Gustavo Kaercher Loureiro* e Marcos Nóbrega**
Volta e meia, voltamos a rezar pelo missal de um mundo antigo e simples em tema de análise do regime econômico-financeiro de concessões de serviço público.
O episódio ainda em curso da revisão tarifária extraordinária das distribuidoras de energia elétrica em razão da pandemia do Covid-19 parece exemplificar, em certos momentos, um recuo a este mundo. Tal episódio mostra que parte de nossa doutrina do direito administrativo adotou, em alguns pontos, posições de retrocesso que ela própria, em outras ocasiões, ajudou a combater. Certo: manifestações feitas à vista de casos concretos nem sempre precisam dizer o mesmo que livros que se ocupam de abstrações. Vem à mente a distinção sofisticada proposta por Riccardo Guastini, entre “interpretação em concreto” e “interpretação em abstrato”1 e há muitos modos de justificar ocasionais descompassos – mais ou menos evidentes.
À parte questões de coerência; à parte elogios à introdução de saudáveis mecanismos de mercado no âmbito dos serviços públicos; à parte adesões enfáticas a novas políticas tarifárias que, no lugar das antigas, não mais seriam certificados de seguro universal contra intempéries e que promoveriam a “eficiência” aproveitando-se da disposição do empresário privado a tomar riscos; à parte rejeições à aplicação da antiquada Lei 8.666/1993; à parte afirmações sobre a necessidade de se liberar o exercício de funções econômicas (sentido lato) da tutela estatal; à parte tudo isso, diz-se, assistimos nesse episódio das distribuidoras a certas tomadas de posição que parecem fazer recuar o tempo. Em algumas manifestações produzidas no âmbito da Consulta Pública 35 insinua-se a ideia do Estado provedor universal ou de sócio das horas ruins que arca, sem muito examinar e perguntar, com todos os insucessos inesperados no desempenho da atividade concedida. Corre-se ao abraço da outrora indesejável e vilipendiada Lei 8.666/1993. Agarra-se a tiras da Constituição para sustentar a tradicional e “sã” interpretação contra arroubos hermenêuticos “novidadeiros”2. Vai-se à caça de equações originais (que, se forem encontradas, não serão de muito agrado de quem quer que seja). E por aí vai.
Volta-se, em resumo, ao ninho do que os autores, no estudo que ora apresentam, chamaram de teoria tradicional do equilíbrio econômico-financeiro (TTEEF, para simplificar).
Em artigo de longo título (“Equilíbrio econômico-financeiro de concessões à luz de um exame de caso: incompletude contratual, não ergodicidade e incerteza estratégica”3), a TTEEF foi descrita em seus traços característicos, para logo depois ser desafiada nas dimensões normativa e econômica. Ela é ingênua, mistificadora e equivocada. E se a tinha por estar em vias de ser superada, não fosse o episódio de recaída que estamos vivendo já na primeira onda da pandemia. No estudo em referência, procuramos mostrar que a TTEEF briga com a regulação setorial (indústria elétrica), com o direito positivo mais geral sobre concessões de serviço público e com a racionalidade econômica subjacente aos contratos de concessão. A TTEEF é ingênua em seus pressupostos de funcionamento e em sua concepção de como é, de fato, um contrato desse tipo. Ela é mistificadora em sua leitura do direito positivo brasileiro e equivocada em relação ao que caracteriza a execução indireta de serviços públicos – de que a concessão é o caso paradigmático. Nesse estudo procuramos mostrar, em síntese, que a TTEEF é apenas uma teoria, um discurso prescritivo e não descritivo do direito vigente. Por ela infiltram-se interesses e visões de mundo, legítimas o quanto forem, mas não narrativas de estados de coisas normativos e fáticos.
Para executar semelhante empreitada, fizemos um exame de caso. Tomamos como fio condutor da exposição da regulação setorial o primeiro contrato de concessão (de distribuição) da indústria elétrica celebrado sob a égide de novas normas, ainda em 1995, poucos dias depois da edição da Lei 9.074/1995, e o seguimos ao longo de sua execução. A constatação que emerge desse exame de caso é singela: a TTEEF não foi de grande ajuda, seja para orientar a confecção do contrato seja para balizar seu desenvolvimento. Já contrato, em si mesmo considerado, é um monumento à incompletude e à incerteza e não distribui áleas exatamente como preconizado pelo missal da ortodoxia. Na verdade, o negócio jurídico deveria ser tido por nulo caso devesse ser apreciado à luz da TTEEF (convida-se o leitor a procurar ali a tal “equação original” a ser mantida incólume ao longo de todo o tempo da concessão). Passando do contrato às suas vicissitudes, o que a ele se seguiu pode ser, sem muita dúvida, qualificado como uma avalanche de alterações unilaterais do contrato, típica álea extraordinária. Algumas foram muito profundas – assim a mudança de política tarifária, a introdução das revisões tarifárias ordinárias, a completa reorganização dos ambientes de contratação, o modo de se relacionar a distribuidora com os consumidores livres etc. – e de consequências duradouras. Nenhuma delas foi tratada segundo o dogma. Da mesma forma heréticas foram as formas de lidar com outra espécie de álea, aquela extracontratual e extraordinária. Que o digam os episódios da “racionalização” e do “racionamento”.
