Brasil pode triplicar a demanda de energia até 2050 sem aumentar as emissões, diz Mario Veiga

Roberto Rockmann*

 O ano de 2020 foi da depressão; 2021, da euforia; 2022, do choque de realidade. Agravado por evidências de que as mudanças climáticas se aceleraram, o choque vem acompanhado com uma mudança de mentalidade. Em vez de mitigar os impactos, o mundo já começa se inclinar em relação às tecnologias de adaptação com as mudanças climáticas, afirma o fundador da PSR e ex-assessor da Presidência da República no racionamento de 2001, Mario Veiga. Para ele, esse é o pano de fundo em que a COP27 (27ª conferência do clima da ONU) ocorrerá no Egito de 6 a 18 de novembro.  
 
Para o Brasil, criam-se oportunidades em relação à resiliência em agricultura e energia. Segundo Mario Veiga, o Brasil poderia fazer a transição energética até 2050 sem emissões, com a demanda nacional de energia elétrica triplicando dos atuais 60 mil MW médios para 180 mil MW médios no período.
 
Como? Investindo apenas em fontes renováveis, não renovando contratos de termelétricas e criando um novo nicho com a produção de hidrogênio verde a partir de etanol, ampliando o alcance do setor sucroalcooleiro.
 
O segmento de usinas reversíveis poderia ser destravado, revitalizando fabricantes de máquinas e equipamentos hidrelétricos, fugindo da inflação global que deverá atingir as baterias. O gás do pré-sal ainda poderia permitir a construção de termelétricas a gás natural neutras em carbono e posicionadas em cima de plataformas de petróleo. A seguir os principais trechos da entrevista à Agência iNFRA
 
Agência iNFRA – A guerra entre Ucrânia e Rússia e seus desdobramentos enterraram a pretensão do mundo de limitar o aumento de temperatura global em 1,5 grau Celsius? 
Mario Veiga – A guerra em si não enterrou a ideia, mas há vários elementos que apontam que vivemos um momento de choque de realidade e de adaptação, já que as mudanças climáticas parecem ter se acelerado. O cenário de 2022 é uma catástrofe. É diferente dos últimos dois anos. Por quê? O ano de 2020 foi de preocupação, não se achava que o Acordo de Paris seria cumprido. Já 2021 foi um ano de euforia, já que, apesar dos gastos trilionários com a Covid, Europa e Estados Unidos reafirmaram a intenção em investimentos em fontes renováveis.
 
A BlackRock, com seus US$ 9 trilhões em ativos, fez um comunicado em prol da agenda ESG, o que levou a uma pressão para que empresas se posicionassem. A GFANZ (Glasgow Financial Alliance for Net Zero), que reúne empresas com ativos superiores a US$ 130 trilhões, passou a ser o carro-chefe do processo de descarbonização. Havia expectativa de que custos de eólicas e solares iriam cair ainda mais. O otimismo se desfez. Esse ano aqui é de catástrofe. 
 
Por que 2022 é ano da catástrofe? 
Primeiro: a crise mundial de combustíveis e o consequente aumento dos preços dos derivados levaram a uma debandada de empresas que estavam orientadas na agenda de descarbonização. Começaram a se esvaziar as promessas. Há ainda um problema estrutural no mercado mundial de óleo e gás porque as petroleiras pararam de investir em razão do otimismo do passado com a agenda verde e porque muitos investidores não queriam mais investir em ativos poluentes.
 
Segundo: houve ainda muito processo de greenwashing, com críticas também em relação ao offset (mecanismos de compensação de carbono). Muitas empresas compravam offsets de carbono respaldados em plantios de árvores. Artigo publicado recentemente mostrou que os incêndios na Califórnia emitiram 120 milhões de toneladas de CO2, dobro do que a Califórnia economizou em 18 anos.  
 
Isso aponta que a transição não é feita de um dia para a noite? 
Vivemos o choque de realidade, a guerra entre Ucrânia e Rússia pode ter levado a isso. No lado da descarbonização, há más notícias. Nos Estados Unidos, quando se anunciou em agosto a Lei de Redução da Inflação (IRA), viu-se que resistências de ambientalistas nos últimos anos tinham dificultado expansão do sistema de transmissão. Isso terá de ser superado.
 
