Roberto Rockmann*
O desafio do governo federal na CP (Consulta Pública) 152, sobre a renovação das concessões de distribuição será criar um ambiente de competição e evitar criar distorções no setor elétrico, diz Joísa Dutra, diretora da FGV Ceri (Centro de Estudos e Regulação em Infraestrutura).
Para ela, os benefícios para os consumidores dependerão da criação de um ambiente de concorrência no qual as distribuidoras não terão mais o monopólio sobre os dados e no acesso às redes. Segundo Joísa, também será preciso ter cuidado com as ações de contrapartidas sociais propostas pelo governo federal, porque elas poderem criar mais distorções no setor.
Em relação à regulação de áreas críticas, como no Rio de Janeiro e Amazonas, a diretora da FGV elogia a criação, pelo Ministério de Minas e Energia, de um grupo de trabalho sobre o tema e destaca que se devem olhar exemplos bem-sucedidos em outros setores, como o de saneamento, em que áreas críticas foram tratadas de forma diferenciada e atraíram o interesse de investidores. A seguir os principais trechos da entrevista com a autora de “Concessões no Setor Elétrico: Evolução e Perspectivas”, livro citado pelo governo federal na Nota Técnica que embasa a CP:
Agência iNFRA – Qual sua análise das contribuições feitas da CP da renovação da distribuição, cujo prazo se encerrou semana passada?
Joísa Dutra – Foram quase 50 contribuições no total. Li algumas delas. O desafio do governo será trazer equilíbrio entre as diferentes posições e direcionar a modernização, porque as redes de distribuição são nevrálgicas para a transição energética. A contribuição das distribuidoras enfatiza a prorrogação dos contratos, mas não vai além disso. É como se elas quisessem manter o status quo, sem grandes mudanças: dizem que a separação fio e energia pode ficar para depois, não se deve olhar excedente econômico, não é possível compartilhar dados porque isso pode ameaçar a segurança do sistema e vai violar o campo do compliance com a Lei Geral de Proteção de Dados.
Fiquei um pouco decepcionada porque eu penso que, mesmo na defesa dos seus interesses, que é legítimo, é preciso encontrar um meio de caminho. A sustentabilidade da distribuição está inegavelmente ameaçada. Isso é dito todos os dias. Entendo ser fundamental uma revisão equilibrada das condições que vão pactuar os novos contratos. O futuro da transição energética depende da distribuição e exigirá investimentos maciços em redes.
O que vai ser o direcionador desses investimentos para modernização das redes? Na Nota Técnica, o governo indica que ele poderia ser o uso dos excedentes econômicos…
Se houver um resultado econômico muito importante, é melhor garantir mais renda para o consumidor, para ele fazer a escolha. Hoje existe uma oneração das tarifas por uma série de fatores, subsídios, políticas distributivas. Se houver excedente, é preciso de algum modo desonerar o consumidor. Há alguns itens propostos na nota que podem criar mais distorções. É preciso tomar cuidado com essas ações que começam bem-intencionadas e depois causam ineficiência econômica e afetam a própria capacidade de pagamento dos usuários, como a regulação da GD (Geração Distribuição) Solar.
O que pode criar distorções?
Nas contrapartidas sociais em eficiência energética, a nota fala em painéis solares para redução dos custos de energia elétrica na operação de cisternas e poços artesianos em comunidades sujeitas a insegurança hídrica. Há uma série de cheques em branco. Pode haver mérito nessas contrapartidas sociais, mas o mecanismo particular que vai ser usado tem enormes condições de gerar distorções muito grandes.
Ou seja, essas contrapartidas sociais, se forem criadas, precisarão ser muito bem definidas e transparentes no seu uso. É isso?
É mais do que isso. Quem disse que é a distribuidora que tem que fazer o investimento no painel solar para redução de custo de energia elétrica? Investir em painel solar para redução do custo de energia elétrica não é uma atividade de monopólio. É uma atividade competitiva.
