Entrevista: governo deveria dar incentivo para biogás e biometano, defende Renata Isfer

Marisa Wanzeller, da Agência iNFRA

Renata Isfer, presidente-executiva da Abiogás (Associação Brasileira de Biogás) e ex-secretária de Petróleo, Gás e Biocombustíveis de Minas e Energia defende que o governo trace uma política de incentivo para a geração de energia a partir do biogás (combustível oriundo da decomposição de materiais orgânicos) e do biometano (gás resultante da purificação do biogás).
 
“A gente defende o incentivo ao produtor. Então, por exemplo, vários estados já têm alguma redução de ICMS. É importante não sermos o único biocombustível que não tem um plano de participação no mercado”, disse, em entrevista à Agência iNFRA.
 
Renata Isfer falou também sobre as expectativas do setor pela aprovação do PL (Projeto de Lei) do Mercado de Carbono no Congresso Nacional e pelo relatório do PL do Combustível do Futuro. Além disso, apontou para a importância das políticas de reindustrialização do Brasil. Confira a seguir os principais pontos da entrevista:
 
Agência iNFRA – Quais são as expectativas da Abiogás para o setor neste ano?
Renata Isfer – Eu acho que dá para começar dizendo que a gente vive um momento muito especial no setor de biogás e biometano Até hoje, teve aquele grande potencial, mas um assunto que não se falava muito. Com os últimos acontecimentos, o assunto foi ganhando relevância tanto internacional, quanto nacional.
 
No cenário nacional principalmente a parte de biometano começou a se viabilizar há pouco tempo, depois que a gente conseguiu ter finalmente alguma política que se aplicasse o Reidi (Regime Especial de Incentivos para o Desenvolvimento da Infraestrutura) e o RenovaBio (política nacional de biocombustíveis). E, com o nascimento das primeiras plantas de biometano, o pessoal começa a prestar atenção e vê “Opa! Tem uma oportunidade de negócio aí”. Mas hoje, o que está com uma perspectiva de maior crescimento é o biometano.
 
Por que o biogás não tem a mesma perspectiva de crescimento agora?
O biogás é base do biometano. Ele é feito de resíduos, tem todas as vantagens ambientais. E um ponto relevante aqui, ele pode ser então usado para geração de energia elétrica, mas atualmente não existe nenhum mecanismo de política pública que considere as vantagens dele nessa geração de energia.
 
A gente tem energias que estão valorizadas pelo fato de serem renováveis, e temos energias que são valorizadas pelo fato de darem segurança energética. Sempre teve essa discussão de você precisar de termelétricas para ter segurança, mas as termelétricas são fósseis. E as energias renováveis em geral são intermitentes, então nos anos em que não choveu, por exemplo, foi um problema para a ativação de térmicas, teve térmica que não estava sequer contratada. Aí bate o desespero, né? O pessoal não quer contratar porque tem expectativa de que vai chover e não vai precisar, daí não chove e vira o caos.
 
Só que existe nesse meio do caminho uma opção de renovável que gera potência e que também tem esse aspecto da segurança energética, e isso nunca foi considerado na hora de você pensar em políticas públicas. A gente não tem política pública voltada a quem tem essa característica, seja para a biomassa e principalmente para a termelétrica à biogás. Então, quando você olha para isso, você acaba deixando de incentivar um lado de um potencial onde, além de gerar as duas coisas [ser renovável e dar segurança], ainda presta serviço ancilar, que algo que o setor de energia elétrica precisa.
 
A gente vai ter muita dificuldade de competir nos leilões de reserva que estão vindo por aí, porque vai considerar apenas preço – e hoje como a gente nunca teve uma política pública estruturante, nunca teve ganho de escala, a gente não consegue competir. Mas a gente espera demonstrar isso para o governo esse ano.
 
E por que o biometano deve alavancar em 2024?
Quando eu falo do momento especial do biometano é porque ele caiu nas graças. Virou um assunto quente. Nessa linha, os governos estaduais estão muito interessados em estimular o biometano pelo que ele representa na economia, os investidores estão começando a olhar. Os financiadores estão começando a olhar, mas a gente ainda tem algumas amarras para tratar.
 
