Vitor Ivanoff*
Diz-se que o bastão de Esculápio e a serpente que o envolve, símbolos da medicina, representam um elo entre a doença e a cura. O mesmo veneno que pode matar o paciente, se bem dosado, é o antídoto que pode salvá-lo.
Na tentativa de salvar o país de uma das graves doenças que o acometem – os baixíssimos níveis de acesso ao saneamento (quase 100 milhões de brasileiros não têm acesso à coleta de esgoto) em um contexto de escassez de recursos por parte do Poder Público para financiar sozinho o acesso – o governo sancionou em julho de 2020 a lei 14.026, intitulada Novo Marco Legal do Saneamento e que hoje (15 de julho de 2022) completa dois anos.
Dentre as diversas inovações trazidas pelo novo marco, está a obrigatoriedade de universalização de 99% dos serviços de água e de 90% dos serviços de coleta e tratamento de esgoto até o ano de 2033.
Em paralelo, o novo marco também fez claros movimentos na direção da desestatização, incentivando a transferência a operadores privados da responsabilidade pela implementação da estrutura e prestação dos serviços mediante a cobrança de tarifas que remunerem o capital investido e os custos.
Se, por um lado, a instituição de metas é um vetor de contribuição para a tão necessária universalização dos serviços de saneamento do país, o estabelecimento de metas com prazos fixos e sem qualquer consideração pela realidade e desafios de cada município pode também contribuir para o sentido oposto, tornando a universalização um caminho cada vez mais difícil de ser percorrido, especialmente sob o ponto de vista da viabilidade econômico-financeira dos projetos.
Isso ocorre porque a cada ano transcorrido após a publicação do novo marco, o prazo para que se atinja a universalização é, por definição menor, forçando o operador a antecipar cada vez mais investimentos que, especialmente em relação aos sistemas de esgotamento, costumam ser deficitários. Os efeitos práticos da antecipação de investimentos que não possuam como contrapartida um aumento de receita equivalente acabam sendo inevitavelmente a prática de tarifas mais elevadas de modo a remunerar o capital investido, o que pode comprometer seriamente o princípio da modicidade tarifária ou, até mesmo, a viabilidade de todo o projeto.
Estudos realizados pela Terrafirma com base em projetos de concessão de saneamento estruturados recentemente indicam que para cada ano a menos que se tenha para se atingir a universalização é necessário um incremento de tarifa de cerca de 3%, uma vez que o prazo para implementação das obras é menor. Na prática, concessões estruturadas a partir de agora tendem a apontar cada vez mais para a necessidade de PPPs (parcerias público-privadas) – que exigem aportes do Poder Público de modo a garantir a viabilidade dos projetos – um tema bastante sensível, especialmente para municípios menores e mais carentes, justamente os municípios mais defasados em relação ao saneamento. Em outras palavras, as metas tendem a se tornar inatingíveis com o passar do tempo.
Se para um município que já possui 80% de cobertura, dez anos é certamente um prazo muito alongado, para municípios que não possuem qualquer estrutura de coleta e tratamento (e vale lembrar que 40% dos municípios do país se encontram nessa situação), os mesmos dez anos representam uma obrigação quase inexequível. Ao final, em um cenário de restrições fiscais e de falta de investimentos por parte dos governos federal e estaduais, permitir que projetos de universalização sejam viáveis apenas nas regiões e nos municípios com maiores índices de coleta e tratamento pode acabar por intensificar ainda mais as desigualdades de acesso ao saneamento no país.
Neste sentido, metas que considerassem, ainda que de forma genérica, as lacunas e desafios de cada município – por exemplo, uma meta que estipulasse um incremento de 5% da cobertura de esgoto por ano, até que se atinja a universalização – poderiam ter, além de maior aderência à realidade, melhores resultados práticos.
Para dificultar o cenário, é bastante provável que em um período não muito distante já se comece a discutir uma nova revisão dos prazos, colocando ainda mais incertezas sobre já atrasado processo de universalização do saneamento.
Ao impor metas que rapidamente se tornam inatingíveis, corre-se o risco de fomentar, ainda que involuntariamente, um ambiente de descrença com a regulamentação atual. Os agentes passam a postergar projetos e investimentos, à espera de uma nova revisão do marco, no lugar de se lançar em empreendimentos de difícil viabilidade, o que acaba por colocar todo o setor em compasso de espera.
É necessário cautela e boas doses de realismo para que, tal qual o veneno da serpente, o novo marco possa contribuir para salvar o paciente, e não o matar.