Desafios políticos para implementação do novo marco legal de saneamento básico

Igor Pereira Oliveira*

O novo marco legal de saneamento, representado pela novel Lei 14.026/2020, alterou a Lei 11.445/2007 e ressaltou a necessidade de maiores investimentos com o objetivo de melhorar os baixos índices de cobertura desses serviços. Os estados deveriam concluir os processos de regionalização da gestão até 31 de março de 2022. Contudo, foi necessária a emissão do Decreto 11.030/2022 para a prorrogação desses prazos, expondo dificuldades de cunho político1:

“Após quase dois anos de vigência da Lei º 14.026/2020, nota-se uma complexidade grande na definição das estruturas de prestação regionalizada previstas na nova redação do inciso VI do art. 3º da Lei nº 11.445/2020. Poucos estados têm avançado na sua estruturação, por fatores diversos que, além das complexidades técnicas e econômicas, envolvem também dificuldades políticas com negociações entre prefeitos, vereadores, governadores, deputados estaduais, entre outros agentes.” (grifo nosso)

Aqui, registre-se, a política pública pode estar diante de situação similar às sucessivas prorrogações de cláusulas suspensivas (cláusulas de eficácia) dos instrumentos de repasse pretéritos, firmados, inclusive, no âmbito do PAC (Programa de Aceleração do Crescimento). Explica-se.

Como exemplo prévio à Lei 14.026/2020 e ampliando o raciocínio para toda a área de infraestrutura, o estado do Ceará não recebeu quase R$ 1 bilhão de recursos federais para as obras de construção da Linha Leste do Metrô de Fortaleza e, por isso, a validade do instrumento de repasse foi continuamente prorrogada2:

“39. Contudo, a parcela mais significativa, da ordem de R$ 970 milhões, continuou suspensa, porquanto restavam pendentes a aprovação dos projetos, a regularidade da área e o licenciamento ambiental da 2ª Etapa do empreendimento. (…) 41. Esse histórico, de dificuldades na resolução das pendências, corrobora o entendimento de que o projeto não estava pronto para ser utilizado em uma licitação com indicação, em seu edital, de uso de recursos federais”. (grifo nosso).

No cenário do novo marco legal de saneamento, o MDR (Ministério do Desenvolvimento Regional) divulgou um levantamento que evidencia pendências especialmente nos estados do Acre, Pará e Tocantins, que apresentam os principais índices desfavoráveis no atendimento urbano com rede de água e esgoto: Acre (63,2% água e 15,7% esgoto), Pará (59,6% água e 10,7% esgoto) e Tocantins (94,9% água e 35,1% esgoto)3.

Em ambos os casos, municípios e estados, sob as diretrizes da União, devem atender a determinados requisitos. O não atendimento prejudica o recebimento tempestivo de recursos necessários e suficientes para implementação da política pública.

Além disso, a destinação de recursos federais não onerosos para regiões mais desfavorecidas atrai as competências do Cisb (Comitê Interministerial de Saneamento Básico), composto pelos ministros de Estado do Desenvolvimento Regional, da Saúde, da Economia, do Meio Ambiente, do Turismo e pelo chefe da Casa Civil da Presidência da República.

No PL (Projeto de Lei) 4.162/2019, o comitê era visto como solução para a necessidade de maior coordenação pelo governo federal das ações relacionadas ao saneamento básico.

Contudo, o TCU (Tribunal de Contas da União) destacou a inoperância do comitê, evidenciando o risco de comprometimento da implementação do novo marco legal do saneamento básico, “inclusive no que concerne à efetividade da alocação dos recursos federais e da interlocução com outras políticas públicas”4.

Na verdade, a atuação de comitês compostos por ministros de Estado pode resultar em decisões de cunho essencialmente político, em prejuízo aos próprios indicadores de regiões mais desfavorecidas, caso critérios técnicos mínimos não sejam estabelecidos previamente às decisões.

Dessa perspectiva, o TCU determinou em 2016 ao CGPAC (Comitê Gestor do PAC), também composto por ministros de Estado, a seleção de projetos de engenharia para as obras de esgotamento sanitário em municípios com níveis mais desfavoráveis5:

“23. A partir dessa análise, verificou-se que não há sistemática que direcione ativamente os recursos do ministério para os municípios com níveis mais desfavoráveis de mortalidade infantil, coleta de esgotamento sanitário, desenvolvimento humano e disponibilidade hídrica. Eis que, muitas vezes, os municípios com os indicadores mais desfavoráveis são justamente aqueles que enfrentam maior fragilidade institucional e têm, portanto, menos capacidade de apresentar projetos viáveis para as obras de esgotamento sanitário. 24. As dificuldades relatadas pela equipe de auditoria foram desde a ausência de servidores com perfil técnico adequado até a falta de recursos financeiros para contratar empresas de consultoria para a elaboração de projetos. E, em alguns casos, foram mencionadas as condições locais, a exemplo da situação topográfica desfavorável ou da falta de dados georreferenciados, como fatores adicionais capazes de prejudicar a elaboração dos referidos projetos”. (grifo nosso)

Assim, a busca pela colaboração interfederativa6 para universalização dos serviços de saneamento básico tem esbarrado em dificuldades políticas para a prestação regionalizada dos serviços, sem perder de vista que o Cisb deve contribuir efetivamente com uma maior coordenação das ações relacionadas ao saneamento básico.

Eventuais opiniões são pessoais e não expressam posicionamento institucional do TCU.

*Igor Pereira Oliveira é auditor federal de controle externo no TCU (Tribunal de Contas da União) e mestre em engenharia pela Escola Politécnica da USP.
1 Constante da Nota Técnica SEI nº 12957/2022/ME, emitida pelo Ministério da Economia.
2 Acórdão TCU 2.343/2019-Plenário.
3 MDR. Ministério do Desenvolvimento Regional. Secretaria Nacional de Saneamento (SNS). Panorama do Saneamento Básico no Brasil 2021 e Diagnóstico temático serviços de água e esgoto 2021.
4 Acórdão TCU 2.392/2022-Plenário.
5 Voto do Acórdão TCU 3.180/2016-Plenário.
6 Assunto relacionado à governança multinível, que existe “quando não há competência exclusiva ou hierarquia estável de autoridade”, assentando-se “na colaboração interfederativa, em que há partilha de responsabilidades entre diferentes atores”, em um “ambiente que exige contínua cooperação e fortalecimento da capacidade institucional de atuar de forma coordenada no ciclo das políticas públicas descentralizadas”. Conceito disponível em https://portal.tcu.gov.br/referencial-para-avaliacao-de-governanca-multinivel-em-politicas-publicas-descentralizadas.htm
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