Rafael R. Garofano*
Está na pauta de votação do Senado de hoje (24) o Projeto de Lei 4.162/2019, que tem sido chamado de “novo marco legal” do saneamento básico. Trata-se na realidade de uma atualização das leis do setor com alterações relevantes em algumas questões centrais. Uma delas, talvez a mais relevante, é a anunciada extinção dos conhecidos “contratos de programa” firmados sem licitação entre o titular dos serviços (municípios ou entidades metropolitanas) e as companhias estaduais de saneamento básico.
A nova lei procura extinguir esse modelo de contratação direta especificamente para os serviços de água e esgoto, tornando obrigatória a abertura de licitação para escolha do responsável pela gestão e prestação desses serviços, em regime de concessão pública precedida de licitação (art. 175 da CF).
Embora inicialmente a intenção fosse impedir a celebração de novos contratos de programa (PL 3.261/2019), preservando-se apenas aqueles ainda vigentes até o seu termo final, a pressão das empresas estatais e as dificuldades à tramitação da proposta forçaram a inclusão neste novo PL da possibilidade de renovação dos contratos de programa vigentes e o reconhecimento das situações de fato, em que há prestação de serviços sem formalização.
Abriu-se assim uma “janela” para a formalização dessa renovação com as empresas estatais, sem licitação, até 31 março de 2022, admitindo-se mais uma contratação direta com as estatais por um prazo adicional de 30 anos nas localidades em que elas já operam hoje. Ou seja, pelo menos até março de 2052 ainda existirão no Brasil empresas estatais que foram contratadas sem licitação para prestar serviços públicos de saneamento básico.
Ao contrário de propostas anteriores que procuravam limitar/condicionar/qualificar a dispensa de licitação para a contratação das companhias estatais (MP 844/2018 e sua reedição na MP 868/20181), a atual redação do PL não impõe qualquer regra ou condicionante especial à contratação direta sem licitação, senão apenas compromissos com as metas de universalização inerente a estes contratos. Não obriga a submissão do projeto à prévia “manifestação de interesse” do mercado privado ou a qualquer processo minimamente competitivo para escolha do prestador/operador.
Na prática, significa que todos os municípios cujos sistemas são hoje operados pela companhia estadual – cerca de 70% dos municípios brasileiros2 – poderão, até março de 2022, contratar novamente a empresa estatal de saneamento por mais 30 anos, sem competição, desde que ela comprove capacidade de investimento para garantir a universalização dos serviços nos prazos estabelecidos (até 2033, no máximo3), bem como se comprometa com metas e critérios a serem atendidos, como não interrupção dos serviços, redução de perdas e melhoria nos processos de tratamento.
Na realidade, tais condicionantes de compromissos e metas para assinatura ou renovação de contratos nunca foram “opcionais” na legislação do setor4. A lei já equiparava o contrato de programa ao contrato de concessão, especialmente em vista da necessidade de assegurar a realização de investimentos e o cumprimento das metas de universalização e qualidade exigidas no plano de saneamento básico5. A novidade aqui limita-se à previsão de prazo máximo para a universalização aplicável a qualquer contrato do setor (o mesmo prazo previsto no plano nacional de saneamento e que, ao que tudo indica, deve ser revisto diante da inviabilidade de cumprimento de suas metas6).
A verdade é que nunca se questionou a obrigatoriedade de previsão de metas de universalização e de qualidade nas contratações diretas. A discussão nesse campo sempre se deu mais em relação ao preço a ser pago pelos usuários – em geral mais elevados – e à lentidão do cumprimento das metas quando o contrato não é fruto de um processo competitivo. A proposta de extinção dos contratos de programa na realidade sempre partiu da premissa de que a competição quase sempre traz maior vantajosidade (tarifas mais módicas, maior capacidade de investimento, maior eficiência e estímulo à inovação etc).
A ausência de competição pelo serviço tenderia a tornar a contratação mais onerosa, na medida em que o cumprimento das metas pelo prestador (de universalização, qualidade etc.) dependeria da capacidade de investimento/endividamento e da estrutura de custos (inclusive custos de capital e de pessoal) de um único “proponente” (exclusivo). E como essa capacidade/estrutura tende a ser muito mais custosa nas empresas estatais, as mesmas metas contratuais poderiam em tese ser atingidas em prazo menor e a um custo significativamente mais baixo por outro operador privado se o objeto fosse submetido à prévia concorrência7.
