José Virgílio Lopes Enei* e Maria Virginia Mesquita Nasser**
Nas últimas semanas o mercado de infraestrutura andou discutindo a possibilidade do uso de títulos precatórios para pagamento de outorgas ou ações ofertadas em leilões de concessões ou privatizações. Pode ou não? Qual o limite? O que o TCU (Tribunal de Contas da União) vai achar? E a previsão em edital? O pagamento se dará pelo valor de face do título?
Há pouco mais de um mês, por exemplo, consórcio liderado por fundo de investimento foi vencedor na privatização da Codesa (Companhia Docas do Espírito Santo), associada às concessões dos portos de Vitória e Barra do Riacho. O consórcio vencedor ainda deverá pagar o valor de outorga previsto em sua proposta, assim como o valor atribuído pelo edital às ações da Codesa. Na ausência de previsão no edital, precatórios já poderão ser utilizados como moeda de pagamento?
A primeira impressão desses autores é a de que, ao menos em se tratando de uso de precatórios federais para pagamento de outorgas contratadas também em âmbito federal, pode. Ou deveria poder. A EC (Emenda Constitucional) 113, que admite o uso de créditos líquidos e certos contra o ente devedor para o pagamento de outorga de delegação de serviços públicos, dispõe claramente que a faculdade é autoaplicável à União, passando a valer desde a promulgação da emenda, em dezembro de 2021. Assim, não poderia o Executivo negar cumprimento ao dispositivo, ainda que possa e deva regulamentá-lo.
Mas é o caso dar um passo atrás nessa análise. A EC 113 foi promulgada apenas oito dias antes da EC 114 (em 8 e 16 de dezembro, respectivamente). É provável que façam parte, portanto, do mesmo pacote de alteração legislativa que visava criar espaço fiscal abaixo do teto de gastos para despesas que em princípio seriam destinadas ao combate à Covid-19 e seus efeitos e à criação de um programa de renda básica de cidadania. (Sabemos que a coisa não parou por aí.) E se a EC 113 permitia o uso desses títulos para a quitação de débitos, a EC 114 operava, de forma escandalosa, mais uma pedalada nos precatórios.
Escrevemos sobre o assunto em outubro de 20201. O precatório, como se sabe, é um título expedido em favor da pessoa física ou jurídica que tinha um crédito contra o Estado que não foi pago, ajuizou uma ação para cobrar o Poder Público, venceu a ação em todas as instâncias e entra numa fila para recebê-lo. Um caminho que pode demorar mais de 10 ou 20 anos. Como a dívida de precatórios é hoje enorme e estados e municípios revelam uma incapacidade histórica de honrá-los de acordo com o que seria a regra geral do art 100 da Constituição Federal (grosso modo, pagamento no ano seguinte ao da emissão do precatório, desde que emitido até uma data limite), a mesma Constituição, nas suas disposições supostamente transitórias, limita o montante que os entes subnacionais são obrigados a pagar a cada ano a um pequeno percentual da sua receita corrente líquida.
O que a EC 114 fez agora foi criar novo limite para o pagamento de precatórios, pela primeira vez aplicável à própria União Federal, valendo inicialmente para os anos de 2022 a 2026, limitado ao valor incorrido no pagamento desta despesa em 2016 (cerca de R$ 45 bilhões). A fila para recebimento alongou-se novamente. A EC 114 também não explica como a União Federal será capaz de pagar, em 2017, todo o estoque acumulado de precatórios, resultado dessa postergação. Percebem a pedalada no credor do Estado?
Como já reconhecemos, era absolutamente meritório buscar espaço fiscal para criar um programa de renda básica de cidadania, num país com níveis de desigualdade e até mesmo insegurança alimentar a que chegamos. O que se questiona, aqui, é a solução encontrada, dentre tantas outras medidas que se poderia adotar.
