A (nova) resolução 112 da ANTAQ e a cobrança de armazenagem adicional de cargas

Rafael Wallbach Schwind* e Stella Farfus Santos**

Entrará em vigor no dia 1º de abril de 2024 a Resolução 112 da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), que estabelece critérios para identificação do agente responsável pela armazenagem adicional de carga nas instalações portuárias. A nova Resolução é resultado do Acórdão 94/2024, proferido na 560ª reunião ordinária de diretoria da agência.

Por armazenagem adicional, consideram-se as situações nas quais, em regra, um agente entrega sua carga a um terminal portuário para posterior embarque em um navio, mas a carga, por algum motivo, acaba permanecendo sob custódia do terminal por mais tempo do que o contratado, o que gera um serviço adicional de armazenagem.

Antes da Resolução 112, havia previsões que atribuíam a responsabilidade pelo pagamento dos valores adicionais ao agente que “deu causa” ao evento. Entretanto, sempre houve muita litigiosidade em torno do assunto.

Diante desse cenário, a ANTAQ decidiu alterar as normas sobre o assunto, o que se deu justamente com a Resolução 112.

O enfoque da nova Resolução: do nexo causal ao estabelecimento de uma matriz de risco
A grande inovação da Resolução 112 consiste na alteração do modo como se trata o problema.

As normas anteriores da ANTAQ endereçavam a questão com fundamento no nexo causal entre o evento ocorrido e a despesa gerada. Ou seja, o usuário ou embarcador, em tese, só poderiam ser obrigados a pagar pela armazenagem adicional nos casos em que “deram causa” à situação que gerou o serviço em questão. Era essa a fórmula utilizada pela Resolução 62/2021 (art. 15) e pela Resolução 72/2022 (art. 12, XLII), bem como outras anteriores que não estão mais em vigor.

Entretanto, em muitos casos simplesmente não havia como definir com precisão quem tinha dado causa à ocorrência. Muitas delas derivavam direta ou indiretamente de eventos da natureza que impediam ou atrasavam a chegada do navio e, por conseguinte, inviabilizavam o embarque da carga no prazo combinado.

Em outras situações, havia discussão sobre quem teria dado causa ao atraso ou omissão do navio, e essa incerteza era prejudicial ao terminal portuário porque dificultava a definição de quem deveria pagar pelo serviço de armazenagem adicional (inegavelmente prestado).

A Resolução 112 supera a visão do nexo causal. Seu foco está no risco da atividade, ou seja, na definição de quem assume o risco correspondente à situação concreta que deu ensejo à armazenagem adicional.

Nesse sentido, o anexo da Resolução 112 estabeleceu uma matriz de risco que, de acordo com o art. 2º, “deverá ser utilizada na apuração dos casos concretos que objetivem identificar o agente responsável pela armazenagem adicional e pelos serviços e custos decorrentes nas instalações portuárias” considerando o risco inerente à atividade exercida por cada agente.

O voto condutor do acórdão proferido no Processo Administrativo 50300.006171/2022-50, em que foi aprovada a edição da nova norma, esclareceu a questão:

35. Nota-se que nem sempre o agente terá diretamente dado causa ao evento passível de gerar custos com a armazenagem adicional, mas poderá suportar esses custos, em virtude do risco intrínseco a cada atividade.
(…)
37. A esse respeito, reafirmo que o escopo da matriz foi exatamente abordar a maior gama de eventos de maneira que, para alguns deles, o agente não terá diretamente concorrido.

O voto inclusive narra que a ANTAQ cogitou “a possibilidade de compartilhamento de riscos nas hipóteses em que os agentes não tenham concorrido para determinado evento”. Entretanto, a hipótese foi afastada sob o entendimento de que “o compartilhamento desses riscos seria de difícil implementação, sobretudo porque as métricas estabelecidas poderiam se balizar em parâmetros subjetivos, não conferindo segurança regulatória para o setor” (parágrafos 46 e 47 do voto condutor).

Portanto, a Resolução 112 supera a visão do nexo causal e transfere o foco da agência para o risco da atividade.

