iNFRADebate: Cabotagem para quem?

André de Seixas*

O transporte de mercadorias entre portos brasileiros por via marítima, conhecido como cabotagem, está em voga nas discussões nacionais, haja vista a urgência constitucional mantida para o Projeto de Lei 4.199/2020, que visa estimular o setor. De autoria do Ministério da Infraestrutura, o apelidado BR do Mar, nome dado claramente por quem não é do ramo, veio a público alguns meses após o PL 3.129/2020, da senadora Kátia Abreu (PP-TO), tratando do mesmo tema.

Os dois projetos, no entanto, são antagônicos quanto à capacidade de gerar benefícios para a população brasileira. Enquanto a brilhante proposição da senadora, de maneira clara e objetiva, busca um ambiente competitivo entre os prestadores de serviço, o outro encastela poucas Empresas (ditas) Brasileiras de Navegação (EBNs), que, na verdade, são subsidiárias de grandes grupos econômicos estrangeiros, em posição dominante nesse mercado.

O problema é que o projeto do governo facilita o afretamento de embarcações estrangeiras por quem detém frota no país, ou seja, por esses grupos transnacionais que tomam conta da cabotagem. Já os novos entrantes ou empresas de menor porte sem embarcações próprias só poderão realizar o chamado afretamento a casco nu, com bandeira brasileira, que praticamente não existe após o sucateamento da indústria nacional. Como o nome diz, nessa modalidade, o afretador recebe somente o navio, sendo responsável por empregar comandante/tripulantes e por todas as despesas de operação e pessoal. Em resumo, os donos da carga continuarão reféns de um cartel que cobra fretes cada vez mais caros, com reflexos diretos nos preços dos produtos nas prateleiras.

Como nos ensina Vicente de Britto Pereira em seu livro “Transportes – História, Crises e Caminhos”, temos que ter em mente que “no transporte de mercadorias, […] os usuários são claramente os donos da carga a ser transportada e, evidentemente, qualquer avaliação com relação aos transportes em termos de fretes, segurança, confiabilidade, rapidez e outros somente pode ser feita por eles, levando em conta principalmente o peso dos transportes no preço final dos produtos”. E o autor prossegue: “[…] A realidade nos mostra a toda hora as consequências de certas decisões de política econômica do governo, que afetam não somente os detentores de carga, os transportadores, mas milhões de pessoas que dependem dos transportes para viver”.

Pode parecer que tais afirmações são óbvias para quem propõe a regulação do setor. Entretanto, não é bem assim… Em debate virtual promovido pela revista Portos e Navios, o diretor do Departamento de Navegação e Hidrovias do ministério, Dino Batista, foi categórico quando respondeu se o projeto diminuiria o valor do frete: “É muito difícil, né, as pessoas perguntam: quanto vai reduzir o frete? Primeiro que o frete, ele é livre. Não existe política de controle de frete… Não vai haver de forma nenhum controle de fretes, a gente querendo meter a mão em algo que é a atividade da iniciativa privada. Esse não é o nosso objetivo, isso vai ficar claro na regulamentação do programa”.

Bom, vejamos, se o objetivo não é reduzir o frete que impacta em todos os produtos consumidos por nós brasileiros e se já está claro que o ministério não tem controle sobre os valores praticados, então devemos imaginar que o setor está em crise e que precisa de um projeto com subsídios para se desenvolver. Mas a realidade é bem diferente: há mais de uma década o setor divulga que cresce a uma taxa média de 12% ao ano, ou seja, hoje o segmento é três vezes maior do que há dez anos.

Infelizmente, só resta, portanto, concluir que o objetivo do programa do governo é aumentar a concentração de mercado de empresas subsidiárias de grandes conglomerados estrangeiros que remetem lucro para o exterior, baixando os seus custos e maximizando os seus ganhos. Difícil acreditar? Pois é a conclusão quando se lê o projeto com um pouco mais de cuidado.

Caro leitor, se você é um brasileiro que resolveu abrir uma empresa brasileira de navegação para disputar mercado, esqueça! Não há e não haverá chance! As regras estão postas para que seis grandes chefões que controlam 95% do mercado cresçam exponencialmente. Já você somente poderá iniciar o seu negócio com regras muito restritivas.

E isso está sendo proposto sob um discurso inverídico e retrógrado, que prega a necessidade do armador ser o proprietário da embarcação. Essa ideia não visa a proteção dos interesses nacionais, mas individuais daquelas grandes empresas que, beneficiárias de fartos recursos públicos, lograram adquirir navios em determinado momento, montando esse set up de operação.

Ocorre que no mundo, há muito, o operador (disponent owner) não se confunde com o armador (head owner) da embarcação, que, por sua vez, não se confunde com proprietário (shipowner), sendo cada vez mais comum o investimento daquele primeiro focar apenas no relacionamento com os embarcadores com vistas a um serviço de excelência, em vez da compra de navios, que se tornaram commodities.

Aliás, mesmo aqueles seis grupos que já controlam a cabotagem brasileira e atuam para que as regras continuem a garantir-lhes a situação, quando, no mundo, enquadram-se perfeitamente naquele modelo.

Fica um sentimento ruim quando lemos todas as regras e percebemos que elas foram colocadas somente após o projeto apresentado pela senadora Kátia Abreu e com 15 meses de gestação. O projeto da senadora, sim, ataca o cerne da questão com mira certeira: cria ambiente concorrencial no qual novos entrantes disputam em igualdade com quaisquer outros que hoje estejam disputando o serviço.

Agora, imagine se você tem uma carga para transportar de um lugar qualquer para outro dentro do Brasil. Suas primeiras preocupações são que a carga chegue com regularidade, pontualidade e segurança, sem danos ambientais no percurso. Afinal, conquistar o cliente, operando com sustentabilidade, são valores-chave de qualquer ambiente empresarial sadio. A partir daí, quanto mais barato for o custo para o dono da carga, menores ficam os preços, o lucro de empreendedores brasileiros aumenta e novos mercados são conquistados.

Buscar apenas o lucro do transportador da carga como preconiza o BR do Mar é o rabo querendo balançar o cachorro! Como a cabotagem “brasileira” é um setor bilionário, muito bem articulado no Executivo e Legislativo e que jamais dá clareza dos seus números de custo e lucro, os produtores nacionais não sabem por onde atacar o problema.

*André de Seixas é diretor-presidente da Logística Brasil (Associação Brasileira dos Usuários dos Portos de Transportes e da Logística).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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