É sabido que o sistema de pagamento de precatórios, de tempos em tempos reformado para postergar o pagamento desses títulos, envenena as contratações públicas. O ente privado antevê a via crucis que deverá enfrentar para receber seu crédito, caso o Poder Público contratante não o pague espontaneamente, e se dispõe, de imediato, a uma série de concessões para evitar que isso ocorra. O desequilíbrio de poder na relação é inevitável, e sabemos bem onde essas distorções podem desaguar. Mais uma vez convidamos o leitor ao nosso texto anterior.
Nesse sentido, entendemos como positiva a adoção de medidas que permitam a compensação de créditos de precatórios com outras obrigações para com o ente público devedor. Elas dariam alguma liquidez a esses títulos, ajudando a reduzir, ainda que de forma tímida, o enorme desequilíbrio da relação entre credor e Estado-devedor.
Reconhecemos que é necessário ponderação no uso desse mecanismo, considerando a fragilíssima situação fiscal do país e a já alarmante redução do orçamento para políticas públicas básicas.
Nesse sentido, se a aceitação irrestrita dos precatórios em compensações tributárias traz um risco de desequilíbrio orçamentário, esse risco é mitigado quando se trata de aceitar a quitação de outorgas com o precatório. Ao elaborar a lei orçamentária, os governos estimam com muito mais segurança a receita advinda da cobrança de tributos que a de outorgas, já que estas representam, como regra, receitas extraordinárias. Quando uma concessão é arrematada com ágio, não se contava com essa receita a maior no orçamento. Até porque o critério que deve motivar a decisão de delegar determinado serviço ao setor privado é a maior eficiência – financeira e operacional – ao fazê-lo, e não a maximização da outorga. Talvez por isso a Constituição Federal vede a vinculação de tributos (art. 167, IV), mas não de outras receitas.
Em projetos recentes de concessão, parte do valor que seria pago a título de outorga passou a ter a rubrica de recursos vinculados. Esses recursos ficam reservados em conta apartada e são destinados ao pagamento de futuros reequilíbrios, o que tende a aumentar a atratividade dos projetos e, com isso, a competição e os próprios valores de outorga ofertados. Não nos parece descabido que, a cada vez que se delegue uma concessão atrativa do ponto de vista financeiro, parte do valor pago pela delegação seja alocado para a conta de recursos vinculados e parte deixada sob a rubrica outorga fixa (eis que o pagamento de outorga variável com precatórios seria operacionalmente mais complicado), admitindo-se sua quitação com títulos precatórios.
É verdade, também, que a admissão do pagamento de outorgas com precatórios poderia gerar alguma assimetria competitiva, considerando-se que distintos licitantes teriam apetites distintos para adquirir esses títulos, assim como podem ter sido distintas as próprias condições da aquisição. Mas essa assimetria não ocorre, também, quando um determinado licitante consegue o fornecimento de determinado insumo a preço vantajoso, quando domina técnica construtiva mais eficiente, quando tem melhor condição de acesso à crédito? Não acreditamos que esse argumento justifique reservas ao pagamento de outorgas com precatórios, menos ainda quando a previsão constitucional é expressa.
Mas é de se reconhecer, claro, que medidas poderiam melhorar essa assimetria. Uma delas seria o aprimoramento da transparência, com a criação de uma central digital de registro dos precatórios emitidos, incrementando a transparência na sua emissão e evitando o risco de fraudes, que sabemos ser relevante no mercado desses títulos. A medida seria bem-vinda até mesmo para os demais detentores de precatórios que não pretendem empregá-los no pagamento de outorgas. Não é ilusório esperar a criação de um tal mecanismo do mesmo ente público que criou o PIX e conta com instrumentos legais para contratar parceiros em inovações tecnológicas, se preciso for.
A pergunta não deveria ser se pode ou não utilizar o precatório para pagamento de outorgas, e sim a forma mais equilibrada de fazê-lo, considerando as peculiaridades dos projetos e do complexo regime fiscal dos entes públicos. Tudo isso, é claro, sem esquecer que a discussão mais urgente é sobre repactuar a distribuição dos recursos públicos (hoje capturados em proporções alarmantes) e buscar um equilíbrio fiscal que nos permita voltar a investir e crescer com menos desigualdade.