Com essas ajudas que já vieram, do Reidi e do Renovabio, já temos seis plantas [em funcionamento], mas tem 18 plantas aguardando autorização na ANP [Agência Nacional do Petróleo, Gás Natural e Biocombustíveis]. Saindo essas autorizações, já quadriplica o número de plantas de biometando autorizadas no Brasil. Para 2029, a gente tem uma expectativa de chegar em 90 plantas, o que é um aumento exponencial.
 
Isso, considerando o que a gente já tem, é 5% do potencial que o biometano tem no Brasil. É muito pouco e é uma oportunidade muito grande. Se a gente chegar em todo o potencial, a gente gera 798 mil empregos.
 
Se você conseguir chegar a todo o potencial, é  o fim da dependência [energética]. Hoje tem um debate de independência energética, a Europa ficou muito refém na guerra da Rússia, e no Brasil a gente importa energia. A gente importa gás, a gente importa diesel, a gente importa GLP, todos esses combustíveis. Então ele é muito importante nessa independência que o Brasil pode ter do mundo, de uma autossuficiência energética.

O que o Brasil precisa então para atingir todo o seu potencial de produção de biometano?
Os nossos principais desafios hoje são três. Primeiro, a gente não tem uma política pública estruturante. Nunca teve um plano para incentivar o biometano. Em segundo lugar, tem a questão da infraestrutura. A infraestrutura de movimentação que a gente tem é a mesma do gás natural, e a infraestrutura de gás foi pensada para oferta de gás. Então ela está na costa, ela está no Gasbol [Gasoduto Bolívia-Brasil]. E o biometano está no Brasil inteiro, ele está perto da demanda.
 
Então, sempre teve aquela discussão do gás natural precisar interiorizar, e o biometano está interiorizado, é muito mais simples você conectar o biometano na demanda interiorizada do que todo esse trabalho para você interiorizar o gás natural. E o biometano tem um mercado muito importante nessa demanda de transição energética. Já o terceiro desafio é a valorização desse atributo ambiental.
 
Como seria essa valorização?
Como eu disse, hoje, a gente não tem ganho de escala. E consumidor brasileiro olha para o combustível mais barato e ponto. A gente não está na situação da Europa, que tem lá seus incentivos porque eles têm dinheiro para gastar com isso. O produtor, o industrial brasileiro compete com o mercado da China. Então, ele está preocupado efetivamente em ter um melhor preço, porque senão ele não sobrevive. Pelo menos nós estamos muito melhor que alguns países do sul global, que não tem nem acesso à energia. A gente tem, mas o problema é que a energia é cara.
 
O problema dessa valorização tem como resolver com aprovação do projeto de mercado de carbono. Com um certificado de garantia de origem. A partir do momento que você tem esses instrumentos, você consegue separar o aspecto energético, a molécula de CH4, do aspecto ambiental, que é essa descarbonização. Então, você pode vender esses produtos separados: o biocombustível e o certificado de descarbonização. Você pode vender esses certificado ou ficar com ele. 
 
Então esse é o nosso objetivo principal. Em termos de soluções, você o incentivo ao produtor. Então, por exemplo, vários estados já têm alguma redução de ICMS, algumas ideias que já ajudam a avançar. Mas a gente entende que é muito importante nós não sermos o único biocombustível que não tem um plano de participação no mercado.
 
O que poderia vir nesse plano?
A nossa matriz de transporte é muito melhor do que nos outros países, tanto pelo etanol que você coloca no posto, quanto pela mistura que existe. De veículos leves, metade já é muito mais verde, já tem essa participação. O biodiesel tem a participação no diesel, o SAF que nem existe ainda, já tem projeto de lei sugerindo isso, o diesel verde também tem. Quem nunca teve nem proposta nem nada é o biometano.
 