É certo que haverá avanços e maior abertura à competição com a proibição de novos contratos de programa nos municípios onde as estatais não atuam hoje (ainda que parte deles já seja operado por empresas privadas, a maior parte ainda é administrada por prestadores públicos municipais). E a exigência de comprovação da viabilidade dos investimentos e metas dentro de um horizonte determinado de prazo certamente dificultará a renovação dos já existentes. No entanto, a questão mais central em torno da vantajosidade dos contratos de programa – comparativamente à alternativa de competição pelo serviço – parece ter sido deixada um pouco de lado na proposta de reforma legislativa em nome do pragmatismo político e da viabilização do “meio termo” possível no Congresso Nacional.
A extinção dos contratos de programa é apenas parcial e não imediata. A modalidade está preservada em relação à maioria dos municípios brasileiros que poderão renovar seus contratos com operadoras estatais. A obrigação de metas como condição para a renovação, embora crie alguma dificuldade, não altera substancialmente a condição atual e não esconde o fato de que as estatais continuam a poder ser contratadas (renovação) sem prévia competição, pelo menos até a data prevista na norma (março de 2022), sem qualquer exigência adicional de motivação da vantajosidade do modelo de prestação.
Se a anunciada extinção dos “contratos sem licitação” era um dos “pilares” da reforma do marco regulatório do setor – defendida por muitos como a mudança mais importante e estrutural para permitir um significativo incremento de investimentos privados no setor –, ela na realidade parece ter ficado bastante mitigada na redação atual do projeto a ser submetido à votação, e pode mesmo nunca acontecer completamente.
Ainda que o PL seja aprovado, a plena abertura do setor à competição pelo serviço dependerá ainda de alguma dose de boa vontade parlamentar para impedir a votação de eventual – mas bastante provável – nova proposição legislativa às vésperas de março de 2022, visando prorrogar a “janela de oportunidade” das estatais para além desse prazo inicialmente concedido. Seria um “jeito” nada incomum e relativamente simples de perpetuar a situação atual e evitar a extinção dos contratos de programa na realidade da maioria dos municípios brasileiros.
Embora a preservação das contratações vigentes até o término do prazo original pudesse de alguma maneira se justificar para impedir a desorganização repentina do setor ou interferir negativamente na política de subsídios, ou ainda para evitar a desvalorização das empresas estatais – o que afetaria negativamente a sua alienação futura –, a permissão de renovações sem competição, desacompanhada de qualquer avaliação da vantajosidade da contratação direta frente à alternativa de processo competitivo, parece mesmo caminhar na contramão da alardeada “reforma estrutural” do marco regulatório do setor.
A “sobrevida” concedida por meio da renovação das relações existentes por mais 30 anos parece mesmo se desviar do objetivo original da proposta, que era evitar a contratação direta – sem licitação – de empresas que não necessariamente possuem condições de ofertar a “melhor proposta” para a prestação dos serviços, inclusive em termos de atendimento mais célere das metas de universalização e qualidade, a um custo mais baixo para os usuários.
Ao que tudo indica, a alteração do marco regulatório, tal como proposta, não será suficiente para impedir uma “nova onda” de contratações diretas (renovações) quase sempre desvantajosas se comparadas a outras propostas que poderiam decorrer da competição. Logo após a sua eventual aprovação, o setor poderá imergir mais uma vez no dilema político mais elementar da disparidade de forças entre níveis federativos e dos interesses políticos e econômicos, numa corrida em busca das renovações, sem competição.
E isso sem ao menos se exigir maior justificação da tomada de decisão pela renovação em detrimento da abertura de processo competitivo visando selecionar a melhor proposta8. Apesar da decisão pela dispensa nunca ter sido completamente “livre”, perde-se a oportunidade de se exigir análises mais acuradas de vantajosidade, custo-benefício e qualidade do investimento – indispensáveis para sustentar qualquer delegação de serviços no setor –, especialmente quando realizada sem prévio processo competitivo ou de avaliação/comparação com outras alternativas igualmente viáveis.
