Cesar Pereira* e Jolivê Alves da Rocha Filho**
Há forte movimento no direito brasileiro para ampliar as soluções consensuais. As normas que tratam do tema tendem a ter aplicabilidade ampla, o que favorece a adoção da autocomposição nos mais diversos cenários.
Nesse sentido, o CPC (Código de Processo Civil) de 2015 previu expressamente que os mecanismos de autocomposição são preferenciais (art. 3º, § 2º). Para isso, estabeleceu para as autoridades públicas o dever de fomentar a adoção de soluções consensuais. O CPC tem aplicação subsidiária em processos administrativos, inclusive nos realizados pelos órgãos de controle de contas.[1]
Também em 2015, a Lei 13.140 estimulou a adoção da autocomposição em litígios envolvendo a administração pública. Previu a mediação inclusive em relação a direitos indisponíveis que admitissem transação, apenas exigindo o cumprimento de determinados requisitos. Reforçou a utilização da autocomposição pela administração pública em termos abrangentes. Hoje a mediação e o dispute board são realidades nas contratações públicas, expressamente referidos no art. 151 da Lei 14.133/2021.
Em 2018, a Lei 13.655 revisou a LINDB (Lei de Introdução às Normas do Direito Brasileiro) — Decreto-Lei 4.657/1942 — para introduzir normas de orientação para a aplicação do direito público. Trouxe permissivo amplo para acordos administrativos (art. 26). Reforçou-se a consensualidade em matéria administrativa. Já existiam normas que possibilitavam acordos com o poder público, inclusive em matéria penal ou sancionatória (colaboração criminal e acordos de leniência, por exemplo). A reforma da LINDB foi clara em promover a segurança jurídica e possibilitar maior abertura às negociações e aos procedimentos consensuais na gestão pública.
A LINDB é lei geral, de aplicabilidade ampla. É base para os diversos tipos de solução consensual envolvendo a administração pública. A permissão para acordos administrativos prescinde de regulamentação interna pelos órgãos públicos. Pode ser aplicada diretamente, desde que observados os requisitos constantes da própria LINDB.[2]
A reforma da LINDB foi regulamentada pelo Decreto 9.830/2019, que previu a precedência dos métodos de prevenção inclusive nos órgãos de controle.[3]
O direito brasileiro reconhece a adoção preferencial de mecanismos de solução consensual. As normas sobre o tema possuem aplicabilidade ampla. Estão à disposição e devem ser observadas por todos os órgãos que conduzem processos — mesmo de modo preventivo, fora de processos administrativos já instaurados.
A consensualidade é mecanismo para maior eficiência e celeridade da atuação administrativa. Também permite a tomada de melhores soluções, adaptadas conforme as circunstâncias concretas e de acordo com as visões e interesses das partes. É mecanismo democrático e de aumento da governança pública, que permite diálogo entre os afetados pela atuação administrativa e a construção de decisão por meio da escuta ativa dos detentores dos diversos interesses legítimos atingidos.[4]
Um mecanismo consensual não decide o litígio, mas faz algo muito mais importante: resolve o conflito. Restaura a relação entre as partes e proporciona a oportunidade de futuras interações pacíficas e produtivas entre os antigos litigantes.
Reconhecendo a importância de soluções consensuais no controle de contas, o TCU (Tribunal de Contas da União) expediu a Instrução Normativa 91/2022. Seu objetivo foi regulamentar os mecanismos de solução consensual e fortalecer sua adoção. Em poucos meses de funcionamento, o sistema já contou com ampla adesão. Foram instaurados, até outubro de 2023, onze procedimentos. Neles, já teriam sido celebrados três acordos, sendo dois já divulgados publicamente e um terceiro em que informações sugerem a iminente apresentação ao plenário de relatório final de solução consensual. Outro processo teria sido extinto por inexistência de consenso.[5]
A Instrução Normativa 91/2022 estabeleceu procedimento para a solução consensual, assim como determinou a criação de uma unidade técnica específica para auxiliar nos processos que envolvem autocomposição.