No lado da Europa, havia a aversão de europeus em relação à energia nuclear. A Alemanha fez pesados investimentos em solar e descomissionou as nucleares, mas suas emissões líquidas pioraram: o que ela perdeu de energia limpa das nucleares é mais do que ela ganhou de energia limpa com as solares. A Holanda tem reservas grandes de gás e poderia enviar o insumo e cobrir cerca de 50% do que a Rússia escoava para a Europa.
 
Mas, por conta de terremotos causados pela perfuração de poços que afetavam 16 mil famílias de uma pequena cidade, paralisou-se essa produção. Isso mostra a complexidade do tema. E há um detalhe importante desses últimos dias: a ONG do Bill Gates destinada a financiar projetos envolvidos na causa climática, a Breaktrough Energy, anunciou que vai focar em tecnologias de adaptação. Isso mostra uma inflexão importante no cenário. 
 
Por quê? 
A Breaktrough Energy anunciou que está cada vez mais claro que adaptação precisará desempenhar um papel importante à medida que as emissões globais continuam aumentando. O sinal é “vamos torcer para dar certo, mas teremos de ter o plano B, que é adaptação”. É uma batalha muito difícil de ser travada.
 
Há duas semanas, na Holanda, na abertura do Congresso Mundial sobre Hidrogênio Verde, Michael Liebreich, fundador da Bloomberg NEF, afirmou que a tecnologia parece estar vivendo uma bolha. Destacou que a ideia de que o hidrogênio verde é uma bala de prata também é perigosa.
 
Por isso, eu repito que há um choque de realidade. A quantidade de incêndios, secas, enchentes crescentes é uma evidência de que o processo de mudança climática está sendo acelerado.  
 
E o Brasil? 
Adoro uma frase: prepare-se para o pior, torça pelo melhor. É preciso tornar-se resiliente. Dois dos setores mais críticos para a resiliência são alimentos e energia. Somos autossuficientes e exportadores em energia e até 2050 temos um estudo para o Banco Mundial que aponta que poderíamos expandir nossa matriz apenas com fontes renováveis.
 
A demanda média hoje é de 60 mil MW médios. A demanda de energia elétrica em 2050 seria o dobro. A demanda adicional de energia elétrica causada pela descarbonização de setores como transportes e indústria seria de outros 60 mil MW médios.
 
Vem a pergunta: é possível fazer a transição de 60 mil MW médios para 180 mil MW médios sem emissões nesse horizonte? Sim. Poderíamos até 2050 não renovar contratos de termelétricas que expirassem e poderíamos substituir por eólicas, solares e usinas reversíveis. Mas e as mudanças climáticas? Fizemos uma complementação para a mudança de padrão de afluências, de ventos e os dados mostram que se podem fazer investimentos para maior resiliência. 
 
Qual seria a estratégia para o Brasil? 
Nossa visão é de que o Brasil deveria investir em atividades de não arrependimento, que fariam sentido mesmo sem as mudanças climáticas. Quais seriam esses setores? Um é a madeira laminada cruzada, um painel de madeira colada em lâminas que suportam grandes cargas, possibilitando a construção de vários pavimentos.
 
É um novo produto de engenharia introduzido no mercado mundial nos últimos 20 anos. Com essas estruturas, fazem-se prédios de 20 andares, resistentes a incêndios. Podem ser pré-fabricados. Há muito no Oregon, nos Estados Unidos, e nos países nórdicos. Há empresas no Brasil já com essa tecnologia.
 
Outro ponto é o hidrogênio verde, há interesse da Europa em importar essa tecnologia. O plano A na cabeça das pessoas é produzi-lo a partir da eletrólise com fontes renováveis, mas já há evidências relevantes de que pode ser mais barato fabricá-lo a partir de etanol. 
 
Isso abre a oportunidade de revitalização da indústria sucroalcooleira? 
Isso também abre uma discussão se deve haver incentivos para importação de carros elétricos, porque eles no tempo poderão ficar muito mais baratos do que são hoje. Então ter diversas aplicações na indústria sucroalcooleira pode ser muito interessante. O etanol poderia ser o “carregador” do hidrogênio. O etanol já tem hidrogênio e é fácil extrair dele.
 