A matriz de risco estabelecida
Na prática, em cada caso concreto, a ANTAQ deverá analisar a situação com base na matriz de risco instituída pela Resolução 112, que foi estabelecida da seguinte forma:

EventoCausasResponsabilidade
Atraso na entrada da carga na instalação portuáriaGestão logística do gate do terminalInstalação portuária
Problemas logísticos rodoviários (acidentes, congestionamento, bloqueios, planejamento logístico etc.)Usuário
Greve de caminhoneirosUsuário
Atraso para embarque da carga já armazenadaGreve ou outros movimentos de servidores da Receita Federal ou outros órgãos intervenientesUsuário
Atuação da administração pública (restrições aduaneiras e sanitárias), ou não embarque por decisão do usuárioUsuário
Problemas técnicos da instalação portuária (sistema, equipamentos etc.)Instalação portuária
Problemas técnicos do operador portuário, quando as operações ocorrerem na infraestrutura comum do porto organizadoOperador portuário
Corte de carga por decisão do operador portuário, quando as operações ocorrerem na infraestrutura comum do porto organizadoOperador portuário
Indisponibilidade de berço dentro da janela de atracação (dragagem de berço, atraso do navio precedente, baixa produtividade etc.)Instalação portuária
Ajustes na gestão comercial (overbooking, corte de carga, quebra de lote/cut&run)Transportador marítimo
Corte de carga por decisão da instalação portuáriaInstalação portuária
Problemas técnicos na embarcaçãoTransportador marítimo
Omissão de escala ou interrupção abrupta da operação de entrada da embarcação (inclusive se causados por problemas de acesso ao canal do porto)Transportador marítimo
Atraso na chegada do navio ao porto, devido à gestão náutica (planning, schedule, intempéries, variação de maré, descasamento do ETA à janela de atracação pré-estabelecida, etc.), acidentes ou problemas técnicos no percurso, aventura marítima, atrasos em portos anteriores, informação errada de ETA de acordo com a Janela de Atracação pré-estabelecida, etc.Transportador marítimo
Atraso para retirada da carga na instalação portuáriaGreve de caminhoneirosUsuário
Atuação da administração pública (Restrições aduaneiras e sanitárias)Usuário
Greve ou outros movimentos de servidores da Receita Federal ou outros órgãos intervenientesUsuário
Problemas logísticos rodoviários (acidentes, congestionamento, bloqueios, planejamento logístico etc.)Usuário
Problemas técnicos da instalação portuária (sistema, equipamentos etc.)Instalação portuária
Problemas técnicos do operador portuário, quando as operações ocorrerem na infraestrutura comum do porto organizadoOperador portuário

A matriz contemplou de forma expressa vinte situações que podem ensejar a cobrança de armazenagem adicional, alocando o risco de cada uma delas a um agente econômico específico. Trata-se das causas constatadas com mais frequência pela ANTAQ nos conflitos envolvendo o tema.

Em decorrência da instituição da matriz de risco, a Resolução 112 fez alguns ajustes em previsões de penalidades.

Foi criado o inciso IX no art. 30 da Resolução 62, prevendo como infração administrativa de natureza média deixar de arcar com os custos e serviços decorrentes da armazenagem adicional quando o agente for o responsável, considerando o risco inerente à atividade que exerce.

Além disso, foi ajustada a redação do inciso XLI do art. 33 da Resolução 75 da ANTAQ. Em vez de prever que constitui infração cobrar, exigir ou receber valores dos usuários quando eles “não deram causa” à armazenagem adicional, a norma passou a prever a penalidade para os casos em que os usuários “não puderem ser responsabilizados” pela armazenagem adicional.

A questão dos casos omissos
Além das causas expressamente contempladas pela matriz de risco estabelecida pela Resolução 112, poderão ocorrer outras que desencadeiem a necessidade de armazenagem adicional de cargas nas instalações portuárias. Afinal, é impossível que toda a complexidade do mundo real seja apreendida por uma matriz de risco normativa.

Justamente por isso, a própria Resolução 112 esclareceu que a matriz de risco estabelecida não é exaustiva e que eventuais casos omissos deverão ser decididos pela diretoria da ANTAQ (art. 2º, parágrafo único, da Resolução 112).

A necessidade do constante aprimoramento da matriz de risco
Além dos “casos omissos”, pode vir a ser necessário um constante aprimoramento das hipóteses que já constam da matriz de risco. Trata-se dos casos em que a matriz de risco não é necessariamente omissa, mas pode não ter contemplado toda a diversidade de possibilidades.

Um exemplo ilustra o que se afirma aqui. De acordo com a matriz de risco instituída pela Resolução 112, a indisponibilidade de berço é um risco alocado à instalação portuária – provavelmente porque ela gere os seus berços e, portanto, responde pelas eventuais indisponibilidades.

