iNFRADebate: Ferrogrão e a Revolta de Atlas – ficção ou realidade?

Rafael Moreira Mota* e Geovana Lorena Bertussi**

O romance “A Revolta de Atlas”, de Ayn Rand, é considerado um dos livros mais influentes da sociedade americana, sendo considerado a “Bíblia” do pensamento liberal clássico na segunda metade do século XX. A meritocracia liberal e a discussão a respeito da intervenção estatal têm como cenário a história romanceada em que uma companhia ferroviária dos Estados Unidos serve de trilha à intriga do enredo.

No Brasil, não uma ferrovia, mas ainda um projeto ferroviário, traz debates de narrativas e de argumentos de diversas posições e interesses, que geram também intrigas e conflitos. O assunto, inclusive, chegou ao STF (Supremo Tribunal Federal) que analisa a constitucionalidade da lei que autoriza a sua construção e seus efeitos a povos indígenas que habitam a região do Parque Nacional do Jamanxim, no Pará. Na última semana, o tema ganhou notoriedade novamente quando o ministro Alexandre de Moraes remeteu a ação ao Centro de Soluções Alternativas de Litígios do STF e autorizou novos estudos para reanalisar o caso. A construção da ferrovia só começará depois de autorização do STF.

Mas até a construção de fato, muitas são as etapas ainda a serem percorridas e mais numerosas ainda são as incertezas associadas ao projeto na ordem jurídica, ambiental, econômica e financeira e, principalmente, se o financiamento estatal trilhará caminho junto com o investimento privado previsto no projeto. O mais importante é definir bem o que é realidade e o que é ficção.

No modelo atual, as ferrovias foram – em geral – construídas pelo Estado e depois concedidas à iniciativa privada. Historicamente, até pelo menos cinco anos atrás, não havia requisitos mínimos de investimento na malha. Os contratos de concessão exigiam somente metas de produção e de segurança. Esse desenho dos contratos acabou por deixar nossa malha ferroviária obsoleta, com trechos ociosos, além de gargalos importantes no acesso aos portos mais movimentados do país.

Para incentivar o modal ferroviário, uma iniciativa foi, a partir da Lei 13.448/2017, permitir a prorrogação antecipada dos contratos a vencer, com a contrapartida de renegociar alguns termos desses contratos e, com isso, alterar o mecanismo de incentivos e inserir alguns investimentos obrigatórios relevantes para a malha ferroviária brasileira. Assim, investimentos que seriam realizados somente após o término do contrato e com a troca do concessionário ganharam mais celeridade, com a previsão de medidas a serem tomadas em prazo mais curto.

Mais recentemente, a Lei 14.273/2021 trouxe a proposta de autorizações para o setor ferroviário. Agora, ao invés do governo ter que fazer uma licitação e estabelecer a concessionária vencedora para aquele trecho, com contrato amplo e detalhado sobre todas as obrigações e parâmetros a serem seguidos durante o prazo de concessão, o agente privado interessado em construir um trecho ferroviário poderá fazê-lo por meio de uma autorização (sem necessidade de licitação). A Ferrogrão seria um projeto que poderia se encaixar nessa nova hipótese legal, sendo construída e levada a cabo integralmente pela iniciativa privada.

A ideia por trás desse novo modelo seria destravar investimentos para o setor, permitir de forma mais livre e menos burocrática a atuação privada e incentivar o modal ferroviário no país, gerando empregos e renda. Na ficção, a beleza dos finais felizes escritos no papel é garantida (basta a vontade do autor), mas na realidade, a história é outra.

O enredo do projeto da Ferrogrão, assim, precisa esclarecer algumas dúvidas, por exemplo: se ela custará tão caro (estimativas acima de R$ 20 bilhões), quem vai construir? Será o setor privado sozinho e por meio de autorização? Será o setor público sozinho e depois realiza concessão por meio de licitação? Setor público e privado juntos numa parceria público-privada e quais serão os direitos e obrigações para cada parte? E se o setor privado não cumprir com sua parte? Fica tudo para o governo? Essas dúvidas, entre diversas outras e sem contar os aspectos ambientais corroboram a necessária iniciativa do STF de levar o caso a uma comissão de conciliação, até porque não basta ver só o que supostamente se ganhará com a Ferrogrão. Para tomar uma decisão racional e isenta é importante diferenciar o que é sonho e realidade, pois, afinal, R$ 20 bilhões é muito dinheiro e, se parte disso for recursos do setor público, seu custo pode ser ainda maior.

O livro de Ayn Rand virou best-seller e uma defesa do liberalismo pela literatura. Romances bem escritos são um campo fértil para reflexões e imaginações. Projetos ferroviários lançados no papel também são. Que a solução de conciliação ao imbróglio da Ferrogrão se direcione a uma realidade possível, que não se transforme em um tormento. Até porque, se for para virar pesadelo, que o projeto apresentado se torne lixo e, é claro, com o agradecimento do meio-ambiente, seja reciclado, repensado e reapresentado para futuras avaliações.

*Rafael Moreira Mota é advogado e mestre em direito constitucional.
**Geovana Lorena Bertussi é doutora em Economia e professora do Departamento de Economia da UnB (Universidade de Brasília).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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