iNFRADebate: Alinhamento de expectativas e a nova Lei de Licitações

Caio de Souza Loureiro* 

Logo após a sua aprovação no Congresso Nacional, a proposta da nova Lei de Licitações já superou sua antecessora na quantidade de críticas recebidas. Virou lugar comum tacar pedra na Geni legislativa e impressiona a profusão de artigos, comentários e eventos que se dedicam à tarefa de questionar a proposta, agora sujeita à sanção presidencial. 

É natural que seja assim. A legislação que irá se despedir em breve é há muito combatida e a expectativa de todos era que aquela que a substituísse trouxesse um admirável mundo novo da contratação governamental. Afinal, já se vão quase trinta anos da Lei 8.666/1993 e o desgaste da relação era evidente e mais do que justificado, por todo o conjunto de anacronismos da legislação em vigor. 

A esperança de todos que atuam em contratos administrativos sempre foi a de uma lei redentora, que expurgasse todos os pecados imputados a sua antecessora. E, nesse aspecto, o texto aprovado pelo Congresso está muito aquém de transformar o ambiente de contratação num mundo mágico de Oz. 

A partir dessa premissa básica – “a lei não inovou” – um campo fértil de críticas surgiu e, não sem razão, apontou para o fato de que a estrutura de licitação e contrato ainda permanece burocrática na nova lei, assim como alguns vícios tradicionais do cenário atual, que não foram devidamente solucionados.

Nada de errado nessas conclusões. O novo texto, realmente, manteve o apego à burocracia e ao formalismo. Também não conseguiu se desvencilhar de dogmas tradicionais que acabam servindo a interesses escusos, mesmo que, na origem, tenham boa intenção. Estão lá, por exemplo, o interesse público soberano a qualquer custo e as prerrogativas exorbitantes da Administração, que, ultimamente, serviram muito mais aos interesses dos agentes públicos e dos privados do que à coletividade. 

Mas, a despeito da facilidade em suscitar essas críticas, a pergunta que fica é: caberia à Lei de Licitações acabar com a burocracia e os abusos, de lado a lado, nas relações contratuais entre Administração e particulares?

Aqueles que respondem que sim e pesam a pena nas críticas parecem acreditar que a parte teria uma espécie de poder mágico de solucionar o todo. Em outras palavras, um diploma voltado especificamente à parcela da atuação estatal seria capaz de solucionar problemas crônicos que atingem esse agir genericamente. 

Por mais que fosse altamente desburocratizada, com procedimentos mais abertos como alguns adotados ao redor do mundo, seria muito difícil para a nova lei, por exemplo, superar a hipertrofia de controle atualmente existente e que tanto estimula formalidades desnecessárias e limita inovações, mesmo quando essas se mostram eficientes. E, mesmo que impusesse limitações ao controle (como, aliás, ocorreu com algumas versões de trabalho no trâmite legislativo), a tradição de se socorrer a princípios e a qualquer interpretação que se dê ao texto constitucional suplantaria qualquer limite nesse sentido. Basta a olhar os malabarismos por vezes adotados para se escapar da racionalidade imposta pelas alterações feitas pela LINDB que se consegue ter uma ideia do que poderia ocorrer também com disposições similares na nova lei licitatória. 

Outra situação bastante interessante e que exsurge de alguns dos textos críticos à lei é a contradição de quem reclama da burocracia e formalismo da lei e, ao mesmo tempo, ataca aqueles pontos em que a lei abdicou de formalidades, justamente para conferir maior liberdade às partes. Não há como equacionar a crítica à burocracia com a defesa de instrumentos que mitiguem discricionariedade e aumentem o controle formal. O que, no fundo, demonstra que o império dogmático da formalidade ainda nos regerá durante muito tempo em matéria administrativa, pois, mesmo quem pretende criticar a formalidade, dela não se desapega. 

De modo que se a crítica pode, sim, ser salutar, também pode ser vazia ou, simplesmente, vir de um descontentamento com aquilo que se esperava da nova lei. É lídimo que haja decepção com um diploma que foi discutido por tanto tempo e que mexe, diretamente, com tantos interesses legítimos. Nesse ponto, não há mesmo o que se fazer. 

Porém, ao nos afastarmos das expectativas frustradas, descendo ao detalhe da lei – algo ausente em muitas críticas feitas – é possível ver que o diabo não é tão feio como se pinta e que o cenário está muito longe de uma terra arrasada normativa. Deixando de lado por um momento o apego ao desejo por uma revolução normativa – que, afinal, talvez nunca viesse – é possível, sim, um olhar mais positivo sobre a nova norma. 