O hidrogênio é um gás. Levar para Europa implica usar navios especializados em transportar hidrogênio liquefeito. Isso é muito caro. Outra saída é levar o hidrogênio embutido em outro elemento, ou seja, carregado por esse elemento, que pode ser amônia ou então o etanol.
 
Quando se olha o custo total até a Europa, como se leva o produto faz muita diferença. Na cana-de-açúcar, há ainda um subproduto que é a linhaça. Existe uma tecnologia que extrai da linhaça o biometano e transporta esse gás por meio de gasodutos e se usa para fabricar fertilizantes. Já há projetos iniciais disso no Brasil.  
 
Antes você falou que o Brasil poderia investir em usinas reversíveis. Esse é um nicho importante? 
O Brasil tem particularidades. Tem grandes hidrelétricas que poderiam ser mega baterias de energia. Há ainda possibilidade de usinas reversíveis de ciclo fechado. Isso deve ser incluído no novo Plano Decenal. Para ter uma bateria que funcione para o setor elétrico, o tempo de armazenamento tem de ser maior que o de uma bateria que se usa em casa.
 
Grosseiramente, uma bateria de lítio-íon custa US$ 100 por Kwh. Elas têm capacidade de oito horas de armazenamento. Há a ideia de que elas precisariam ter 80 horas. Para construir uma reversível com oito horas de armazenamento, ela custa os mesmos US$ 100 por Kwh, mas se for para 80 horas o custo é US$ 17.
 
O segredo é escala?
Sim, escala. Isso faz muito sentido para o Brasil, ainda mais que as baterias de lítio devem ficar mais caras porque esse é um metal que será cada vez mais demandado e também é usado em carros elétricos, ou seja, se pode driblar essa inflação de custos das baterias.
 
Isso mais uma vez não é jabuticaba, a Austrália vem investindo muito nessa tecnologia. Não é uma reserva de mercado, seria também uma forma de reativar a indústria de máquinas e equipamentos hidrelétricos.  
 
O gás e o GNL (gás natural liquefeito) são hoje um insumo disputado no mundo. O Brasil tem o gás do pré-sal, isso também poderia criar oportunidades? 
Uma outra alternativa fora da caixa e que poderia dar ao Brasil um papel diferenciado no mundo: térmicas neutras em carbono com o gás do pré-sal. Estamos examinando a ideia de colocar uma termelétrica em cima de uma plataforma de extração de petróleo a partir de um artigo publicado pelo Centro de Pesquisas da Petrobras.

Como o gás vem associado ao óleo e as plataformas não têm gasoduto para escoar o insumo e há limites para queima e reinjeção, todas as plataformas no Brasil têm sistemas de captura e armazenamento de carbono.
 
A grande dor de cabeça disso é onde vai se colocar isso. Tem de buscar locais como cavernas ou com boa formação geológica e que não ocorram vazamentos. Hoje o gás vem da plataforma, é colocado em gasoduto em terra e se liga a termelétrica e se retira o carbono, mas geralmente os locais das usinas estão distantes de onde se pode armazenar o carbono.
 
Fazer a termelétrica na plataforma seria uma opção diferenciada. As petroleiras não têm interesse no gás que vem associado, elas têm foco no ouro negro. Boa parte do gás não tem mercado e vai para a reinjeção. Com a térmica na plataforma, em vez de reinjetar o gás, injeta-se o CO2 e se tem uma térmica neutra em carbono.
 
Essa nova tecnologia é ficção científica? Não. A Siemens, por exemplo, vende térmica em contêiner. Esse gás extraído pode gerar eletricidade na termelétrica. A energia elétrica seria distribuída por cabos de corrente contínua. Isso é possível mesmo? Sim. Está se tornando rotineiro, a Austrália e a Islândia estão trabalhando em projetos com mais de 2 mil quilômetros de extensão.
 
Com as eólicas offshore, essa tecnologia deve cair ainda mais de custo. Essa ideia é boa para o Brasil porque são poucos os países que têm plataformas de captura de carbono e poucos com geração de energia na plataforma. Nenhum país tem maciçamente as duas coisas. O Brasil pode ter um portfólio de tecnologias que seriam boas para o Brasil.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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