Então, a gente encaminhou proposta e ela foi muito bem recebida pelo relator do PL do Combustível do Futuro, o deputado Arnaldo Jardim. Ele ainda não mandou um relatório, mas a gente tem boas expectativas. A gente pensou e sugeriu para ele um modelo que não é simplesmente uma adição volumétrica, a gente tentou algo que vai é uma solução mais de mercado uma solução que vai atender sem impactar o preço do gás natural. Na nossa proposta, seria tanto injetar um percentual de 1% a 10% de biometano na rede, do produtor ou importador de gás natural, quanto a emissão do certificado de origem do biometano.
 
Você está levando para a origem, é uma solução diferente de você colocar na logística, no final como acontece com os outros, mas no nosso caso fazia sentido.

O produtor pode estar no lugar que não tem biometano, então ao invés de adquirir o próprio volume de biometano ele vai poder adquirir de alguém que talvez esteja num lugar que ele consegue produzir, mas não consegue escoar. Então, esse produtor pega esse biometano e abastece a própria frota, e vende o certificado para aquele produtor de gás natural que não tenham acesso ao biometano, mas que precisa cumprir sua cota de 1% a 10%.
 
Só que, apesar de ele só poder utilizar esse certificado uma vez para cumprir essa cota, não significa que ele precisa aposentar o título e descarbonizar. Se ele tiver interesse por exemplo, se ele for uma empresa muito comprometida com ESG, com se preocupar com o futuro, que tenha condições, ele vai poder vender esse certificado.
 
Assim, para o produtor pode ser economicamente mais barato comprar o certificado do biometano ou ter acesso a molécula. A gente está separando aí a molécula do atributo ambiental, são dois produtos em um. Com isso você não tem impacto no preço do gás natural, diferente do que acontece com outras misturas que tem um impacto maior.
 
É claro que isso vai depender muito do preço que você conseguir trabalhar nesse certificado. Com aceleração das mudanças climáticas e os compromissos maiores que vão surgir com isso, com o tempo, a tendência é que esse certificado se valorize. Inclusive pode virar uma boa opção de investimento.
 
E como seria a demanda no país?
Eu não tenho dúvida que a gente teria demanda para isso. Você tem três setores principais, que são os de difícil descarbonização. Um deles é o agro.  Você incentivando a oferta, você já estaria incentivando de alguma forma a descarbonização desse setor. Mas ele ainda pode ter uma descarbonização extra com a produção de biofertilizantes e o uso desse biofertilizante na sua lavoura.
 
Se ele autoproduzir fertilizante, é muito melhor do que o nitrogenado, e a gente está vendo aí diversas movimentações para estimular fertilizantes nitrogenados que é de onde vem a principal emissão na parte da agricultura. Então, se a gente conseguir que qualquer incentivo que venha para o fertilizante derivado do fóssil tenha a mesma proporção para o biofertilizante, não estou nem pedindo mais, desde que o que vai para lá venha para cá.
 
Um segundo setor é o da indústria, trabalhar para que o Brasil viva uma industrialização verde, através do que chamam aí de powershoring. Qual que é a lógica da economia na história do Brasil? O Brasil sempre foi muito rico, sempre teve tudo que você quiser, tem ouro, tem café. Muitos produtos sempre foram muito valorizados mundo afora e o que a gente sempre fez foi exportar matéria-prima e importar produtos manufaturados pagando mais caro.
 
Se a gente não aproveitar esse momento para conseguir ter uma política Industrial forte, que incentive a instalação de indústrias aqui, o resultado vai ser que daqui a pouco a gente vai estar exportando a matéria-prima, exportando o hidrogênio, a energia elétrica, o biometano, e comprando não só manufaturado, mas manufaturado de baixa pegada de carbono. Pode ser o pior, a gente pode estar vendendo isso, e comprando ainda o produto sujo, de uma fábrica de carvão de sei lá onde, a gente vira um depósito de produto sujo.
 
Nossa matriz elétrica é linda de ver, especialmente comparada com a dos outros, mas a maioria dos transportes também, principalmente por conta do etanol e das políticas que já foram acontecendo lá desde a década de 70. O problema hoje é o transporte pesado, que usa diesel, e uma das alternativas que a gente tem é justamente um caminhão a GNV, que se abasteça com biometano.
 
