos que garantam comportamento íntegro, adequado às normas. Não é questão de pessoas ou empresas. O ponto não é esse, com toda a honestidade. É questão de processo. Temos que ter instituições que vão além das pessoas e que as regras de governança interna delas façam com que elas sejam percebidas como entidades capazes de entregar a solução. O TCU traz muito isso. Fez um mapa de riscos de exposição à corrupção em diferentes órgãos públicos. Tem coisas interessantes que a agência pode absorver. Ter um código de ética mais estruturado, olhar recomendações da OCDE para isso, os benchmarks para isso. A lógica é essa, ter mecanismos que façam a agência se autopreservar.
Há um tema recorrente na agência que é o direito de passagem. A agência garante que ele existe, mas ninguém acredita. Como dá para fazer isso funcionar?
É um pouco injusto. O direito de passagem existe. Uma parcela não tão grande, mas significativa, vai por direito de passagem. É um mecanismo que existe, mas pode ser muito mais ampliado.
Falo mais em relação a não concessionários…
Lógico, novos entrantes no mercado. A discussão aí é como se derrubam as barreiras de entrada para novos entrantes. Honestamente, na minha opinião, há três fatores chaves. Aumento de capacidade, tirar barreiras técnicas e barreiras econômicas. Primeiro tem que ter capacidade. Vai discutir direito de passagem, OFI (Operador Ferroviário Independente) sem capacidade? Vejo os corredores economicamente viáveis e que têm estrutura, em regra, saturados. Tem que ampliar. No mercado escasso, a competição fica muito mais complicada. Isso está sendo feito com os novos leilões e a renovação antecipada. O segundo ponto é derrubar as barreiras técnicas. A agência tem que retirar.
Essa é a parte de vocês?
Não só essa. Tem material rodante, até mesmo questão de pessoal. Como o maquinista de uma malha opera em outra. Tem uma série de questões técnicas que a agência tem que regular para evitar que uma concessionária imponha uma barreira desnecessária ao operador independente ou outra concessionária. O terceiro é o econômico. Temos que verificar em que medida é necessária a regulação de tarifa teto para esse novo entrante. Num cenário de capacidade em excesso, a gente não tinha que se preocupar com isso. Tem capacidade sobrando, deixa o mercado se regular que vai ter competição. Mas como a capacidade é limitada, tem que ter uma discussão de tarifa teto. Qual é o limite para essa operação. São esses os três pilares para que se consiga ampliar a competição e a entrada de operadores independentes.
E há mais a se fazer?
Há outras vertentes. O PL de Autorização é importante para possibilitar short lines. Áreas que não são do interesse da concessionária outra consegue pegar e fazer uma parceria com a linha tronco. Usar o melhor do modelo americano e do modelo europeu para a nossa realidade. Querer copiar um ou outro talvez seja um pouco utópico. As realidades são diferentes. Usar um pouco do melhor dos dois modelos. Mas sem ampliação de capacidade e redução de barreiras não vai acontecer. O cara não vai comprar material rodante. O investimento é muito alto. Não temos uma indústria desenvolvida de leasing, empréstimos como facilidade. Entrar no mercado é caro e complicado e temos que ajudar com essa remoção de barreiras.
Você vai chegar com o que é considerado o maior pepino regulatório do país que é a tabela de frete. Qual a sua visão em relação a isso? O que é possível fazer no momento e no futuro?
Independente de achar que a tabela de frete é positiva ou negativa, meu ponto é que ela é uma política pública estabelecida. Compete à agência fazer a conta. De forma honesta, o papel da agência é muito limitado. É fazer a conta e ver o valor estimado. Vamos fazer isso da melhor forma possível, contratando uma consultoria boa, colocando em audiência pública, com Análise de Impacto Regulatório. Vamos usar as ferramentas regulatórias para ter o melhor resultado possível. Mas é um resultado regulatório. Não vem dos mecanismos de oferta e demanda livres de mercado. E, como todo resultado regulatório, está sujeito a incertezas. A forma como você mitiga essa incerteza é ter um bom processo regulatório. Um bom estudo, uma boa nota técnica, uma audiência pública participativa, ouvindo e respondendo o que vier de cada um.
Muitas pessoas tomam seu ato como um ato de coragem, deixar uma carreira de ministro no Tribunal de Contas para ir para uma agência, ganhando menos e com mais trabalho…
Acho um pouco exagerado. Não é bem isso. Minha área original é engenharia. No TCU sempre trabalhei boa parte na área de infraestrutura. É o setor que eu gosto de trabalhar. Apesar da minha experiência no Ceará ter sido excelente, com uma nova perspectiva de trabalho, diferente, de julgador e não de auditor ou gestor, acho que eu consigo contribuir mais para o país estando aqui. O desafio da agência é grande. Sem falsa modéstia, eu posso contribuir. Mas não acho que tenha sido uma decisão corajosa, não. A gente não pode encarar o serviço público como uma aposentadoria, algo vitalício. É um emprego, uma missão. É como no setor privado. O cara está numa empresa, depois vai para outra e outra, topa um desafio para ganhar menos e depois ganhar mais, mas o desafio é legal. Faz parte da vida isso. Eu não gosto muito desse rótulo de que é corajoso. Vejo isso como normal, mudar de emprego, de ares. Sou jovem, tenho 40 anos. E se não der certo eu volto pro TCU, faço o concurso de novo, volto a morar no Ceará. A vida é muito dinâmica para a gente ficar preso a um cargo. Acho que temos que estar mais atrelados a uma missão, a um objetivo, àquilo que te faz mais feliz para acordar bem de manhã.