Marçal Justen Filho, Cesar Pereira e Isabella Fonseca*
A complexidade dos fatores envolvidos no combate à corrupção torna imprescindíveis os mecanismos consensuais para propiciar a superação de impasses e promover as soluções mais satisfatórias possíveis. É necessário conciliar medidas de repressão à conduta ilícita com a preservação dos empregos e da atividade econômica, bem como criar incentivos adequados ao aprimoramento institucional.
A experiência internacional é rica quanto a isso. Os instrumentos europeus de self-cleaning, os acordos administrativos com o DoJ norte-americano ou as negociações para evitar o debarment são alguns exemplos.[1]
Os episódios ligados à Operação Lava-Jato tornaram impossível ignorar essa problemática no Brasil. Tornou-se evidente a dificuldade decorrente da ausência de um one-stop shop onde se pudessem negociar condições abrangentes e definitivas para enfrentar as irregularidades ocorridas e promover um ambiente de integridade para o futuro.
Houve tentativas infrutíferas de solução, como o PLS 105/2015 e a Medida Provisória 703/2015. A jurisprudência do TCU (Tribunal de Contas da União) foi sensível ao tema: principalmente a partir de julgados relatados pelo ministro Benjamin Zymler (Acórdãos 2.446/2018-Plenário e 1.689/2020-Plenário), consolidou-se a orientação de que o TCU reconhece a eficácia dos acordos celebrados no âmbito das competências da CGU (Controladoria Geral da União), CADE (Conselho Administrativo de Defesa Econômica) ou outras instituições – sempre com a ressalva das competências próprias do TCU.
Em agosto de 2021, o TCU, a CGU, AGU (Advocacia Geral da União) e o Ministério da Justiça e Segurança Pública firmaram ACT (Acordo de Cooperação Técnica) para articular mecanismos de combate à corrupção no Brasil, com ênfase nos acordos de leniência celebrados com fundamento na lei anticorrupção (art. 16, Lei 12.846/2013).
Esse ACT pretendeu promover um ambiente de colaboração e cooperação institucional entre os diversos órgãos. O ajuste apresenta caráter principiológico e programático e a sua efetiva implementação carecia de medidas concretas.
Para dar concretude aos compromissos assumidos naquele ACT, o TCU editou a IN (Instrução Normativa) 94/2024, aprovada pelo Plenário em 21 de fevereiro deste ano (Acórdão 239/2024).
O TCU destacou a relevância da regulamentação para o aprimoramento do sistema de combate à corrupção, que é integrado por múltiplos sujeitos, titulares de competências diferenciadas para responsabilização de agentes envolvidos em atos ilícitos praticados contra a administração pública. A eficácia do funcionamento desse
“sistema” depende da cooperação entre as instituições que o compõem e a IN 94/2024 consolidou a disciplina pertinente.
A IN visa a delimitar a atuação harmônica do TCU, da CGU e da AGU no exercício de suas competências para a responsabilização administrativa por ilícitos praticados em atos e contratos suas jurisdições.
A problemática se colocava sob a seguinte perspectiva: a celebração de acordos de leniência pela CGU/AGU não afastava a competência constitucional do TCU para julgamento de contas e aplicação de sanções aos causadores de dano ao erário (art. 71, inc. II e VIII, CF/88).
A ausência de disciplina dos efeitos desses acordos relativamente ao TCU reduzia a efetividade da solução. A jurisprudência consolidada do TCU sobre a eficácia dos acordos de leniência junto ao TCU já favorecia a segurança jurídica e incentivava a adoção do instrumento. Porém, faltava disciplina normativa que desse clareza e estabilidade a esse arranjo institucional.
