Luis Claudio Montenegro*
Uma boa solução sempre tem origem em um diagnóstico correto. No caso da logística, e aqui faço destaque para os aspectos portuários, tenho refletido bastante sobre o real diagnóstico das impedâncias que não nos permitem evoluir de forma definitiva no aprimoramento da forma com que planejamos e executamos o fluxo de produtos no país.
Creio que já se vão quase 30 anos que deparamos com o setor produtivo nacional implorando por soluções para o nosso custo logístico, estimado há décadas em cerca de 12% a 13% do PIB nacional, custos cerca de 60% maiores que países concorrentes com nosso mercado no comércio internacional.
Fato é que nossa participação no comércio internacional é de um pálido 1,04%. O mais assustador é que esse número só é desse tamanho porque temos os setores do agronegócio e de mineração puxando a média para cima, apesar da nossa logística.
De forma efetiva, os altos custos no setor são resultado de dois fatores para os quais tenho lançado luz insistentemente, quais sejam: a baixa capacidade da nossa infraestrutura, que gera filas e, consequentemente, enormes desperdícios com imobilização de capital; e o excesso de burocracia, que não nos permite processos simplificados, ágeis e fluidos de comércio nacional e internacional.
Mas quais seriam os reais motivos para não conseguirmos evoluir nesses dois aspectos e, dessa forma, termos vantagens competitivas em logística para ampliarmos nossa estratégia e participação no comércio internacional?
A cada vez que me faço essa pergunta, tenho maior convicção na resposta: o único fator que ainda nos impede de definitivamente escalar patamares altamente eficientes de logística é o excesso de proteção dada a atividades e atores ineficientes.
Foquemos na questão portuária.
O setor portuário brasileiro tem, provavelmente, o melhor conteúdo de planejamento dos diversos setores de infraestrutura. O conjunto formado pelo PNLP (Plano Nacional de Logística Portuária), os Master Plans de cada um dos Complexos Portuários do país e os PDZs (Planos de Desenvolvimento e Zoneamento) de cada porto nacional nos permitem ter a perfeita visão do diagnóstico, do prognóstico e de um plano de ações altamente detalhado e preciso.
Sabe-se, por exemplo, há mais de 12 anos, a partir de metodologias sofisticadas desenvolvidas no PNLP, que nossa capacidade portuária está engargalada em percentuais de ocupação superiores a 80%, o que resulta em filas de navios, caminhões, trens, contêineres, e causa enormes incertezas no planejamento logístico do setor produtivo, forçando o produtor nacional a carregar a mão nos estoques, impedindo que possamos evoluir para modelos just-in-time – desenvolvidos originalmente no Japão há mais de 50 anos.
Outro fator que tenho destacado há bastante tempo, e que ficou muito mais visível após recente auditoria operacional do TCU (Tribunal de Contas da União) no setor, é de que cerca de 60% das áreas existentes nos nossos portos organizados, desenvolvidos com recursos públicos, são áreas ociosas. Minha avaliação é de que essas áreas não são ocupadas por conta da excessiva e desnecessária proteção a alguns players já estabelecidos, o que resulta em portos insustentáveis nos investimentos – é impossível manter um condomínio autossustentável em investimentos com 60% de ociosidade.
Para entendermos essas proteções, destaco aqui algumas transformações que o setor enfrentou nas últimas décadas.
Uma dessas transformações foi o marco legal de 1993 – lei orgulhosamente chamada de Lei de Modernização dos Portos, a partir da qual as autoridades portuárias em todo o país saíram definitivamente da realização das operações portuárias, depois de muita luta do setor privado. Não se assustem, é isso mesmo! As operações portuárias (carga e descarga de navios, caminhões, trens, além da propriedade e gestão de ativos como guindastes, empilhadeiras, armazéns, balanças) eram executadas, salvo raras exceções de cargas próprias de algumas indústrias, por empresas públicas.
A grande luta pelo marco legal de 1993 foi contra setores que defendiam a proteção artificial dessas administrações públicas, de empresas privadas que ameaçariam o caráter estratégico das operações portuárias nacionais.