Entretanto, em muitos portos, os berços de atracação são públicos de uso não exclusivo. Sua gestão cabe à autoridade portuária, que define as janelas de atracação, horários e condições de utilização. Assim, a matriz de risco poderia ser aprimorada para rever a atribuição de risco à instalação portuária nos casos em que o berço não é de uso exclusivo.

Trata-se apenas de um exemplo. Outros similares poderiam ser mencionados. É natural que a matriz de risco seja constantemente revista e aprimorada.

O direito a indenização ou de regresso
A Resolução 112 não afasta a possibilidade de direito a indenização ou de regresso. Isso porque uma questão é a relação jurídica regulatória e a criação da matriz de risco pela ANTAQ; outra questão é a relação jurídica entre os envolvidos.

Considere-se o mesmo exemplo dado acima, que contempla a existência de um berço de atracação de uso não exclusivo. Aplicando-se estritamente a matriz prevista na Resolução 112 da ANTAQ, o risco da indisponibilidade do berço foi alocado à instalação portuária.

Entretanto, se a indisponibilidade se deu por um ato da autoridade portuária ou de um terceiro (por exemplo, uma empresa de dragagem escolhida pela autoridade portuária e que executou um serviço defeituoso), caso a instalação arque com o risco perante seu cliente, ela terá o direito de ser ressarcida pela autoridade portuária ou pela empresa de dragagem pelos danos decorrentes da impossibilidade de cobrança junto a terceiros.

Afinal, a regra regulatória não pode afastar um direito subjetivo do agente econômico envolvido, que pode buscar uma indenização junto àquele que lhe causou um dano.

O mesmo se aplica às hipóteses que em princípio não contemplam um aprimoramento da matriz de risco. Suponha-se que o berço do mesmo exemplo acima seja de uso exclusivo da instalação portuária, mas sua indisponibilidade se deu por conta de um terceiro (uma embarcação encalhada ou um serviço defeituoso de dragagem contratado pela própria instalação).

Nesse caso, a instalação, mesmo arcando com o risco, tem o direito de buscar uma indenização junto ao terceiro que lhe causou a situação que impossibilitou a cobrança.

A possibilidade de ajustes contratuais privados
A Resolução 112 da ANTAQ não afasta a possibilidade de ajustes contratuais privados entre os interessados, os quais poderão estabelecer soluções diversas daquelas contempladas na matriz de risco regulatória.

O setor portuário baseia-se fortemente na liberdade negocial não só de preços mas também de outras condições de prestação dos serviços. O fato de a matriz de risco da Resolução 112 da ANTAQ atribuir um risco a um agente econômico específico não impede que haja um contrato privado entre ele e seu cliente estabelecendo uma condição diversa.

A Resolução não afasta a liberdade negocial típica do setor portuário e da generalidade das relações jurídicas privadas. Trata-se de uma questão de política comercial de cada agente econômico.

Considerações finais
A Resolução 112 representa um marco relevante na regulação de um assunto tormentoso, que vem gerando discussões há muitos anos. A ANTAQ desempenha um trabalho muito dedicado à revisão de suas normas, com ampla discussão, o que é muito positivo e digno de aplausos.

No caso específico, a nova forma de abordagem do problema (risco da atividade) tem a virtude de ser mais objetiva do que a anterior (fundada no nexo causal). Entretanto, sua aplicação deve se dar com cautela para que não haja a violação de direitos constitucionais.

Deverão ser observados a liberdade negocial das partes e o direito de indenização (ou mesmo de regresso). Além disso, estima-se que um constante aprimoramento da matriz de risco seja natural.

Quanto aos interessados, provavelmente será necessário revisar práticas operacionais e comerciais. O prazo para entrada em vigor da norma é bastante curto e desafiador.

Por fim, será muito importante que a Agência avalie os resultados da nova norma, possivelmente por meio de uma ARR (Avaliação de Resultado Regulatório). Isso porque o assunto é complexo e os efeitos (positivos e negativos) da norma deverão ser examinados à luz do que era pretendido pela agência.

*Rafael Wallbach Schwind é doutor e mestre em Direito do Estado pela Universidade de São Paulo, visiting scholar na Universidade de Nottingham e sócio de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados.
**Stella Farfus Santos é especialista em Direito Administrativo e sócia de Justen, Pereira, Oliveira e Talamini Advogados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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