Você promover então políticas que incentivem essa troca de caminhões, seja política de incentivos fiscais, como no pedágio para os caminhões que adotem essa tecnologia, ou então para os municípios adquirirem ônibus à biometano. Uma alternativa são as rotas sustentáveis. Você criar um modelo em que nas principais rodovias do país você tenha postos que se abasteçam com biometano, porque você tem produtor de biometano espalhado por tudo que é lugar, então a gente só precisa de uma organização para que tenham esses “corredores azuis”, como são chamados na Europa.
 
Então acho que esses são os principais pontos. É importante a gente estar junto com o hidrogênio também, mas eu acredito que o que faz mais diferença hoje é a separação do atributo ambiental pelos certificados e o mercado de carbono. E é o incentivo à oferta através dessa participação do biometano no mercado de gás natural e políticas de incentivo à demanda.
 
Você falou sobre a infraestrutura para o biogás, e o governo falou muito de estrutura para o gás natural, especialmente no âmbito do programa Gás para Empregar, que está sendo estruturado. Teve alguma sinalização para o biogás?
A gente não sabe como que vai ser o desenho final. Foram montados cinco comitês, um desses comitês, o que estava olhando principalmente para infraestrutura, estava olhando por uma infraestrutura de escoamento do pré-sal para cá, o que não nos afeta. Pelo contrário.
 
A Abiogás participou do comitê cinco, que é um comitê pensando em transição energética, e o nosso ponto principal era mostrar para o governo que hoje faz muito mais sentido e sai muito mais barato você incentivar a infraestrutura do biometano do que esse gasoduto de escoamento supercaro que até hoje não fez sentido econômico para as empresas de petróleo.
 
Ele sai mais barato porque o maior potencial de biometano está no noroeste do estado de São Paulo, queira ou não queira, passa um gasoduto da TBG, ali que cuja oferta lá da Bolívia é um campo que está em fase de depleção. Então, você tem ali um potencial de aproveitar esse gasoduto com biomentano, a gente ta perto dali. É muito mais barato você ajudar a incentivar um gasodulto que é onshore, ali perto, de cerca de 50 km onshore, do que você financiar um gasoduto grandão que vem lá de águas ultraprofundas.

Outro ponto, esse gás que está lá [na costa], ele está guardadinho, num reservatório lindo. Se vc precisar daqui a 10 anos, ele está lá. O biometano não, ele é de resíduo. O resíduo que a gente não usar esse ano para fazer biometano, ele perdeu, ele foi queimado, ele virou metano na atmosfera. Você não aproveitar esse biometrando hoje é uma oportunidade 100% perdida. Então, eu acho que faria muito mais sentido você se preocupar, sairia mais barato para todo mundo, você incentivar a infraestrutura de biometano. Só que a gente não sabe como foi a receptividade disso dentro do ministério, a gente não sabe se vem alguma coisa de incentivo.
 
A Abiogás participou da reunião das associações no Ministério de Minas e Energia, com o ministro e com o novo secretário-executivo. Quais foram as percepções?
 Para a gente foi muito importante ter esse indicativo de que vamos ter diálogo. O secretário Arthur Cerqueira desde que entrou já se mostrou muito mais acessível, mesmo antes da reunião. Até então a gente não vinha conseguindo conversar no alto escalão do ministério. Ele se comprometeu ali a receber todo mundo, ouvir todo mundo.
 
Então, eu fiquei muito feliz com essa reunião, nesse sentido de que vai trazer a abertura do diálogo e a gente já percebeu essa mudança de postura, e vai ser muito positivo.
 
E já houve alguma sinalização recente de política do governo federal para o biogás ou para o biometano?
A gente espera conseguir avançar isso no MDIC (Ministério do Desenvolvimento, Indústria, Comércio e Serviços). A gente tem conversado sobre os corredores sustentáveis que devem ser estudados esse ano, o MDIC é um Ministério que mantém o diálogo muito bom.
 
Então, a gente vai participar das conversas sobre fertilizantes, as conversas sobre corredores sustentáveis e as conversas sobre industrialização. Eles inclusive mencionaram pensar em estudar um plano do biometano, conversar com o MME sobre fazer isso.

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