Pois o resultado do avanço da reforma da Lei de Modernização foi espetacular. Vimos a chegada de equipamentos de última geração, como portêineres e carregadores de granéis que atualmente nos colocam em patamares de eficiência de grandes portos mundiais.
Outro avanço, ainda mais recente, foi o enorme debate sobre a possibilidade de implantação de portos privados, os chamados TUPs (terminais de uso privado), para operarem com carga própria. Também argumentavam alguns setores que esse tipo de investimento privado deveria ser proibido, caso contrário seria o fim dos portos organizados e dos seus ativos públicos, que haveria concorrência assimétrica, que haveria concentração de mercado e destruição da concorrência.
Fato também é que, depois de muita luta pela liberdade de investimentos, e de muitos anos perdidos com esse debate – muito assemelhado ao de táxis e aplicativos de mobilidade – portos privados foram implantados e já respondem por mais de 66% da movimentação de carga nacional. A estabilização dos portos públicos (organizados) em cerca de 1/3 do mercado tem feito com que esse segmento seja repensado, principalmente na quebra das amarras e proteções que ainda o impede de crescer.
Nesse sentido, experimentamos neste ano, apesar de outras enormes resistências, a primeira concessão integral de um porto organizado – de uma série de outras em estudo – que tende a dar a liberdade necessária à Autoridade Portuária, agora privada, de realizar contratos, dinamizar investimentos e conquistar ganhos de eficiência que permitam ampliar a sua participação no mercado na competição com TUPs.
Mas as travas e a luta por proteção de certos segmentos ainda persistem, e podem perigosamente frear o nosso desenvolvimento (dentre outros aspectos: o aumento de investimentos na infraestrutura portuária, a ampliação da eficiência, e consequentemente a redução dos custos logísticos do setor produtivo nacional).
Os temas da vez são os supostos riscos, apontados pelos mesmos segmentos de sempre, da chamada verticalização e da concentração de mercado no setor.
Para o primeiro tema, proponho conhecermos do que estamos falando, para que possamos tirar nossas próprias conclusões. O que seria o chamado risco de verticalização do setor?
Para exemplificar, vamos entender dois casos de suposta “verticalização”, alardeados por alguns segmentos ávidos de mais proteção governamental contra a liberdade econômica.
O primeiro diz respeito ao risco de uma empresa de transporte marítimo (chamado de forma genérica de “armador”) ser proprietária ou ter participação em um terminal portuário.
Para podermos avaliar esse primeiro tópico, temos que antes entender o básico dos fundamentos de transporte, especialmente de que o terminal é um subsistema do transporte – entre outros subsistemas, como o veículo e a via – e que esse começa com o carregamento do veículo, segue com o deslocamento da carga desde uma origem até um destino, e termina com o descarregamento desse veículo.
Ora, por esse simples entendimento do que define a atividade de transporte, fica claro que é função precípua do transportador carregar e descarregar o veículo de transporte de qualquer modalidade nos seus respectivos terminais. Ocorre que uma prática bastante comum em logística é o processo de terceirização dessa atividade, de forma que a empresa de transporte tenha mais flexibilidade e alternativas ao definir um conjunto maior de pontos de carga e descarga. Que fique claro que essa é uma opção do transportador. Porém, classificar a propriedade do terminal de carga e descarga pelo transportador como um processo de verticalização soa totalmente inadequado do ponto de vista conceitual.
Se insistíssemos em tratar esse tipo de atividade como verticalização, o país teria que retroceder em vários dos seus investimentos em logística, e rediscutir, por exemplo, a possibilidade de que concessionárias de ferrovias possam possuir terminais de carga e descarga, além de impedir que empresas como Petrobras e Vale tivessem seus próprios terminais portuários e navios próprios cada vez maiores, mais baratos e mais competitivos em mercados internacionais.
A título de exemplo, as experiências nacionais em que empresas de transporte marítimo fizeram investimentos em terminais de contêineres mostraram na prática reduções de custo e aumentos de produtividade e eficiência. Esse é o caso da implantação no Brasil, em 2013, do terminal portuário BTP em Santos. O terminal é de propriedade de dois grandes armadores internacionais e seria entendido como um terminal verticalizado.