Esses desvios da “sã doutrina” levam a um impasse. Ou o Contrato 01/95 deve ser tido por nulo ab ovo, e os eventos subsequentes constituíram uma afronta seriada e sistemática ao direito; ou a sã doutrina é em grande medida só doutrina, o rei está nu e não há um desfile de horrores jurídicos, mas um direito diferente do que a TTEEF preconiza.
Para tentar solver o mistério, fomos aos textos do direito positivo geral: Constituição, Lei 11.079/2004, Lei 8.987/1995 e Lei 8.666/1993. De modo grosseiro: a Constituição pouco ajuda (mas é necessário falar, e falar muito, sobre ela, dada a mistificação que a TTEEF faz em torno do assunto); a Lei 11.079/2004 vai contra o que seria de se esperar, tivesse foro de direito vigente a TTEEF; a Lei 8.987/1995 recolhe, sim, alguns elementos da teoria tradicional, mas (i.) tem uma lógica de repartição de riscos prima facie diferente daquela tradicionalmente afirmada (ainda e sempre o art. 2º, II); (ii.) tem certas repartições de riscos mandatórios (§§ 3º e 4º do art. 9º); e (iii.) reconhece que, em última instância, de tudo isso decide o contrato (art. 10). Por fim, a Lei 8.666/1993, em particular seu art. 65, II, d, não é a panaceia universal e porto seguro de último recurso.
No artigo que ora estamos apresentando, concluímos que, às vezes, teorias são apenas teorias:
Do exame das normas gerais sobre o REF de concessões de serviço público avulta um quadro normativo lacunoso, fragmentado e, em grande medida, flexível (porque genérico). É dizer: o direito positivo brasileiro apresenta-se bem menos completo, sistemático e compacto do que a TTEEF faz supor. Por certo, seus textos empregam um vocabulário ou tipologia de eventos conhecida da tradição (não poderia ser diferente), mas essa circunstância não é minimamente suficiente para que se conclua que o ordenamento jurídico reproduziu os significados, os conceitos, os institutos e os preceitos da teoria tradicional, em toda a sua extensão. Não se define, em momento algum, o que seja o “equilíbrio econômico-financeiro”; não se postula a manutenção da equação T0; não se dá sempre o mesmo tratamento para diferentes áleas (ordinária e extraordinária); não se veda o uso de mecanismos que reconfiguram, continuamente, o arranjo econômico da concessão etc. Há muitos espaços em branco, a serem preenchidos por escolhas e pelo bom uso da discricionariedade do Regulador. No máximo, o que se pode dizer é que o direito positivo brasileiro acolheu (ou constituiu), de modo pontual, aspectos parciais da TTEEF (como o caso do § 4º do art. 9º da Lei 8.987/1995); ou que a teoria serve – para quem com ela estiver de acordo – como diretriz hermenêutica, a sugerir – jamais impor – esta ou aquela interpretação possível de certo dispositivo.
Se assim estão as coisas, convém, então, buscar auxílio para compreender a dinâmica dos contratos de concessão em outras ciências e racionalidades que com o direito travem um diálogo informado e biunívoco. Foi o que fizemos, na parte final do estudo.
Analisamos que a teoria econômica neoclássica que está por trás da idéia de equilíbrio econômico-financeiro dos contratos complexos e relacionais no direito brasileiro é incapaz de oferecer respostas adequadas. Isso porque a falácia da restauração de um equilíbrio primevo estabelecido no momento T0 é enganosa e acaba por espraiar pela execução contratual uma plêiade de ineficiências e distorções.
Contratos dessa ordem, como é o caso do contrato de concessão analisado nesse trabalho, acabam por promover múltiplos equilíbrios ao longo da sua execução que devem ser considerados na análise dos pleitos de equilíbrio econômico-financeiro. Dessa forma, sob a perspectiva econômica, é bastante problemática a identificação de uma equação econômico-financeira original (diferentes metodologias, inúmeras variáveis etc.) que deverá ser buscada (ou resgatada) ao longo da execução contratual. Isso porque o equilíbrio inicial serve apenas como ancora teórica para a formatação do contrato, mas provavelmente voltar a esse momento T0 é impossível.
Assim, resta concluir que as premissas sob as quais se baseia a TTEEF são questionáveis, e no lugar delas há que se reconhecer a incompletude dos contratos vis à vis a sua dinâmica complexa, sobremodo em situações de equilíbrio não linear. E, portanto, precisamos encontrar outra “tecnologia jurídica” para reequilibrar esses contratos.