Roberto Rockmann*
A decisão do governo de relicitar as 24 concessões de transmissão de energia elétrica vincendas entre 2025 e 2032 trouxe uma série de dúvidas ao setor, diante da importância que o segmento de transmissão vem ganhando, com mais de R$ 80 bilhões em leilões previstos nos próximos dois anos.
A opção pela relicitação foi tomada nos últimos dias do governo do então presidente Jair Bolsonaro, com o Decreto Presidencial 11.314, de 28 de dezembro de 2022. O governo petista de Lula ainda não se pronunciou se concorda com as relicitações de transmissão. Sobre a concessões de distribuição, o MME (Ministério de Minas e Energia) abriu no fim de junho CP (Consulta Pública) considerando a prorrogação aos atuais concessionários por mais 30 anos sem novo leilão.
Entre 2025 e 2032, irão expirar os contratos de 24 concessões de transmissão que abrangem 8,9 mil quilômetros de linhas e envolvem empresas como Taesa, Alupar, ISA Cteep e Eletrobras.
O decreto 11.314/2022 contrariou boa parte do setor, que se manifestou publicamente no segundo semestre do ano passado na CP 136/2022, que tratou do tema e subsidiou o documento. Foram criadas dúvidas regulatórias e operacionais que precisarão ser equacionadas em um momento em que a necessidade de capital do segmento é crescente.
Foi determinado pelo decreto que o MME, subsidiado pela EPE (Empresa de Pesquisa Energética) e pelo ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), definirá melhorias, reforços e novas instalações pertencentes à concessão em fim de vigência, com antecedência mínima de 36 meses do advento do termo contratual.
Segundo estudo da FGV-Ceri, o primeiro contrato expira em 17 de julho de 2025, o que indica que o prazo estipulado no decreto já estaria ultrapassado.
“O assunto se tornou ainda mais importante com tantos leilões bilionários pela frente e que exigem financiamento de longo prazo. Há uma série de regulamentações ainda a serem feitas e dúvidas: quais serão as linhas que serão licitadas e quais as que serão prorrogadas? Capital está escasso e é preciso uma programação”, observa um empresário.
A prioridade do governo pela relicitação é vista com ressalvas por muitos especialistas. O certame de outubro foi remarcado para dezembro para atenuar pressões de fornecedores. Relicitar aumenta a demanda por investidores e recursos no setor, além de criar desafios operacionais para conduzir tantos processos. “De um ponto de vista prático, relicitar 24 linhas será possível? Há estrutura para isso no governo e na agência reguladora com tantos assuntos simultâneos?” questiona Raphael Gomes, sócio do Lefosse Advogados.
Há outras incertezas que precisariam ser solucionadas. Uma se refere ao fato de que o governo optou pela relicitação, mas não embasou a escolha em nenhum estudo. Isso cria o receio de que o TCU (Tribunal de Contas da União) questione a decisão. “Isso poderá abrir questionamentos e travar a decisão e deixar essas linhas no limbo regulatório, ainda mais que o TCU tem papel relevante na discussão dos ativos de distribuição e participará do processo”, diz um consultor. A decisão do governo contrariou a maioria das opiniões de entidades que participaram da discussão pública ano passado.
Em sua avaliação na Consulta Pública, a Abrate (Associação Brasileira das Transmissoras de Energia) considerou ser “extremamente relevante que sejam apresentados estudos, contendo critérios, indicadores, e parâmetros técnicos e econômico-financeiros que fundamentem e justifiquem a tomada de decisão pelo poder concedente face à opção legal de licitar ou prorrogar uma concessão vincenda”.
Remuneração de ativos amortizados
O decreto ainda exigiria a regulamentação de alguns pontos sobre o processo, segundo especialistas. Um deles se refere à remuneração dos concessionários com equipamentos com vida útil esgotada (ou seja, amortizados). “Hoje eles não têm remuneração, mas há custos de operação e manutenção e ainda o ônus de perda de qualidade, isso precisa ser ajustado”, diz João Carlos Mello, presidente da Thymos.
Outro ponto a ser aperfeiçoado, na visão dele, é que as obras de melhorias e reforços deveriam propostas pelo concessionário, não pelo poder concedente ou regulador. “Deveria ser proposto como é na distribuição e, se não for cumprida essa melhoria, deveria haver uma penalização a ser feita na revisão periódica dos ativos”, observa.
Para Tiago Soares, diretor de assuntos econômicos e financeiros da Abrate, há incerteza em relação à metodologia de indenização dos ativos e dúvidas em relação ao processo de prorrogação da concessão, opção de exceção que pode ser considerada pelo poder concedente caso não seja levada adiante a relicitação.
Soares diz que hoje no setor há duas modalidades contratuais, uma baseada nos leilões anuais em que as revisões periódicas são mais espaçadas, outra com acertos mais discricionários e revisões periódicas a cada cinco anos (usados pela Rede Básica do Sistema Existente, espécie de indenização em relação à MP (Medida Provisória) 579). “Se houver a prorrogação, qual será o regime tarifário dessa opção? Como será tratado?”.
O decreto 11.314 privilegia a licitação das concessões em detrimento da prorrogação contratual, aplicável apenas quando a licitação for inviável ou resultar em prejuízo ao interesse público, o que poderia ser requerido pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica) em até 21 meses antes do termo contratual e com prévia realização de consulta pública específica.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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