A Instrução Normativa 91/2022 inovou ao colher no ordenamento jurídico os fundamentos que permitem e incentivam a adoção de mecanismos de soluções consensuais. Objetivou estabelecer procedimentos e organização interna para autocomposição. Embora pudesse ser adotada mesmo sem tais regras, a solução consensual se torna mais segura e previsível. A iniciativa observou a diretriz do art. 30 da LINDB no sentido da edição de atos normativos destinados a dar clareza e uniformidade à ação administrativa.
A ausência de tais normas de organização não impediria que o TCU promovesse e estimulasse soluções consensuais.
Do mesmo modo, a sua falta na maior parte dos tribunais de contas de estados ou municípios também não é um obstáculo. A disposição do TCU em fortalecer a adoção de soluções consensuais pode e deve ser replicada e servir de incentivo para outros tribunais de contas. Isso já é uma realidade e a tendência é que se expanda cada vez mais.
Os mecanismos de solução consensual não são novidades no controle de contas. Diversas leis orgânicas de tribunais de contas estaduais já foram reformadas para aumentar a consensualidade na sua atuação. Um bom exemplo são os termos de ajustamento de gestão,[6] hoje amplamente disseminados na prática do controle de contas.
O ordenamento já permite e incentiva a utilização de soluções consensuais. Reconhece expressamente que a autocomposição é meio preferencial para resolução de controvérsias. Há permissivos amplos e genéricos para soluções consensuais e para acordos com a administração pública.
Também há o dever, previsto no CPC, de autoridades públicas — especialmente aquelas que, de alguma forma, adjudicam litígios — estimularem soluções consensuais. A lógica foi adotada na Instrução Normativa 91/2022 do TCU, que permite ao relator do processo formular a solicitação de solução consensual (art. 2º, inc. III). Se a busca da autocomposição é um dever dos julgadores judiciários ou administrativos, a capacidade jurídica para instaurar procedimento de solução consensual é inerente à função de julgar.
Também as partes de um litígio efetivo ou potencial devem ter reconhecido o direito implícito de provocar seus julgadores para a criação de oportunidade para solução consensual da questão a ser decidida.
Dessa forma, independentemente de disporem ou não de normas similares à Instrução Normativa 91/2022 do TCU, os tribunais de contas estaduais ou municipais estão juridicamente autorizados à adoção de mecanismos similares de solução consensual. Mais do que permitir, o direito brasileiro incentiva e estabelece deveres para a implantação desses métodos. A aplicação subsidiária do CPC aos processos de controle de contas implica o dever, pelos membros dos tribunais de contas estaduais ou municipais, de fomentar a consensualidade no exercício de suas funções.
Os tribunais de contas estaduais e municipais já alcançaram alto grau de maturidade institucional. Estão capacitados para a adoção de mecanismos de solução consensual. Os tribunais de contas dos estados de Pernambuco e de Roraima, por exemplo, já disciplinaram mecanismos de solução consensual (Resolução 204/2023 e Instrução Normativa 68/2019, respectivamente). Assim como na Instrução Normativa 91/2022 do TCU, as normativas internas dos TCEs (Tribunais de Contas Estaduais) também procedimentalizam o tema e estabelecem normas de organização interna. A ATRICON (Associação dos Membros dos Tribunais de Contas do Brasil) vem difundindo essas iniciativas e estimulando a sua adoção generalizada pelos órgãos de contas.[7]
A complexidade de temas de gestão pública sujeitos ao controle de contas favorece a adoção de soluções consensuais de naturezas distintas e variadas. Também nesse campo, pode haver um sistema “multiportas”, com mecanismos adaptados a cada situação concreta.
