Rosane Menezes Lohbauer e Rodrigo Barata*
O que é uma agência reguladora? Para quê é criada? Quais suas principais funções e características? Essas são perguntas fundamentais e por vezes pouco compreendidas na Administração Pública. O ímpeto decisório do Poder Executivo (já comprovado em diversos governos de ideologias totalmente diferentes) mingua a ideia da boa regulação e isso está se tornando cada vez mais latente no Brasil, independentemente do governo que capitaneia o mandato executivo. Exemplos de desvirtuamento da ação reguladora não são poucos e, geralmente, atacam algum dos pilares da regulação independente.
Tais pilares, de modo geral, são: a independência decisória, administrativa e financeira. Isso está claro na redação final já votada na Câmara dos Deputados quanto ao Projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras (PL 6621/2016, já remetido ao Senado), conforme o texto do art. 3º da norma em elaboração, o qual pedimos licença para reprodução: “A natureza especial conferida à agência reguladora é caracterizada pela ausência de tutela ou de subordinação hierárquica, pela autonomia funcional, decisória, administrativa e financeira e pela investidura a termo de seus dirigentes e estabilidade durante os mandatos, bem como pelas demais disposições constantes desta Lei ou de leis específicas destinadas à sua implementação”.
Não há nada de novo no texto acima transcrito, quando analisado sob a ótica acadêmica. A regulação independente é mundialmente caracterizada por balizas que asseguram a autonomia e independência do regulador. Essas características são promovidas, basicamente, pela ausência de subordinação hierárquica das agências aos ministérios ou outros órgãos do governo central, os mandatos fixos dos diretores, com prazos não coincidentes e sem possibilidade de demissão por parte do Poder Executivo (salvo casos de falta ou infração graves) e a existência de proposta orçamentária e/ou arrecadação próprias, evitando também a interferência financeira da administração central sobre os reguladores independentes.
Contudo, a Portaria nº 40 da Secretaria de Geologia, Mineração e Transformação Mineral – SGM do Ministério de Minas e Energia – MME, publicada no Diário Oficial da União no dia 18 de fevereiro de 2019 (republicada em 27/02), vai na contramão de tudo acima apontado. Ou seja, o governo federal, de forma expressa e declarada, tolheu a autonomia decisória da Agência Nacional de Mineração – ANM, ao estabelecer, na referida Portaria, que antes de publicar qualquer ato normativo, a ANM deverá encaminhar o documento à SGM, para avaliação de sua adequação, conveniência, oportunidade e pertinência temática. Isso quer dizer que a autonomia e independência decisória da ANM foi reduzida e pode ser até terminada pelo ato normativo unilateral e pouco divulgado, praticado pela SGM. Seria, então, a ANM uma agência natimorta?
Não cessa aí, pois o mesmo ato da SGM ainda estabelece que o MME poderá fazer correções necessárias na norma editada pela ANM, assim como em normas já existentes e publicadas antes da comentada Portaria, o que deixa mais evidente uma visão de subordinação da ANM ao MME. Não se pode esquecer, a propósito, que a ANM foi criada em 2017 justamente para extinguir o antigo DNPM e conferir ao setor minerário maior dinamicidade e independência, tornando a presença estatal nas atividades de mineração algo marginal, na forma de regulação e não com intervenção ou presença controladora do Estado no segmento mineral. Também cabe destacar que, aparentemente, há apoio dos segmentos de infraestrutura do governo federal à aprovação do projeto de lei acima mencionado, dispondo sobre a Lei Geral das Agências Reguladoras. A atuação, portanto, além de contrária aos necessários avanços demandados pelo setor minerário e todos os demais setores vinculados à regulação estatal, afronta um projeto de lei que está em vias de aprovação e deixa clara a inadequação dessa Portaria da SGM. Sem falar, é claro, da própria lei de criação da ANM que, em seu art. 20, determina que “a ANM atuará como autoridade administrativa independente, a qual ficam asseguradas, nos termos desta Lei, as prerrogativas necessárias ao exercício adequado de sua competência”. Há, portanto, uma ilegalidade na Portaria.
Em contrapartida, sabemos da existência do Parecer Vinculante nº AC-51, da Advocacia-Geral da União – AGU que, reconheceu o cabimento de recurso hierárquico ao Ministro de Estado competente, em face de decisões de agências reguladoras que versem sobre políticas públicas definidas para o setor em questão, pela Administração Pública direta competente. Ocorre que ao menos por duas razões, a Portaria da SGM não poderia se valer desse parecer em sua defesa. Primeiro, cabe lembrar que a AGU determinou, concorde-se ou não, a possibilidade de recurso ao Ministro de Estado, ou seja, uma atuação posterior à regulação, mas no caso em tela tratamos de um controle prévio por parte do Ministério, o que é um tanto temerário. O controle prévio, diga-se, é muito diferente da via recursal por diversas razões. Como exemplo cita-se que o controle prévio é absoluto e o recursal incide apenas nos casos em que há provocação por algum interessado/afetado. Além disso, o Parecer da AGU acima referido destaca serem passíveis de supervisão ministerial atos relacionados às atividades administrativas das agências (questões internas, como fornecimento de materiais e contratação de servidores), as que ultrapassem os limites da atuação reguladora previstos na legislação (afronta à lei) ou que violem políticas públicas definidas ao setor regulado. Mas o que seriam tais políticas públicas? O conceito é árido e, por isso mesmo, pode ser compreendido como qualquer ação da ANM, ainda mais quando a Portaria da SGM trata apenas de tais circunstâncias.
Então, a Portaria nº 40, recém-publicada pela SGM, vinculada ao MME, pode até parecer singela ou inofensiva para alguns, pode, ainda, transmitir um controverso senso de legalidade e adequação formais às normas vigentes e orientações do corpo jurídico do governo federal. Mesmo assim, seu texto segue como o apontamento para um grande retrocesso na regulação brasileira – que, diga-se, não vem recebendo a melhor avaliação do mercado e da academia – além de ter sido editada em momento talvez oportunista, em função da realidade do setor, sem contar que sobre ela inexistiu qualquer discussão prévia. Fato é que submeter uma agência reguladora pretensamente independente ao controle prévio do ministério, é o mesmo que determinar que a agência seja mero departamento ministerial, não se podendo sequer falar em agência ou regulação independente.
A norma já é ilegal por violar a lei de criação da ANM e pode ter seu vício ainda mais explicitado se aprovado o projeto de Lei Geral das Agências Reguladoras. Pode ser que, na prática (ou no discurso), o MME indique que não fará um controle preventivo da ação normativa e reguladora da ANM, mas a simples existência dessa norma traz um potencial nocivo à evolução do setor mineral (já abalado com acontecimentos do início do ano) e da própria regulação como um todo. A revisão desse ato é imprescindível.