André de Seixas*
A USUPORT-RJ (Associação dos Usuários dos Portos do Rio de Janeiro), desde que soube da formatação do programa BR do Mar, mesmo estranhando a rapidez com a qual o Minfra (Ministério da Infraestrutura) queria tocar a agenda, inclusive por meio de medida provisória, fato que, diante do exíguo prazo, pressionaria o Congresso a aprovar as mudanças pretendidas, vem colaborando com o governo de modo a prover dados técnicos que possam garantir o sucesso do programa e o verdadeiro desenvolvimento da cabotagem brasileira, cuja discussão sempre teve grande cunho político e sempre se afastou da busca da excelência aos usuários.
Cabe esclarecer, de antemão, que não foi à toa que a USUPORT-RJ estranhou a pressa do programa, pois, durante evento promovido pela Agência iNFRA sobre o tema, em 30 de outubro de 2019, o diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura admitiu que, quando assumiu a pasta, verificou que na estrutura do Minfra não havia especialistas em cabotagem, falando em tom de crítica construtiva, inclusive para exemplificar a complexidade do programa para o ministério. A associação fez exatamente essa leitura na época de lançamento do BR do Mar e, de certa forma, ainda faz.
Também, de antemão, é preciso dizer que a associação tem encontrado boa acolhida por parte dos técnicos envolvidos no tema e que as diversas reuniões havidas, até agora, tem se pautado pela elevada qualidade dos debates, pendendo, entretanto, um preocupante ponto: a relutância do Minfra em garantir franca e benéfica concorrência entre as EBNs (empresas brasileiras de navegação), mantendo alguns injustificáveis privilégios às empresas que, há décadas, beneficiam-se de um sistema fechado e restritivo e dominam o setor de acordo com suas melhores conveniências.
Essa questão tem ficado clara à partir das diversas manifestações do Minfra, em especial o artigo publicado no dia 20 de dezembro de 2019, aqui neste importante e especializado veículo de comunicação, sob o título: “A hora da cabotagem”, de coautoria do secretário nacional de Portos e Transportes Aquaviários do Ministério da Infraestrutura e do diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do Ministério da Infraestrutura, do qual se colhe os seguintes trechos:
“Contando com um marco normativo equilibrado, o setor tem observado crescimento de mais de dois dígitos, ano a ano, por mais de uma década.
Investimentos foram feitos sob as atuais regras, que vinculam a prestação dos serviços à existência de navios com bandeira brasileira…”
Em que pese a nobre ideia de proteger-se investimentos como demonstração de credibilidade nacional, alguns aspectos merecem ser destacados sob pena de ser desperdiçada mais uma grande oportunidade de desenvolvimento da cabotagem brasileira, baseada na concorrência, qualidade do serviço e satisfação do usuário, sem que se abra mão do fortalecimento das EBNs e da frota nacional.
Marco normativo
De início, é de indagar-se qual o “marco normativo equilibrado” referenciado no artigo, sob o qual a cabotagem cresce “por mais de uma década” e “investimentos foram feitas”.
Tal ponto é de grande importância porque há uma norma, a Resolução Normativa 01/2015 – ANTAQ, restritiva e concentradora de mercado e com a qual o BR do Mar se aproxima em alguns aspectos, pelo que alguns atores têm considerado aquele programa como uma verdadeira releitura da RN 01/2015.
Ocorre que nenhum investimento foi feito em razão dessa norma, considerada “criminosa” por conceituados legisladores e agentes de controle!
Com efeito, e de acordo com as informações contidas no site da ANTAQ (Agência Nacional de Transportes Aquaviários), dos 18 navios porta-contêineres registrados sob a bandeira brasileira, dez foram importados ou construídos entre os anos de 2008 e 2014; apenas um foi construído no ano de 2015; um foi importado em 2019; e seis são mantidos no REB (Registro Especial Brasileiro). Já os navios de carga-geral e graneleiros são ainda mais antigos.
Quanto aos efeitos da RN 01/2015, desde 2018 seus principais artigos foram afastados pelo TCU (Tribunal de Contas da União), em razão do desvio de finalidade da sua edição, da sua ilegalidade e do caráter restritivo e anticoncorrencial do seu conteúdo, corroborando o que já havia dito a antiga Secretaria de Acompanhamento de Assuntos Econômicos e, também, o CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica). Portanto, apesar da similitude de conteúdo entre o BR do Mar e tal norma, não pode ser ela a embasar a defesa do ponto.
Desta forma, pode-se concluir que o “marco normativo” que impulsionou a cabotagem por mais de uma década são as normas revogadas pela RN 01/2015 e que, apesar de não refletirem com inteireza as disposições da Lei 9.432/97, dela muito se aproximam, sem criar privilégios a um pequeno grupo de grandes empresas estrangeiras travestidas de nacionais e, por certa maneira, permitir o desenvolvimento da concorrência. Sendo essas normas os “marcos normativos” que impulsionaram a cabotagem, o conteúdo do BR do Mar deve ser revisto para que, delas, se aproxime.