Apesar de significar um avanço, a proposta legislativa poderia ter procurado evitar – ou ao menos dificultar – uma nova contratação direta (renovação) baseada apenas no critério político, como ocorre hoje na maior parte dos casos. Se não há nada na legislação capaz de constranger o gestor público a não contratar diretamente a entidade estadual – sendo suficiente o compromisso de cumprimento de metas “a qualquer custo” –, e se também não há nada que efetivamente assegure o “fechamento da janela de oportunidade” no tempo inicialmente programado – até março de 2022 –, a perspectiva de abertura completa do setor à “competição pelo serviço” fica realmente mais distante.
A aposta parece estar mais na privatização das companhias estaduais ou nas subconcessões, subdelegações e parcerias público-privadas. A alienação do controle acionário estatal parte da premissa de que a venda da empresa poderá ser mais bem-sucedida se mantidos e renovados os contratos de programa existentes, o que não é uma verdade absoluta na medida em que a manutenção das operações, das receitas e da estrutura corporativa pode inclusive fortalecer movimentos de resistência à privatização. Isso sem falar nas dificuldades da privatização das companhias com maior volume de passivos ou com ativos não tão atrativos, a tornar a alternativa bastante improvável para a maioria delas. Além disso, a privatização na sequência de renovações não-competitivas, ao mesmo tempo em que valoriza os ativos e a companhia – reforçando o caixa do acionista controlador –, parece onerar injustificadamente os usuários e operar no sentido contrário às políticas públicas de universalização.
A segunda ideia em alguma medida reconhece a dificuldade de viabilização da primeira ao partir da premissa de que muitas companhias seguirão sob controle estatal. Ao mesmo tempo, reconhece a incapacidade de investimentos dessas companhias sem a colaboração/participação do setor privado. Ainda que a proposta de lei proíba subconcessões ou subdelegações que impliquem “sobreposição de custos administrativos ou gerenciais” a serem pagos pelo usuário final, a renovação dos contratos de programa por mais 30 anos, seguida de alguma espécie de subcontratação de empresas privadas, dificilmente se justificaria frente a um cenário de abertura radical à competição pelo serviço na “primeira camada”.
A realidade sobre o PL de reforma do marco legal é que ele reflete o “acordo setorial possível” neste momento. Sem dúvida representa um avanço no sentido da maior abertura à competição e vai estimular investimentos privados no setor, porém com abrangência e intensidade mais tímidas do que as inicialmente concebidas.
A proposta busca compatibilizar ou “acomodar” os interesses contrapostos em disputa e, assim, viabilizar pelo menos alguns aperfeiçoamentos regulatórios importantes. A supervisão regulatória por agência nacional, o aperfeiçoamento das normas de regulação, o estímulo à regionalização dos serviços, a maior transparência da política de subsídios no setor, entre outras, são todas medidas extremamente relevantes, inclusive no sentido de estabelecer a estrutura regulatória necessária para a maior abertura à competição e participação do setor privado.
Ainda assim, ao manter a possibilidade de renovação dos contratos do setor sem qualquer processo competitivo e sem qualquer exigência de justificação reforçada de sua vantajosidade, por mais um ciclo de 30 anos, a reforma legislativa aparentemente pode proporcionar mais um longo período de “mais do mesmo” na maioria da cidades brasileiras. De se esperar, no mínimo, que as renovações das contratações diretas sejam efetivamente acompanhadas de forte regulação orientada pelas normas de referência, com manejo de instrumentos regulatórios que possam assegurar, por exemplo, o compartilhamento de ganhos de produtividade com os usuários dos serviços, funcionando como mecanismos de indução e busca pela eficiência.
Na perspectiva do usuário, resta vigiar futuras propostas de prorrogação de prazos (para renovações ou para cumprimento de metas) e torcer para que as outras medidas de melhorias regulatória possam efetivamente surtir bons resultados para o avanço de modelos de parcerias público-privadas – em sentido amplo – entre prestadores estatais e empresas puramente privadas. E torcer também para que a reforma regulatória e a modelagem dos contratos de parceria sejam capazes de impedir a replicação ou ao menos mitigar as conhecidas deficiências e ineficiências dos prestadores não-competitivos.