José Augusto Valente*
Está em andamento o processo de “desestatização ou privatização da CODESA (Cia. Docas do Espírito Santo)”. A proposta de edital submetida à audiência pública tem como título “Concessão do Serviço Público de Administração de Porto Organizado Associada à Transferência de Controle Acionário da Companhia Docas do Espírito Santo – CODESA”.
De início, temos que considerar que os termos privatização ou desestatização, considerado para alguns como remédio para todos os males, exigem um senso crítico bastante apurado se não quisermos entregar ao azar o futuro do Brasil. Isso porque, algo que pode parecer muito bom, no primeiro momento, pode ter consequências danosas irreversíveis, no médio e longo prazos.
Segundo fontes do Ministério da Infraestrutura, o modelo a ser adotado em nosso país tem como referência o modelo implantado na Austrália. Lá como aqui, a pressa teve como principal atrativo o volume de recursos que o governo obterá com a tal privatização. No curto prazo, diga-se. Fala-se em venda de ativos que gerarão bilhões. Mas para que finalidade, para que projeto estratégico? Para melhorar a logística brasileira ou para o pagamento de dívida pública? Há um grande risco de que esse processo seja perversamente irreversível ou ele permite correção de rumo?
Neste artigo, estudando o que foi feito na Austrália, queremos demonstrar que os danos causados, no curto e médio prazos, podem ser inviáveis de serem consertados. Lá, terão que esperar entre cinquenta e cem anos, para que seja retomado o controle da situação pelo governo australiano.
Artigo de Marcella Lazzarini, publicado em agosto de 2020, no site Portogente, com o título “Modelo Australiano de Governança Portuária: eis a questão”, mostra os sérios problemas do processo de privatização lá realizado. Devido à excelente abordagem da autora, tomarei a liberdade de copiar, colar e comentar os itens que julgo mais relevantes.
A privatização da autoridade portuária na Austrália
A partir de 2011, seis grandes portos foram privatizados, nos quais os governos estaduais australianos detiveram o título de propriedade da terra, e foram concedidos arrendamentos de longo prazo (99 anos, exceto 50 anos para o porto de Melbourne) de terras e operações portuárias à uma sociedade holding estatal onde outros ativos portuários, responsabilidades e direitos de empresas portuárias foram transferidos para os setor privado por meio da venda de ações. Como, aparentemente, se pretende fazer no Brasil.
Segundo Lazzarini, as principais características desse processo de privatização, em vigor na Austrália, são os seguintes:
- Política e monopólio de preços, com restrição ao princípio da livre concorrência, devido ao poder de mercado desses consórcios de autoridades portuárias;
- Incerteza de futuros investimentos nos portos;
- Proteção e fiscalização regulatória do governo limitada;
- Aumento dos conflitos de interesses entre múltiplos stakeholders nos portos: acionistas, armadores, ferroviários, rodoviários, operadores de terminais, trabalhadores portuários e comunidade no seus entornos;
- A verticalização e concentração dos armadores, atualmente constituídos por apenas três alianças que dominam o transporte marítimo global (2M, Ocean Alliance e THE Alliance) e que, com suas economias de escala e escopo, colocaram uma enorme pressão para se investir, porém, sem qualquer comprometimento a longo prazo da utilização dos mesmos, elevaram consideravelmente o poder de barganha nas negociações com as autoridades portuárias.
Privatização ou aumento da capacidade de governo das empresas estatais?
Há uma crença, por parte de alguns que atuam nesta área, de que o processo de privatização das autoridades portuárias pode gerar um impacto positivo no curto e médio prazos, com os seguintes argumentos: haverá transferência de recursos ao governo, permitindo a redução da dívida pública; bem como o aumento de investimento privado em infraestrutura pública além do aumento da eficiência na gestão dos portos.
Sobre a gestão, um ponto que sempre aparece como o principal problema é o caráter político-partidário na indicação de nomes para as instâncias de direção das autoridades portuárias. Para estes, a privatização é de fato panaceia, mesmo que se constate a existência de um bom número de empresas que simplesmente quebram e deixam de existir, apesar ou até mesmo pela péssima gestão privada. De todo modo, não se fala em efeitos colaterais nocivos decorrentes da eventual privatização das autoridades portuárias.