O problema da cabotagem não é falta de frota, mas de operadores
De acordo com o que se tem noticiado, o programa BR do Mar visa atrair mais cargas para a cabotagem a partir do aumento de oferta de navios (estrangeiros) afretados ou importados.
Todavia, a cabotagem brasileira não tem problema com oferta de frota, afinal, além dos navios mantidos sob bandeira brasileira que estão longe de navegarem lotados, as “mega-carriers” que controlam o setor empregam, sem qualquer restrição, sua frota estrangeira que passa por nossa costa, e que responde por mais de 80% do volume transportado.
O verdadeiro problema da cabotagem é a concentração do mercado e a falta de estímulos (inclusive da ANTAQ) para o desenvolvimento dos armadores genuinamente brasileiros, já que todos os estrangeiros que desejam operar na cabotagem aqui já estão.
O mercado de shipping mundial não é feito apenas das “mega-carriers”, havendo milhares de armadores regionais, absolutamente comprometidos com sua respectiva cabotagem – mesmo porque não têm condições de disputarem o mercado internacional – e que oferecem serviços complementares àquelas.
É o caso do feeder, que, no mundo, é realizado por embarcações menores, em trajetos de curta duração, interligando portos secundários e por custos marginais, mas que no Brasil torna-se carga valiosa para as grandes empresas a fim de gerarem volume aos navios de cabotagem, com grande prejuízo aos usuários pelo tempo de espera e alto custo, incompatíveis com o serviço!
A carga que se objetiva trazer do modal rodoviário irá migrar quando, em vez de uma saída semanal de um determinado porto, houver uma saída diária oferecida por diversos operadores, em regime de concorrência e eficiência.
O simplório argumento de que é justificável a concentração de mercado em razão dos altos custos, além de uma falácia “de quem não quer largar o osso”, não encontra azo na legislação brasileira, que dispõe de norma expressa que a combate!
O lastro em navios brasileiros para que se possa afretar navios estrangeiros
A necessidade de lastro para que se possa afretar navios estrangeiros para operação de cabotagem é um privilégio injustificável a um pequeno grupo de grandes empresas, que, desde sempre, dimensionam a oferta de acordo com seus interesses.
Trata-se, pois, de argumento de difícil sustentação, seja porque pretender-se-ia proteger investimentos realizados, seja porque, ao contrário, permitiria uma evasão das embarcações, caso o mercado internacional ofereça melhores fretes do que a cabotagem. Além de antagônico, seria o mesmo que afirmar que não se pode confiar na frota (ou nos armadores estrangeiros) já existente no Brasil.
Os investimentos “que se pretende proteger” já contam com as vantagens, diretas e indiretas, dos recursos do FMM (Fundo da Marinha Mercante), enquanto o pequeno armador brasileiro vem fazendo investimentos com dinheiro próprio, de seu caixa!
Ademais, ao garantir-se igualdade de condições a todas as EBNs, esses armadores genuinamente brasileiros (que não têm condições de disputar fretes no mercado internacional tal qual as grandes multinacionais que controlam o setor no país) poderão desenvolver-se e ampliar a oferta dos serviços de excelência que já provêm aos usuários! Afinal, não é isso que se deseja?
O afretamento é meio de formação de frota em todo o mundo, sendo demonizado no Brasil por “convenientes” razões.
Os recursos do Fundo da Marinha Mercante
Tem se discutido até mesmo a aplicação dos recursos do FMM em outras modalidades de uso em prol dos armadores. É preciso lembrar, contudo, que os recursos do FMM não pertencem aos armadores, mas à indústria naval.
A vinculação do FMM aos armadores tem gerado graves distorções, que culminaram, inclusive, na falência da indústria naval brasileira, que é vítima dos altos custos dos insumos e tributos.
Manter o privilégio de lastro ao pequeno grupo de grandes empresas que desperdiçou os recursos do FMM, ou que, de forma indireta, utiliza-se para atenuar os investimentos que realizaram na importação de navios, é premiar quem nunca primou pelo desenvolvimento da cabotagem, mas apenas da majoração de seus lucros que são remetidos anualmente às suas matrizes!
O FMM, com a manutenção ou não do adicional de frete para a renovação da marinha mercante, deve ser totalmente desligado dos armadores e vinculado à indústria naval para uso, inclusive, na renovação da frota de nossa Marinha de Guerra.
Conclusão
O simples controle de legalidade das normas infralegais que sempre restringiram os efeitos da Lei 9.432/97 acabaria com todos os problemas da cabotagem, pois seria garantida a tão falada “segurança jurídica”, os investimentos já realizados seriam protegidos na medida em que os afretamentos de navios estrangeiros estariam realmente condicionados à inexistência ou indisponibilidade do navio brasileiro (do tipo e do porte adequados), novos investimentos na bandeira brasileira seriam impulsionados pelos armadores que queiram, efetivamente, ocupar um espaço no mercado explorado por navios estrangeiros, e, acima de tudo, todas as EBNs estariam em igualdade de condições de competirem e prestarem seus serviços compondo suas frotas da forma que, hoje, somente um pequeno grupo de grandes empresas faz, sem a devida contrapartida aos usuários.