Leonardo Cezar Ribeiro*
A retomada do protagonismo das ferrovias no planejamento da infraestrutura nacional exige, além de marcos legais modernos, instrumentos financeiros compatíveis com a natureza de longo prazo desses empreendimentos. Nesse sentido, as contas vinculadas surgem como um mecanismo estratégico para garantir segurança jurídica, previsibilidade e continuidade ao ciclo de investimentos ferroviários – especialmente em um cenário de consolidação de novas políticas públicas para o setor e de um banco de projetos inédito que está sendo estruturado pelo Governo Federal.
As contas vinculadas, também conhecidas como escrow accounts, são instrumentos amplamente consagrados no mercado financeiro que vem sendo cada vez mais utilizados na estruturação de projetos de infraestrutura – por exemplo, no setor rodoviário. Em outras palavras, trata-se de contratos de administração de contas bancárias que estabelecem regras claras para a movimentação de recursos, com base em condições previamente pactuadas entre concessionárias e poder público. São mecanismos amplamente usados no mercado e que servem para garantir transparência, rastreabilidade e segurança jurídica na aplicação de recursos, sobretudo quando envolvem obrigações de médio e longo prazo.
No contexto das concessões públicas, essas contas funcionam como ferramenta de governança financeira, permitindo que recursos sejam movimentados conforme diretrizes estabelecidas em contrato – inclusive determinadas pelo próprio Poder Público. No setor rodoviário federal, por exemplo, o uso das contas vinculadas já está consolidado, sendo fundamental para mitigar riscos compartilhados entre poder público e setor privado.
No setor ferroviário, a aplicação das contas vinculadas tem potencial ainda maior, tendo em vista o instrumento conhecido como investimento cruzado, positivado nas leis 13.448/2017, e 14.273/2021 – artigos 25º e 15º, respectivamente. Com base na lei, as concessionárias podem investir recursos de natureza pública em trechos de malha ferroviária fora de sua área original, desde que sejam malhas de interesse da administração pública. Nesse ambiente institucional, as empresas podem realizar obras ou aportes de recursos de forma transparente, garantindo que os recursos sejam aplicados conforme diretrizes públicas. Na prática, os investimentos cruzados viabilizam a expansão das estradas de ferro e a entrada de novos operadores na gestão de ativos ferroviários. Trocando em miúdos, trata-se de uma solução jurídica moderna que favorece a expansão coordenada da malha ferroviária nacional, com base na legislação que regulamenta o direito financeiro e o setor ferroviário.
Por certo o mecanismo do investimento cruzado com contas vinculadas permite que trechos estratégicos cruciais para a política pública sejam implantados em uma lógica de parceria público-privada. Os investimentos podem ser realizados diretamente pelas concessionárias atuais, permitindo que os vencedores dos leilões planejados pelo Governo federal operem novos ativos ferroviários contando com aportes previamente garantidos, conforme contratos estruturados pelo próprio Poder Público. Essa separação entre quem aporta e quem opera a concessão alinha interesses público e privado, otimizando o reinvestimento de recursos do próprio setor em malhas que sejam de interesse público.
Outro fator que amplia a relevância das contas vinculadas no setor ferroviário são as fontes orçamentárias específicas do orçamento federal, criadas em 2024, com base na revisão do marco legal das ferrovias, que introduziu o artigo 66 na lei. Essas fontes permitem que recursos públicos – provenientes, por exemplo, de outorgas, adicionais de vantajosidade ou indenizações – sejam reinvestidos no setor de ferrovias. A partir de uma ação orçamentária de aporte em contas vinculadas, os recursos podem ser aportados em empreendimentos federais plurianuais, com rastreabilidade e proteção jurídica contra eventuais contingenciamentos.
Ou seja, as contas vinculadas no setor ferroviário podem ser alimentadas tanto por recursos do orçamento federal , quanto por aportes das atuais concessionárias, no contexto de investimentos cruzados previstos na legislação específica. A experiência já consolidada nas concessões rodoviárias federais, onde as contas vinculadas já são utilizadas, serve como referência importante para o setor ferroviário.
Deve-se ter claro que a plurianualidade intrínseca dos projetos de ferrovia – muitas vezes exigem ciclos de investimento de 10 a 15 anos –, justifica a utilização de instrumentos que assegurem a continuidade dos recursos, independentemente de mudanças políticas ou orçamentárias. Nesse cenário, a adoção plena das contas vinculadas no setor ferroviário representa, portanto, mais do que uma inovação técnico-jurídica: é um passo decisivo para institucionalizar uma política de Estado voltada à infraestrutura de longo prazo, superando as descontinuidades históricas que marcaram o desenvolvimento das ferrovias no Brasil.
Aqui importa ressaltar que a adequada precificação dos ativos ferroviários é essencial para garantir justiça contratual, atratividade aos investidores e eficiência na alocação dos recursos públicos e privados. Subavaliar ou superavaliar um ativo pode comprometer a competitividade dos leilões, distorcer os incentivos econômicos e até gerar passivos futuros para o Estado. De mais a mais, a institucionalização de um banco de projetos ferroviários, na forma de uma plataforma transparente e acessível, é fundamental para assegurar a boa governança dos investimentos cruzados.
Em suma, com segurança jurídica, previsibilidade regulatória e instrumentos financeiros modernos, o Brasil pode, finalmente, tirar do papel os milhares de quilômetros de trilhos planejados – conectando regiões produtoras aos portos, reduzindo o custo logístico e promovendo desenvolvimento regional com sustentabilidade. Em última análise, as contas vinculadas no setor de ferrovias representam o que há de mais moderno em matéria de governança, quando o assunto é destravar investimentos privados a partir de parcerias público-privadas.
*Leonardo Cezar Ribeiro é secretário nacional de Transporte Ferroviário e conselheiro fiscal da Infra SA.
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