Portaria do governo propõe a maior ampliação do mercado livre de energia desde a sua criação

Roberto Rockmann e Alexandre Leoratti, da Agência iNFRA

 A CP (Consulta Pública) 131/2022, divulgada nesta terça-feira (26), será um marco na história do mercado livre de energia, ao propor que todos os consumidores atendidos em alta tensão possam optar pela compra de energia elétrica de qualquer supridor a partir de 1º janeiro de 2024.

Se a Portaria 672 do MME (Ministério de Minas e Energia) ficar como foi proposta na CP, será o ponto de partida da maior ampliação do mercado livre desde sua criação em 1995 ao permitir que mais 106 mil consumidores poderão ganhar o direito de acessar o ambiente de livre contratação.

Com as regras atuais, são elegíveis para acessar o mercado livre mais 69 mil consumidores, um grupo com potencial de elevar essa participação para 42%. Com a finalização da consulta pública e a efetivação da abertura do mercado para todos os consumidores de alta tensão, mais 106 mil consumidores poderão ganhar o direito de acessar o ambiente de livre contratação e escolher o próprio fornecedor, um movimento que pode fazer o mercado livre de energia ser responsável por 48% do consumo nacional, segundo a Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia).

Segundo o presidente da associação, Rodrigo Ferreira, empresas com uma conta superior a R$ 10 mil por mês estarão aptas a migrar. “Abrir o mercado para toda a alta tensão é um primeiro passo para a verdadeira reforma estrutural no setor de energia. A competitividade leva à redução de preço e consequentemente reduz inflação, gera emprego e novos investimentos em cadeias produtivas”, disse.

Migração mais fácil na alta tensão
A CP mostra também como o mercado livre tem crescido nos últimos 23 anos com “puxadinhos” regulatórios, sem um desenho de abertura organizada e com visão sistêmica. Demoraram-se 23 anos desde a migração da Carbocloro em novembro de 1999 para avançar na abertura da alta tensão. Sempre se buscou um projeto de lei ou um consenso durante esses anos. Em 2018, o país esteve perto da modernização, mas o grampo de Joesley Batista derrubou a intenção.

A alta tensão é um segmento que já paga demanda diferenciada e já opera com medidores eletrônicos, o que facilita a migração, aponta Rogerio Jorge, vice-presidente da AES Brasil. “O problema maior são os da baixa tensão, em que não há tarifa binômia, pagam-se rede e energia e os medidores não têm complexidade tecnológica”, destaca.

Desafio da baixa tensão
O desafio será a abertura chegar à baixa tensão, aos 80 milhões de residências e pequenas indústrias, um segmento que tem em alguns casos recorrido à geração distribuída solar. Para que a abertura total surta efeitos, haverá uma série de medidas infralegais a serem aprovadas, assim como haverá a necessidade de avanços regulatórios em um país com mais de 80 milhões de medidores eletromecânicos. Os medidores bidirecionais são mais caros. Como transformar custo em oportunidade? Haverá ainda a necessidade do aval dos parlamentares. O Projeto de Lei 414/2021 está parado, ainda no relatório preliminar, desde 25 de fevereiro.

Mas a abertura é inexorável. O avanço da geração distribuída solar, cuja velocidade de expansão futura dependerá do que o CNPE (Conselho Nacional de Política Energética) decidirá em breve a partir da CP 129, e a abertura da alta tensão tornam premente a liberalização total, mesmo com mudança do governo federal na eleição presidencial. O desafio será equilibrar as contas de um mercado cativo, cada vez mais pesado por ineficiências e encargos e ainda tecnologicamente atrasado.

A conta do mercado cativo
Essa abertura da alta tensão coincide com incertezas. O atual modelo, estabelecido em 2004, fixa que os geradores ofertam às distribuidoras contratos de longo prazo, de 25 a 35 anos, o que também contribui para financiar os projetos. São os chamados contratos legados. Alguns vão até 2054. Ampliar o mercado livre implica resolver os contratos legados e o papel das distribuidoras. Quanto mais liberalização, maior fica a conta para quem se mantém no ambiente de contratação regulada.

O Ministério da Economia encomendou um estudo para a PSR sobre o tema. Foram feitas simulações para a abertura total do mercado livre de energia elétrica. Um ponto central do trabalho é sugerir tratamento aos contratos legados das distribuidoras. Uma ideia é a criação de um encargo a ser cobrado. Em 5 de agosto, a PSR realiza workshop sobre o estudo.

Segundo Ricardo Brandão, diretor-executivo da Abradee (Associação Brasileira de Distribuidores de Energia Elétrica), o setor não é contrário à migração ao mercado livre, mas acredita que outras medidas devem ser implementadas para que os consumidores remanescentes no mercado regulado não paguem pela migração.

“No PL 414, existe a previsão da criação do encargo de sobrecontratação provocado pela migração de consumidores. É o custo da sobrecontratação rateado por todo o mercado. Isso é considerado essencial pelas distribuidoras”, afirmou Brandão. Ele acha que também é necessário que o texto tenha mecanismos de flexibilização para que a distribuidora possa ter ferramentas mais efetivas para reduzir a sobrecontratação.

Outra questão são as regras de comercialização do mercado livre, que nesse momento passam por uma rodada de aperfeiçoamento. Discutem-se indicadores de alavancagem e sistema de depósito prévio de garantias. “O nosso mercado está muito desorganizado, mas com muito dinheiro na mesa. Hoje há um custo de transação baixíssimo para operar no atacado exportando os riscos financeiros para sabe-se lá quem. Acho que há uma oportunidade com essa CP para colocar alguns condicionantes, medidas saneadoras, como medidas de segurança de mercado melhores e o custo da transição”, diz um executivo.

Efeito Eletrobras no ACL
Uma transformação que também terá efeitos sobre o mercado livre é o processo de capitalização da Eletrobras. Para o ex-diretor da ANEEL Edvaldo Santana, não é trivial estimar os reflexos da incorporação de 13.000 MW médios, tudo no ambiente livre.

“A oferta de energia no ACL [Ambiente de Contratação Livre] crescerá mais ainda, o que é ótimo, apesar de ser um mercado restrito a grandes usuários. É inescapável a ampliação do ACL. Do contrário, os benefícios serão de poucos”, diz. Ele reforça que a legislação que permitiu a venda de ações da União na estatal autoriza que o total das garantias físicas das hidrelétricas da Eletrobras seja comercializado no ACL na proporção de 20% anuais a partir de 2023.

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