Outro exemplo: modernização do sistema de medição. Quem vai fazer essa implantação? Não é monopólio. Então, primeiro, se existirem recursos a serem compartilhados, é preciso garantir que haja uma abertura, para que haja beneficiários. O contrato de concessão hoje ainda fala da atividade prestada pela distribuidora como um conjunto de atividades em regime de monopólio. Não cabe garantir direito de monopólio para atividade competitiva. A abertura equilibrada tem que abrir espaço para entrada de novos e para a competição. Sem isso, não há benefício para os usuários.
Separação fio e energia é essencial nesse ambiente concorrencial?
Circulou semana passada a notícia de que o ministro Alexandre Silveira estaria por encaminhar uma proposta de reforma do setor elétrico que contemplaria a separação de fio e energia. O ministro tem experiência no Congresso. Isso é muito importante. Em vários momentos, lá atrás, as distribuidoras apontaram que não era possível fazer a separação de fio energia, mesmo que feita em lei, porque os seus contratos não continham dispositivo para isso.
Estes novos contratos discutidos agora têm de ter dispositivo para essa adaptação. O poder concedente desenvolveu mecanismos para as empresas gerenciarem risco e repasse daquilo que era involuntário. Pode ser que não de modo ágil. Isso é um incentivo adicional para separação de fio energia, porque assim a concessionária vai poder melhor gerir aquela parcela do risco de mercado, o que hoje está tendo dificuldades muitas vezes.
Outra questão apontada na Nota Técnica da CP é a modernização das redes. Como é que se vai fazer essa modernização sabendo que usar aparelhos de medidores inteligentes custam mais do que os tradicionais mecânicos e com realidades regionais distintas?
Nós fizemos um trabalho cuidadoso, seguindo os protocolos europeus para avaliação de projetos de interesse e avaliação de projetos de implantação massiva de medidores inteligentes. A viabilidade existia. Isso foi antes da pandemia. Nós estamos há 20 anos implantando o projeto de universalização do acesso à energia elétrica, não é? Nós soubemos começar um programa. Houve vários redirecionamentos, várias revisões de rota nele, mas o setor elétrico sabe muito bem fazer implantações graduais, com revisão de rotas que entendem as especificidades das diferentes realidades.
E o que está faltando para dar esse ímpeto aí maior nos programas de smart grid, por exemplo?
Criar condições para que efetivamente seja possível reconhecer esses investimentos como críticos.
E isso precisaria estar, por exemplo, na regulação da CP, já que essas redes inteligentes podem criar novos serviços?
Eu entendo que está no alcance da regulação. Acho que o governo tem que sinalizar. A cultura da distribuição envolve um papel muito importante para as empresas prestadoras de serviços. Esse novo contrato tem que ser o contrato que conduz a implementação do modelo do operador de redes de distribuição, os serviços que são oferecidos em plataformas para clientes. Eu comecei falando que é essencial promover uma reforma para mudar o leque da área de distribuição. É essencial garantir o acesso não discriminatório às redes.
O conceito do operador de rede de distribuição envolve a garantia de acesso não discriminatório ao serviço de rede de distribuição, o que significa planejamento desse sistema, incentivos adequados, receita adequada para prestar esses serviços, baseada na qualidade e na performance, com separação muito clara das funções competitivas daquelas que são as funções de monopólio regulado. Então, tudo isso precisa ser adequadamente implementado.
No caso de GD solar, tem reclamações de ações protelatórias de distribuidoras em pedidos de acesso. Distribuidoras também investem em GD solar. É mais fácil conectar uma fazenda solar quando ela é um investimento que vem através de uma subsidiária do mesmo grupo econômico à qual pertence a distribuidora frente ou de uma outra empresa independente? No mundo das operadoras, esses serviços são competitivos.