Nesse cenário, a IN consiste em medida voltada à viabilização da efetiva cooperação entre órgãos com competências concorrentes e complementares. Estabelece regras e prazos procedimentais que se destinam aos seguintes propósitos:
- regulamentar o envio e o tratamento das informações encaminhadas ao TCU pelo CGU/AGU (art. 2° a 5°);
- fixar os mecanismos de apuração de valores relacionados à reparação por ilícitos abrangidos pelos acordos de leniência (6° ao 11);
- definir os limites à utilização de informações obtidas previamente à formalização do acordo (art. 12);
- disciplinar a repercussão das negociações perante outros órgãos sobre processos de controle externo em trâmite ou a serem iniciados pelo TCU (arts. 13 a 23);
- regulamentar a hipótese de responsabilização de terceiros com base em elementos obtidos nas negociações para o acordo de leniência acompanhadas pelo TCU (art. 24);
- prever mecanismos de compensação de valores para evitar bis in idem (arts. 25 e 26).
Segundo a IN, a CGU e a AGU deverão enviar cópia da proposta de acordo de leniência contendo o escopo e, se houver, os valores de ressarcimento discriminados por irregularidade e processos de controle externo no âmbito do TCU.
A previsão se destina a conferir uma maior precisão do escopo do acordo, para permitir ao TCU uma melhor avaliação dos danos relacionados às infrações abrangidas. Segundo o voto do Ministro Benjamin Zymler, “a imunidade da colaboradora perante o TCU e outras instâncias está limitada a esse conjunto de ilícitos admitidos”.
O TCU examinará se os valores negociados no acordo satisfazem aos critérios estabelecidos para a quitação dos danos relativos às irregularidades contempladas no instrumento.
Em caso positivo, compete ao TCU declarar que o pleno cumprimento das obrigações assumidas no acordo de leniência, relacionadas ao ressarcimento dos danos, ensejará a quitação dos valores apurados nos processos de controle externo no TCU, relativos aos danos decorrentes dos ilícitos referidos no acordo.
Em caso negativo, o TCU comunicará à CGU/AGU a necessidade de negociação complementar, se as partes com isso concordarem, para eventual ajuste dos valores a título de ressarcimento de danos.
Eventual manifestação contrária do TCU não impede a celebração do acordo de leniência. De igual modo, também há impedimento à assinatura em caso de atraso da manifestação do TCU.
Outro aspecto relevante da IN consiste na solução quanto aos efeitos da celebração de acordos de leniência relativamente à competência sancionatória do TCU, em especial no tocante às sanções de declaração de inidoneidade (art. 46 da Lei 8.443/1992).
Havia uma divergência no TCU acerca da possibilidade de isenção dessa sanção em face das empresas colaboradoras. O próprio Relator já havia se manifestado em caso concreto no sentido de que a isenção completa só seria possível caso o acordo de leniência contribuísse de modo significativo para a investigação conduzida pelo TCU (Acórdão 1.310/2021).
A IN resolve essa divergência ao dispor que o “Tribunal não aplicará medida saneadora de sua competência à colaborada relacionada aos ilícitos constantes do escopo do acordo de leniência, desde que a colaboradora se mantenha adimplente em relação às obrigações assumidas” (art. 15, §1°, IN 94/2024). A solução reflete o entendimento que já se havia estabilizado no TCU após decisões do STF nesse sentido (MS 36.496 e MS 35.435).
Por meio da IN 94/2024, o TCU se posiciona sobre os efeitos das negociações conduzidas por AGU/CGU relativamente à sua competência sancionatória, notadamente no que se refere à determinação de ressarcimento por eventuais danos ao erário e à aplicação de sanções fundamentadas na sua lei orgânica. A IN 94/2024 amplia a segurança jurídica nos trâmites para os acordos de leniências. E o TCU reconhece, uma vez mais, a relevância de soluções consensuais no exercício de suas competências.
[1] Cf. PEREIRA, Cesar. SCHWIND, Rafael Wallbach. Autossaneamento (self-cleaning) e reabilitação no direito brasileiro anticorrupção. In: Revista de Direito Administrativo Contemporâneo. São Paulo: RT. Ano 3. v. 20. set/out 2015, e SCHWIND, Rafael. Da “pena de morte” à reabilitação de empresas acusadas de corrupção – reflexões a propósito dos dez anos da Lei Anticorrupção. In: GIAMUNDO NETO, Giuseppe. PICELLI, Roberto. MUDROVITSCH, Rodrigo de Bittencourt. Lei Anticorrupção em Debate – Balanço dos seus 10 Anos. Curitiba : Juruá. 2024.