De início, há o mérito de unificar os principais regimes empregados atualmente (geral, pregão e RDC) num único diploma. Mais, o faz incorporando em grande medida o modelo dos regimes mais novos (pregão e RDC) para o regime geral. Há, afinal, que se reconhecer a abrangência dada pelo novo diploma às inovações havidas desde o seu antecessor. O que há de relevante em diplomas específicos é traduzido, agora, ao regime geral, o que, por si só, já desvela um avanço relevante ao permitir que esses avanços sejam aplicados a um número maior de contratações. 

A nova lei demonstra, também, preocupação maior com o planejamento das contratações, suprindo o lacônico tratamento da lei atual com a fase interna da licitação. Além de detalhar melhor as etapas do planejamento, com o que delas se espera, a lei é muito mais permeável à colaboração com o particular. Ao se abrir para o PMI, trazer o diálogo competitivo da normativa europeia e, ainda, permitir expressamente que a Administração contrate com particulares o auxílio na licitação e a certificação de alguns itens do processo, permite-se que a Administração se aproprie da expertise do particular, suprindo deficiências do poder público em prol da melhor estruturação dos contratos. 

A eficácia da contratação também é ponto recorrente da nova lei, seja ao predicar a importação do performance bond com cláusula de retomada, seja com a alocação de riscos, seja, ainda, com a imposição de requisitos bem racionais para autorizar a suspensão dos contratos, algo que somente parece irrelevante para quem não conhece a realidade das ordens aleatórias de interrupção dos contratos, a sacrificar sua viabilidade. Na mesma linha, a incorporação expressa de mediação, dispute boards e arbitragem (replicando o que já havia na lei de relicitação, em relação ao seu alcance) que podem permitir solução mais célere aos problemas e disputas que comprometem a exequibilidade contratual. 

Portanto, é verdade que a lei não inova tanto quanto estava no imaginário de todos. Mas, também é certo que há inovações a se comemorar e, aqui, é preciso fazer uma observação. Da mesma forma que há quem critique a nova lei pela timidez em avançar, há muitos outros que criticam qualquer avanço e que se aproveitam do senso comum de que a nova lei é algo sem salvação. 

O grande risco que se impõe é o retrocesso em relação ao que se aprovou no Congresso. De início, grupos de pressão contrários à nova lei poderão forcejar vetos presidenciais que esvaziem por completo o que a nova lei tem de bom, deixando mais próxima ou pior que a lei atual. E, mesmo que sobreviva incólume ao processo de sanção, como todo novo diploma dessa complexidade, a nova lei de licitação ainda irá se consolidar e concretizar com base na interpretação que a ela se dispense e à forma com a qual doutrina e jurisprudência se posicionem em relação aos pontos em aberto. Esse debate será ainda mais acentuado no caso concreto, pois o texto legal remete uma série de temas relevantes para posterior regulamentação (aqui, uma crítica bastante válida). 

O que vai ser esse regime ainda é algo desconhecido e ele será tanto pior se quem deveria se posicionar favorável aos pontos positivos da lei se aquietar numa crítica generalista ao texto. Num cenário dessa ordem, tende a prevalecer o lado mais conservador e que tem repulsa a qualquer inovação. Quem acompanhou desde o início a tramitação do projeto sabe que, ao longo dos quase oito anos desde o texto-base do PLS 559, houve versões melhores do que a aprovada; contudo, houve verdadeiros retrocessos em dispositivos específicos. O risco destes dispositivos voltarem, na forma de regulamento ou de jurisprudência é grande.

De modo que o fim é apenas o começo, isto é, a aprovação no Congresso é apenas um primeiro – e importante – passo para um novo regime licitatório e de contratação governamental. Portanto, talvez seja o caso de superar a quebra de expectativas e dispensar um pouco mais de atenção aos aspectos positivos da nova lei. Sendo ela uma realidade presente dentro em breve, melhor que seja efetiva naquilo em que avançou e que não acabe se concretizando em algo muito pior. Daí, sim, haverá muito mais o que se criticar.

*Caio de Souza Loureiro é doutorando em Direito do Estado pela USP. Mestre em Direito do Estado pela PUC/SP. Sócio de Cascione Pulino e Boulos Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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