Amanda Pupo, da Agência iNFRA
O julgamento do acordo de repactuação do contrato de ferrovia da MRS no TCU (Tribunal de Contas da União), que pode acontecer na próxima semana, dará uma resposta decisiva à intenção do governo de usar contas vinculadas para pôr de pé seu plano de concessões ferroviárias. Um novo parecer no processo, desta vez da AudFiscal (Unidade de Auditoria Especializada em Orçamento, Tributação e Gestão Fiscal) da corte, foi contrário ao uso do instrumento por entender que os recursos que alimentariam essas contas deveriam tramitar dentro do orçamento federal. A posição final será do plenário do tribunal, onde o caso é relatado pelo ministro Jorge Oliveira, responsável por pedir a opinião da unidade fiscal.
O ponto-chave da discussão é a forma como o governo decidiu fazer o investimento cruzado, previsto desde 2017 em lei para o setor de ferrovias. Depois da experiência das renovações de contratos que começaram em 2020, o diagnóstico foi de que colocar as operadoras de ferrovias para executar obras fora de suas concessões gerou uma série de problemas. Por isso, o Ministério dos Transportes sugeriu que, em vez de construírem uma nova ferrovia, as concessionárias depositem os recursos devidos numa conta vinculada às suas operações.
De lá, o dinheiro iria diretamente para outra concessão, a ser licitada, com obra executada por quem arrematar o ativo no leilão. A operação de transferência seria gerida e fiscalizada pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), enquanto ficaria a cargo do governo definir em qual projeto os recursos seriam alocados. No caso da MRS, o montante que a concessionária poderá depositar nessa conta foi calculado em R$ 2,8 bilhões (veja detalhes nesta reportagem), pactuado no ambiente da SecexConsenso.
Além de entender que esses recursos têm natureza pública, e não privada, como argumenta o governo, a AudFiscal interpretou que o investimento cruzado previsto em lei direcionou seu uso à execução direta das obras pelas concessionárias. “De igual forma, o art. 25 […] instituiu o chamado investimento cruzado. Contudo, o dispositivo se refere a obrigações de fazer – execução direta de obras pela concessionária”, escreveu a unidade técnica no parecer assinado na segunda-feira (8).
“O caso em exame […] configura típica obrigação de pagar valores à União, hipótese em que, uma vez reconhecida a natureza pública desses recursos, impõe-se seu ingresso nos cofres estatais e no ciclo orçamentário. A discricionariedade administrativa na modelagem contratual não pode suplantar normas constitucionais e de finanças públicas de hierarquia superior”, continuou a AudFiscal.
Procurado, o Ministério dos Transportes afirmou em nota que está apresentando esclarecimentos adicionais ao TCU, que incluem nota técnica e pareceres jurídicos.
Novo modelo
No processo, o governo tem argumentado que o mecanismo das contas vinculadas tem amparo jurídico e legal, viabilizado pela lei do investimento cruzado tanto quanto a execução direta das obras pelas concessionárias – que foi autorizada pelo TCU em 2020 na renovação dos contratos de ferrovia da Vale, que ficou então responsável por construir um trecho da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste). Naquele caso, aprovado pela corte, o montante pactuado também não entrou no orçamento federal.
O processo da MRS chegou a ter a votação prevista para a sessão plenária do último dia 3, mas foi excluído da pauta um dia antes diante das discussões internas, mesma data em que o processo foi remetido à unidade técnica fiscal pelo ministro relator.
“A AudPortoFerrovia deixa claro que a proposta é inédita, e que a CSC (comissão de solução consensual) não se debruçou sobre a natureza da conta onde serão mantidos os recursos, ‘optando por deixar que a questão venha a ser disciplinada por regulamentação da Agência a posteriori’”, escreveu Jorge Oliveira. Segundo ele, a AudPortoFerrovia também entendeu que a proposta fechada no acordo seria aderente à Lei 14.273/2021 – que diz que valores não tributários, multas, outorgas e indenizações que a União auferir junto a operadoras ferroviárias devem ser reinvestidos em infraestrutura logística ou de mobilidade.
“Contabilidade e orçamentos criativos”
Após as negociações na SecexConsenso, o MPTCU (Ministério Público junto ao TCU), por sua vez, opôs-se à previsão da conta vinculada, classificando-a como “contabilidade e orçamento criativos”. Última a ser ouvida, a AudFiscal seguiu linha semelhante. Para esta unidade do TCU, na medida em que o acordo não prevê a execução de obras pela MRS, mas o desembolso de recursos destinados a outros projetos, a operação teria “contornos diversos, aproximando-se mais da lógica das receitas públicas do que da gestão de recursos privados”.
“[…] Não se afigura sequer adequado qualificar a hipótese ora examinada como ‘investimento cruzado’. Em verdade, o que se observa é o desvio da regra constitucional de centralização das receitas, mediante o não recolhimento de valores de natureza pública à Conta Única do Tesouro Nacional”, escreveu a AudFiscal.
No contra-argumento da tese de que os recursos deveriam passar pelo orçamento, quem defende a conta vinculada lembra que o dinheiro pactuado na renovação da Vale em 2020 para a construção da Fico também não entrou no caixa do Tesouro – e mesmo assim teve o aval do TCU e a concordância do STF (Supremo Tribunal Federal). A diferença para o mecanismo da conta vinculada, afirmam, é que a concessionária do contrato repactuado deixa de realizar as obras em outra ferrovia fora de seu contrato, deixando a construção para quem efetivamente for operar o ativo a ser licitado, que terá o gap de viabilidade superado a partir do investimento cruzado depositado na conta vinculada.
Vantagem com concorrência
Como mostrou a Agência iNFRA, o Ministério dos Transportes enviou uma nota técnica ao TCU em que apontou uma série de dificuldades impostas pela execução direta em contraposição a benefícios esperados com as contas vinculadas. A pasta argumentou que o modelo gera mais eficiência na aplicação dos recursos por ter maior alinhamento de incentivos.
A avaliação é de que o investimento cruzado com aplicação de recursos é mais transparente porque a obra que receberá o capital é incluída dentro do futuro contrato de concessão que será licitado e passará, portanto, por um processo concorrencial. Dentro do arcabouço de governança desenhado, por exemplo, os futuros projetos ferroviários deverão prever que o critério de leilão será de maior lance de outorga, com compensação do valor a ser transferido para a concessionária. Assim, ganha o certame quem exigir a menor transferência dos recursos do investimento cruzado.
A AGU (Advocacia-Geral da União) também argumentou em parecer que a transferência dos recursos a contas vinculadas traz benefícios de segurança jurídica e previsibilidade contratual. “O mecanismo assegura que a sustentabilidade do projeto não dependerá da existência ou disponibilidade de recursos orçamentários. Isso é particularmente importante considerando que os recursos públicos devem ser prioritariamente direcionados para áreas essenciais como saúde, educação e segurança pública”, afirmou o órgão.