Um dos procedimentos já adotado na prática são as chamadas “mesas técnicas”, utilizadas, por exemplo, no Tribunal de Contas do Município de São Paulo (Resolução 2/2020) e nos tribunais de contas dos estados do Rio de Janeiro (art. 197, inc. XXII, de seu Regimento Interno) e do Mato Grosso (Resolução 12/2021). Consistem em reuniões realizadas entre agentes do órgão de controle de contas e da entidade controlada. Por meio dessas reuniões, os envolvidos trocam informações de alto grau de complexidade para buscar soluções melhores para os casos. Não se trata de mecanismo próprio de solução consensual, mas sua estruturação facilita o diálogo e, por consequência, a autocomposição. No mínimo, cria as fundações para o desenvolvimento de métodos de solução consensual.
A Resolução 12/2021 do TCE-MT (Tribunal de Contas do Estado do Mato Grosso) revela, em seus considerandos, que mesas técnicas e práticas consensuais também são embasados nos arts. 20 e 22 da LINDB, relativos à interpretação de valores jurídicos abstratos e à consideração das dificuldades reais do gestor. Nesse sentido, o consensualismo no controle de contas está ligado à deferência ao administrador público e a métodos interpretativos que valorizem a realidade da gestão pública.
As experiências práticas demonstram os benefícios das soluções consensuais.[8] O exemplo do TCU pode ser seguido e até mesmo utilizado como referência por outros órgãos de controle, com as adaptações necessárias à realidade concreta e ao quadro normativo a que cada qual está submetido. Demonstra que a consensualidade e a promoção de soluções negociadas são vetores de eficiência na aplicação do direito público.
Reconhecendo essa evolução, a ATRICON editou a Nota Recomendatória 2/2022, sugerindo, “sempre que possível e nos termos do ordenamento jurídico, a adoção e a implementação de normas voltadas à solução consensual”. A nota reconhece a interação dialógica entre tribunal de contas e administração pública como mecanismo eficiente de controle. Ainda, retira o fundamento de validade da solução consensual diretamente da Constituição Federal (art. 71, inc. IX).
Eventual lacuna procedimental não deve ser um obstáculo para a adoção de soluções consensuais nos tribunais de contas estaduais ou municipais.[9] A reforma da LINDB buscou criar regime de acordos administrativos que prescinde de normatizações internas. O ordenamento brasileiro já fornece exemplos procedimentais que podem ser utilizados de modo analógico, com os cuidados necessários, por tribunais de contas estaduais ou municipais. A Instrução Normativa 91/2022 do TCU, os atos normativos já editados pelo TCE/PE e TCE/RO, a disciplina das mesas técnicas e os arts. 165 e seguintes do CPC são alguns deles. Respeitadas as peculiaridades e o contexto institucional de cada órgão, é possível utilizar esses diversos mecanismos para alcançar melhores soluções no controle de contas.
Os órgãos de controle de contas exercem muitas funções distintas.[10] Em muitos casos, essas funções se confundem. Para dar ainda maior efetividade às soluções consensuais, os tribunais de contas devem separar essas funções e capacitar-se para extrair dos métodos de solução consensual todas as suas virtudes. O receio da sanção não pode contaminar a solução consensual, de modo que os envolvidos se vejam constrangidos a adotar de modo supostamente consensual uma solução contrária aos seus interesses.[11] Caso contrário, a solução consensual não realizará suas funções de pacificação e restauração, tornando-se um arremedo de consensualidade e um obstáculo à solução heterocompositiva aplicável. Para que realizem todo o seu potencial, os mecanismos de solução consensual não devem ser meros instrumentos para chancelar a legalidade de escolhas administrativas.[12]
Sob certo ângulo, tão importantes quanto os acordos alcançados são os processos encerrados sem acordo: são essas desistências que revelam a liberdade real dos envolvidos em deixar de realizar composições que frustrem os interesses que lhes parecem essenciais.[13] A proliferação dos mecanismos de solução consensual nos tribunais de contas estaduais e municipais e a experiência concreta do TCU apresentam desafios teóricos e práticos. Ao mesmo tempo, abrem caminhos para novas práticas no controle de contas. Os tribunais de contas estaduais e municipais devem aproveitar essa oportunidade para aprimorar e tornar cada vez mais eficiente o sistema brasileiro de controle de contas.
