Fernanda Martinez Campos Cotecchia, Nathalia Fritz e Vitor de Lima Alves Ribeiro*
Não é novidade que, ao longo da história da matriz logística brasileira, as políticas públicas foram direcionadas preferencialmente ao modal rodoviário de transporte. Tal fenômeno se deu a partir da industrialização ocorrida na primeira metade do século XX1, e se intensificou com a ideia de integrar os territórios não-litorâneos às áreas industriais, inclusive com a transferência da capital para o Centro-Oeste, já na segunda metade daquele século2.
Com efeito, a preferência pelo modal rodoviário resultou em uma subutilização de outros modais, especialmente o ferroviário. Segundo dados da Cia World Factbook e da Associação Nacional dos Transportadores Ferroviários, coletados em 2019, entre os países com a maior extensão territorial do mundo, o Brasil é aquele de menor malha ferroviária, com apenas 3,4km de ferrovias a cada 1.000km² de território, como pode ser verificado quando comparado, por exemplo, com a Argentina e a Índia, que possuem 13,3km e 20,8km, respectivamente.
Neste aspecto, a malha rodoviária, por outro lado, é utilizada para o escoamento de 75% da produção do país, de acordo com dados de 2018 da Fundação Dom Cabral3, enquanto apenas 5,4% da carga é transportada por ferrovias.
Tal realidade, ou seja, a dependência do modal rodoviário mostrou seus contornos práticos quando, em maio de 2018, com onze dias de greve dos caminhoneiros, o país foi gravemente afetado, atingindo tal paralisação não só o abastecimento dos consumidores finais, como também o transporte de matéria prima. Conforme relatado pela CNA (Confederação da Agricultura e Pecuária do Brasil), a queda de 1,6% no PIB do agronegócio naquele ano foi diretamente impactada pela paralisação dos rodoviários4.
Desde então, o Governo, sobretudo por meio do Ministério da Infraestrutura, iniciou e/ou deu andamento a projetos legislativos com o objetivo de ampliar a matriz de transporte nacional. Os engendrados esforços políticos resultaram na promulgação de marcos regulatórios importantes, como a BR do Mar5, que incentiva o transporte por cabotagem, e a Lei das Ferrovias6, a qual instituiu um novo marco legislativo para esse modal. A atenção especial recebida pelas ferrovias se dá em razão de o Brasil ser produtor majoritário de commodities, que demandam um transporte eficiente, barato e de massa, devido ao seu baixo valor agregado7.
Com o novo marco legal, espera-se aumentar tanto a competitividade do mercado ferroviário – que atualmente é operado de forma integral por apenas sete players – como também a extensão da malha, a partir da inédita possibilidade da operação de trechos mediante outorga de autorização, em contraponto à concessão, não só por meio de novos trechos, com garantia da livre concorrência, mas também pelo chamamento à exploração de trechos ociosos ou abandonados.
Além da abertura do mercado para futuros autorizatários, importante elencar os novos projetos ferroviários que saíram do papel e também têm a premissa de desenvolver tal modal, sendo estes a Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste) e a Ferrogrão, os quais são exemplos que visam a integração do país e o incremento da logística, principalmente relacionada ao agronegócio.
Outro ponto que merece destaque para o desenvolvimento do modal ferroviário refere-se ao custo, que, muito embora o investimento inicial seja alto, a longo prazo, mostra-se rentável. Além disso, as ferrovias são menos poluentes, amoldando-se, por conseguinte, às preocupações atuais de um mundo mais sustentável, inclusive em linha com a políticas ESG que estão em voga nos projetos de desenvolvimento de tecnologias nacionais e internacionais.
Registra-se ainda que as ferrovias possuem menos impacto na emissão de gases poluentes do que as rodovias, modal terrestre diretamente concorrente. De acordo com pesquisa publicada pela Empresa de Planejamento e Logística, o setor rodoviário, sozinho, representou 86% da emissão de CO2 oriunda dos transportes, o que corresponde a mais de 92 milhões de toneladas de gás poluente8.
É importante destacar que, não obstante as ferrovias configurarem predisposição em atender ao que se busca de mais moderno em termos de emissão de CO2, deve-se ter atenção a outras áreas nas quais a expansão desse modal pode impactar.
A própria Ferrogrão, projeto supramencionado e que pretende ligar o Mato Grosso ao Pará com o objetivo de escoar produtos agrícolas, passará por dentro da Floresta Amazônica, resultando inevitavelmente em algum grau de desmatamento e impacto sobre as comunidades locais9.
É justamente nessa lacuna que as preocupações ESG entram em cena. As empresas que desejarem explorar esse promissor setor logístico no Brasil terão que ter em conta preocupações ambientais, sociais e de governança.
Tal mentalidade é uma imposição do mundo moderno, cujo desrespeito traz consequências relevantes sobretudo no mercado internacional. A União Europeia, por exemplo, por meio de seu Poder Executivo, já apresentou relevante proposta para barrar a importação de produtos extraídos de áreas de desmatamento10.
Portanto, o ideal é que se busque, junto ao Poder Público, às instituições representativas e à sociedade civil como um todo, o pleno equilíbrio entre o avanço do modelo ferroviário e a atenção às pautas ESG. Com responsabilidade ambiental, social e de gestão, as companhias interessadas na expansão do modal ferroviário serão o motor de um Brasil mais competitivo, moderno, e comprometido com o desenvolvimento baseado na sustentabilidade. Parafraseando o Pacto Global direcionado pela ONU e o Banco Mundial, “Quem se importa, ganha”11.