Pois a partir da implantação desse terminal, o que se viu em Santos nos últimos 10 anos foi o aumento expressivo de investimentos, de produtividade, a redução em mais de 50% dos tempos de espera de navios, a redução de custos em cerca de 76% da atividade de carga e descarga de terminais – que reflete diretamente no preço dos fretes internacionais que se poderia pagar na competição internacional – e o crescimento contínuo da movimentação. O mercado certamente se movimenta. Mas o fato é que em 2010 havia dois grandes operadores de terminais de contêineres no Complexo Portuário de Santos, e hoje existem três grandes operadores.
O mercado mundial de transporte marítimo está cada vez mais aquecido, mesmo com a crise recente gerada pela pandemia, e ainda mais recentemente pelos abalos trazidos pela guerra no leste europeu. Mesmo com as crises, as mudanças globais no crescimento exponencial do e-commerce têm trazido para a concorrência nesse mercado gigantes como Amazon, Alibaba, Flexport, Lidl, dentre várias outras. A suposta verticalização não parece ser, portanto, um risco efetivo no mercado logístico internacional.
Além do mais, a prática em todo o mundo, e que não é diferente no Brasil, é de que terminais portuários de qualquer espécie de propriedade tenham a obrigação de não promover qualquer tipo de discriminação com empresas transportadoras que precisem utilizá-los. Em todo o caso, uma regulação responsiva a qualquer caso concreto de abuso parece ser o modelo mais desejável, não gerando riscos ou impedimento aos investimentos privados no país.
Outro tipo de “verticalização” muito discutido, principalmente no setor de contêineres, é a argumentada por empresas de armazenagem de contêineres em zona secundária, que insistem em tentar dividir a operação portuária em dois mercados distintos: a operação de carga e descarga de veículos e a operação de armazenagem aduaneira.
Outra vez, equívocos conceituais graves estão presentes. Primeiro, é importante conhecer que, do ponto de vista da eficiência da operação, é impossível dissociar a carga e descarga de navios das operações de armazenagem de carga. Qualquer análise básica de simulação vai demonstrar que há enorme redução de produtividade caso não exista um pulmão operacional de armazenagem no próprio terminal. Com o aumento cada vez maior da capacidade dos navios, esse fator de eficiência fica ainda mais explícito.
Em síntese, o entendimento inadequado dos conceitos fundamentais de logística e operação de terminais pode nos levar a um enorme mercado de pequenas áreas de armazenagem, o que não excluiria o fato de que, do ponto de vista operacional, os terminais portuários tenham que ter enormes áreas de armazenagem para garantir a sua eficiência. Os resultados tendem a ser desastrosos com elevação de custos para os usuários, além do risco de se retornar aos anos 80, quando pela falta e ineficiência dos portos públicos, fazíamos dois a três movimentos por hora de contêineres – ainda com guindastes de gancho em que estivadores prendiam, com seu próprio esforço físico, cabos de aço em cada um dos quatro cantos dos contêineres carregados e descarregados.
Tratar carga e descarga de navios e armazenagem em terminais portuários como um processo de verticalização é não só inadequado do ponto de vista operacional, mas também pelo fato de que não há opção ao terminal portuário, caso não se queira regredir 50 anos na eficiência portuária e realizar somente uma das duas atividades. Ou seja, se não há opção ao agente econômico, não há que se falar de verticalização.
Sobre o tema riscos de concentração de mercado, é preciso também conhecer bem o setor antes de tirar qualquer conclusão precipitada.
Primeiro, é preciso entender que o setor portuário é um setor que exige investimentos intensivos, principalmente considerando o fato de que, para que possamos ser competitivos nos mercados internacionais, temos que ter capacidade de atender os navios cada vez maiores usados no transporte marítimo global. Sem esses grandes navios, pagaremos fretes maiores comparados ao resto do mundo e, provavelmente, teremos que aceitar que as nossas cargas de comércio exterior façam transbordos em outros países para que, de lá, navios maiores façam rotas de longas distâncias.