[1] Art. 15 do CPC, conforme reconhecido pelo TCU no Acórdão 7.434/2016, Primeira Câmara, Rel. Min. Bruno Dantas, j. 29.11.2016.
[2] “Isso significa que qualquer órgão ou ente administrativo encontra-se imediatamente autorizado a celebrar compromisso, nos termos do art. 26 da Lei, não se fazendo necessária a edição de qualquer outra lei específica, decreto ou regulamentação interna” (GUERRA, Sérgio; PALMA, Juliana Bonacorsi de. Art. 26 da LINDB – Novo regime jurídico de negociação com a Administração Pública. Revista de Direito Administrativo, 2018, p. 146. Disponível aqui).
[3] “Art. 13. […] § 1º A atuação de órgãos de controle privilegiará ações de prevenção antes de processos sancionadores.”
[4] Nesse sentido, cf. LEFÈVRE, Mônica Bandeira de Mello. A vinculatividade e o controle dos acordos substitutivos da decisão administrativa. Dissertação (mestrado) apresentada à Faculdade de Direito da Universidade de São Paulo, São Paulo, 2018.
[5] Os processos em trâmite são: 000.853/2023-2, 000.855/2023-5, 006.223/2023-0, 006.248/2023-3, 006.250/2023-8, 006.448/2023-2, 033.444/2023-4, 020.662/2023-9. Dois acordos foram homologados no plenário, nos processos 006.253/2023-7 e 006.252/2023-0. Apenas houve desistência no processo 006.449/2023-9.
[6] Por exemplo, o art. 93-A da lei orgânica do TCE-MG (Lei Complementar 102/2008 do Tribunal de Contas do Estado de Minas Gerais). Também há previsões internas de termos de ajustamento de gestão, a exemplo da Resolução 59/2017 do Tribunal de Contas do Estado do Paraná, posteriormente incluída na Lei Orgânica do TCE-PR (Lei Complementar 113/2005).
[7] Nota Recomendatória 2/2022.
[8] Por exemplo, o TCU conta com casos de alto sucesso, em termos de economia, na utilização de procedimento de solução consensual. É o caso do Acórdão 1130/2023, de relatoria do ministro Benjamin Zymler e julgado em 7 de junho de 2023, que narra economia de aproximadamente R$ 580 milhões a usuários de energia elétrica em razão de acordo firmado entre a ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica), o Ministério de Minas e Energia e uma geradora de energia elétrica.
[9] Na prática, há utilização de soluções consensuais mesmo com baixa procedimentalização (por exemplo, o Acórdão 1.573/2021 do TCE-PR, Pleno, Processo 236107/20, j. 08.07.2021).
[10] Sobre o tema, MOTTA, Fabrício; GODINHO, Heloísa Helena. Processo de modernização e novas funções dos Tribunais de Contas. Portal Consultor Jurídico, 4 ago. 2022. Disponível aqui.
[11] Sobre possível confusão de funções no primeiro acordo de solução consensual, cf. PALMA, Juliana Bonacorsi de. O TCU e sua consensualidade controladora. Portal Jota, 26 jun. 2023. Disponível aqui.
[12] Cf. VILELLA, Mariana; ROSILHO, André. Carimbo TCU de legalidade. Portal JOTA, 23 ago. 2023. Disponível aqui; e DAMASCENO, Vitória; CARVALHO, Mariana. Só existe consenso com o TCU? Portaria do Ministério dos Transportes submete aditivos de readaptação de contratos ao consenso da corte. Agência INFRA, 20 set. 2023, Disponível aqui.
[13] No TCU, haveria, por enquanto, apenas uma desistência do procedimento de solução consensual. Trata-se do processo 006.449/2023-9, que discute a construção de uma segunda pista de pouso e aterrisagem no Aeroporto de Confins. Nesse caso, informações sugerem que as partes teriam concordado em não construir a segunda pista de pouso, mas não teriam chegado a consenso sobre o valor de possível reequilíbrio econômico-financeiro.