Por outro lado, é mantida a proposta de privatização das Cias Docas, ainda que se constate o quanto se avançou no sistema portuário, desde a Lei 8.630, apesar – ou, quem sabe, por causa – das indicações político-partidárias para as suas direções. De todo modo, não se fala em aumento da capacidade de governo das autoridades portuárias e há muito se deixou de falar na retomada e fortalecimento dos CAPs (Conselhos de Autoridade Portuária).
O quadro abaixo mostra o crescimento da movimentação de cargas no sistema portuário, entre 1999 e 2011, período em que os dirigentes das autoridades portuárias eram indicados por partidos coligados aos governos federais naquele período.
Efeitos colaterais negativos na privatização das autoridades portuárias na Austrália
Lazzarini, por outro lado, demonstra com números e fatos que a análise da experiência australiana indica que nenhum desses benefícios superaram os atuais problemas causados para a economia e “stakeholders”, devido à introdução de novos encargos para navios e cargas, e um substancial e injustificável aumento das taxas portuárias e taxas de aluguel impostas pelos investidores para recuperar seus custos, bem como para compensar e ampliar os lucros aos acionistas. Além disso, a privatização dos portos tornou serviços governamentais residuais inviáveis e certos aumentos e encargos foram inevitáveis.
Segundo ela, que estudou a fundo essa experiência, a venda do Porto de Melbourne (50 anos) saiu por $11 bilhões e foi o melhor preço arrecadado pelo governo na privatização dos portos. Porém, após três anos da privatização, a média de taxa de infraestrutura cobrada pelos três operadores que atendem o porto aumentou 4.189% (isso mesmo!), e é claro que esse novo ambiente foi prejudicial à cadeia de suprimentos terrestre e aos operadores de frete rodoviário e para o cais.
A partir de janeiro de 2020, o terminal de contêiner Victorian International aumentou 143% nas taxas para contêineres totalmente carregados (FLC), no porto de Melbourne.
Outro efeito colateral indesejado, as taxas de confirmação de reserva por contêiner aumentaram três vezes. Além disso, as taxas médias anuais de registro no Sistema de Reservas de Veículos cobradas pelos operadores aumentaram quatro vezes. As taxas de não comparência, intervalo de tempo e cancelamento de veículos tiveram aumentos semelhantes. As taxas de acesso ao terminal causaram forte impacto para as transportadoras rodoviárias que atendem os portos na Austrália. Em 2016, era apenas de US$ 3,57 por contêiner e, em 2020, aumentou quarenta vezes. O relatório de monitoramento da ACCC (Comissão Australiana de Concorrência e Consumo) mostrou que em 2019 os “turnaround time” de caminhões no porto pioraram nacionalmente, de uma média de 29,3 minutos para 51,5 minutos por carga no porto de Melbourne.
Importantíssimo ressaltar que a ACCC, constantemente, vem levantando essas questões perante as Cortes Australianas, mas sem sucesso, devido aos modelos de contratos firmados nas privatizações e o limitado poder de interferência do governo no setor privado.
Entre outros exemplos, e de modo sucinto, quem no final da cadeia de suprimentos está sendo prejudicado é o consumidor australiano. Essa situação ocorrerá nos próximos 90 anos até que as atribuições dos portos do setor privado retornem ao setor público.
Não gostaria de encerrar este artigo sem lembrar o que diz Lazzarini, com muita propriedade: no Brasil, os portos do Arco Norte e (principalmente) os nordestinos são socioeconômico e geopoliticamente estratégicos, pois são notadamente responsáveis pelo escoamento da safra agrícola nacional. Portanto, num futuro cenário de guerra ou protecionismo econômico, poderia tornar-se um enorme equívoco desconsiderar ameaças e os reais interesses estrangeiros ao investir na privatização dos portos nesta região.
Ao encerrar este primeiro artigo sobre a privatização das autoridades portuárias brasileiras, deixo a pergunta no ar: se deu errado na Austrália, porque a pressa de fazer algo que tenha alta probabilidade de riscos insanáveis, caso dê errado no Brasil? Por que não discutir mais a fundo, ouvindo todos os envolvidos nesse assunto?
Num próximo artigo, procuraremos resgatar propostas para a gestão das autoridades portuárias que permitam atacar o conjunto de problemas que atualmente consideramos relevantes para o desenvolvimento do país, sem colocar em risco a soberania e os objetivos estratégicos para esse desenvolvimento.