Pois é justamente por esse motivo que os investimentos em terminais portuários precisam ser cada vez maiores. É o que se costuma denominar “Escala Mínima Eficiente (em Inglês, MES)”. Em síntese, um terminal precisa ter uma escala tal que lhe permita ter custos cada vez menores a partir de capacidades cada vez maiores. O MES cada vez maior exigido dos terminais portuários resulta na grande necessidade de investimentos na implantação do terminal, em geral gerando capacidade suficiente para décadas de operação. Nesse sentido, é compreendida no mundo todo a necessidade do setor em ter níveis de concentração maiores que outros tipos de mercados com investimentos menos vultosos.
Percentuais de concentração superiores a 60% do mercado têm sido admitidos em órgãos de defesa da concorrência em todo o mundo para o setor portuário. As decisões consideram uma concentração maior não só natural, mas também desejada, a fim de garantir a competitividade logística dos seus países.
De qualquer forma, diversos especialistas do setor fizemos recentemente cálculos que demonstram como se dá a competição pelo mercado brasileiro de contêineres. As constatações do estudo, disponibilizado aos diversos órgãos governamentais que tratam do tema, é de que o setor é altamente competitivo e que a competição se dá, do ponto de vista geográfico, de forma bastante ampla, com Complexos Portuários de diversos estados competindo por cargas em hinterlândias que se sobrepõem para atendimento aos diversos mercados consumidores e produtores em todo o país.
Os dados desses estudos foram retirados de bases governamentais, como os dados estatísticos de comércio exterior da Receita Federal e os da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), e demonstram objetivamente e de forma concreta, à medida que retratam a realidade do que vem ocorrendo nos diversos anos cobertos pela estatística, como e quais terminais efetivamente competiram pelas diversas cargas em todo o país.
Análise metodológica semelhante, aplicada a dois casos atualmente discutidos para ampliação de investimentos no setor portuário, mais especificamente no setor de contêineres nacional, mostram resultados importantes: o caso da proposta de arrendamento da área denominada STS10, em Santos (ressalte-se que é mais uma das áreas com baixíssima produtividade, que ajudam a compor a estatística tenebrosa dos 60% de áreas ociosas nos portos organizados do Brasil); e o caso da concessão do Porto de Itajaí, porto que também tem tido indicadores de produtividade cada vez menores e que precisa urgentemente de investimentos.
Nos dois casos, não se identifica, para nenhum cenário provável, nenhum indicador de concentração superior a 50%, o que é considerado pela própria OCDE (Organização para Cooperação e Desenvolvimento Econômico) como natural e que, portanto, não exigiria nenhuma preocupação antecipada com qualquer tipo de abuso de poder econômico.
A partir da análise desses mais recentes fantasmas alardeados e que poderiam assombrar a logística nacional, os supostos riscos de verticalização e de concentração de mercados somam-se, no mesmo formato de sempre, aos receios da modernização de portos de 1993 e aos supostos riscos que poderiam haver na implantação de TUPs e concessão de portos organizados.
É hora de o setor produtivo nacional compreender qual a agenda estratégica para a logística nacional, especialmente para o setor portuário. Estou certo de que impedir que os naturais e tão desejados arranjos logísticos de operações multimodais cada vez mais integradas, e que aumentem os níveis de serviço e ao mesmo tempo que reduzem custos da logística nacional, não deve estar na agenda governamental.
É preciso superar de vez os gargalos de capacidade e eficiência. É preciso efetivamente reduzir nosso elevadíssimo custo logístico que representa uma barreira para que possamos ampliar a participação do setor produtivo brasileiro no mercado mundial.
Mais uma vez, corremos o risco de ficarmos presos a debates protecionistas intermináveis, que nos impedem de efetivamente realizar os investimentos que o setor tanto precisa e promover os ganhos de eficiência que definitivamente nos permitirão reduzir custos para a logística disponível ao setor produtivo nacional.