Esse ambiente competitivo traz desafios para o governo, órgãos de defesa da concorrência, poder regulatório? E essa discussão envolve dados também?
Há duas questões separadas. A gente acabou de falar da primeira, o acesso não discriminatório à rede, que deve ser aberta a todos os players e não é mais monopólio. Outra coisa é a questão do acesso aos dados. São dois blocos componentes de um processo de abertura que está inegavelmente em curso acelerado no Brasil.
Agora estamos em uma outra camada: da informação. Em um ambiente competitivo, no mundo digitalizado, é preciso garantir os instrumentos para que as empresas possam competir em ambiente estruturado e em condições equilibradas.
Ninguém gosta de perder mercado. É possível estabelecer condições para que o seu dado seja compartilhado em seu benefício. Por isso temos falado na questão do open banking, que acompanhei de perto como economista.
Grande parte das elevadas taxas de juros no Brasil é explicada pela concentração no setor bancário. Aí vem uma inovação tecnológica que permite a entrada de fintechs que poderiam oferecer condições mais vantajosas para os usuários no caso de clientes do setor bancário. Qual foi a reação? Obviamente, quem tem poder de mercado não quer perder mercado. Então se colocou toda a questão da segurança de dados.
O Banco Central avançou na regulação sem prejuízo da segurança no manejo do dado. Criaram-se condições para que novos entrantes entendessem melhor qual é o perfil de risco do usuário e, quando se conhece melhor o perfil de risco, é possível desenhar contratos os mais adequados para diferentes grupos de usuários.
Como fica a regulação nas áreas críticas, como Rio de Janeiro e Amazonas?
O primeiro ponto é elogiar a criação recente do Grupo de trabalho pelo Ministério de Minas e Energia para enfrentar os problemas na prestação de serviços de eletricidade no estado do Rio de Janeiro e Amazonas. Nós decidimos subtrair esta parte da nossa contribuição, porque nós achamos que houve esse deslocamento e achamos acertado.
Um ponto a ser observado é que é inaceitável imaginar que tudo seja repassado para o consumidor. É preciso olhar fora da caixa e inclusive em outros setores. Por exemplo, a experiência recente do Rio de Janeiro na concessão de áreas de esgoto antes atendidas pela companhia estadual.
A concessão de água e esgoto no Rio lidou como nas áreas críticas?
Foi feito um processo licitatório e os quatro blocos atraíram concessionários privados. Uma das concessionárias tem responsabilidade em mil áreas críticas. A regulação do saneamento confere maior liberdade. Isso é você dizer para esta companhia oferecer condições diferenciadas para seus usuários nessas áreas críticas. Eles podem estabelecer tarifas mais baixas para cobrar para prestar um serviço. Ele prefere oferecer um serviço mais em conta, mas receber.
A regulação permite uma flexibilidade que garante ao prestador de serviço arrecadar, mesmo que pouco. Outro detalhe: a Aegea, que detém duas concessões no Rio de Janeiro, opera também em Manaus há anos. Ou seja, áreas desafiadoras são áreas que não inibem o incentivo desta companhia a buscar novos desafios.
É possível fazer o mesmo no setor elétrico?
A pergunta que está sendo colocada para esse grupo de trabalho do Ministério de Minas Energia é como ele vai conseguir criar condições para prestação de serviços diferenciados nas áreas que são irregulares ou subnormais. Não é passar a conta apenas para os usuários ou para todos os outros usuários.
A solução? Por exemplo, de novo, o setor de saneamento: o caso do Ceará, em que houve uma subconcessão em regime de PPP (Parceria Público-Privada) para prestar serviços em determinadas áreas.
No setor de petróleo, as grandes petroleiras entram na fase inicial de exploração e, produção e, quando os poços entram em declínio, elas vendem para outras menores, por terem o desafio de remunerar os seus investimentos considerando uma estrutura pesada que não se coaduna muitas vezes com as fases finais de exploração de um bloco que ela faz.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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