Guilherme F. Dias Reisdorfer*
Em 14 de novembro de 2024, a diretoria da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) aprovou a IN (Instrução Normativa) 33/2024, que define (i) regras gerais para recomposição do equilíbrio econômico-financeiro dos contratos de contratos de concessão rodoviária celebrados pela ANTT e (ii) o regime de aplicação de medidas mitigadoras de desequilíbrios.
É sobre esse segundo aspecto – as medidas mitigadoras de desequilíbrio – que aqui se trata. O tema está na pauta do dia: basta lembrar a Decisão 683/2024 da ANAC (Agência Nacional de Aviação Civil), que teve por objeto o reequilíbrio cautelar para viabilizar a reconstrução do Aeroporto Salgado Filho, de Porto Alegre. O assunto também foi regulamentado com pioneirismo pelo Estado de São Paulo em 2023 (Resolução SPI 19/2023) e comentado em artigo específico publicado pela Agência iNFRA.[1]
O enfrentamento das situações de desequilíbrio pode ser complexo e tem sido grande fonte de litígios e de custos, derivados de impasses em alcançar soluções tempestivas. A realidade enfrentada pela ANTT é um bom exemplo: os reequilíbrios relativos à pandemia vieram a ter metodologia definida apenas em 2021 (Resolução ANTT 5.954, de 4.11.2021) e ainda hoje, conforme recente diagnóstico do TCU, revisões tarifárias tendo por objeto os efeitos da pandemia permanecem sob discussão.[2] Diante dessa realidade, a IN 33/2024 traz potenciais soluções para lidar com o custo temporal dos processos de reequilíbrio.
Um dos conceitos centrais da IN 33/2024 é o de “medidas mitigadoras de desequilíbrios econômico-financeiros”. O art. 4º, inc. III, conceitua tais medidas como “ações temporárias e provisórias, adotadas em regime excepcional, com o objetivo de minimizar os impactos financeiros negativos em contratos de concessão de rodovias, visando recompor, ainda que de maneira transitória, o equilíbrio econômico-financeiro do contrato”. O processamento dessas medidas está condicionado à admissibilidade do chamado “pleito principal” (integral e definitivo) de reequilíbrio, conforme os arts. 5º e 22.
As medidas mitigadoras dependem de pedido específico da concessionária (art. 25, § 2º) e se apresentam em duas modalidades.
A primeira modalidade é o “reequilíbrio parcial de natureza cautelar”, que corresponde à adoção de providências de mitigação dos impactos financeiros do evento de desequilíbrio em situações de urgência e risco “ao fluxo de caixa” (art. 23) e “à continuidade e qualidade dos serviços” (art. 4, inc. VI).
Os incisos do § 1º do art. 23 definem três requisitos para o reequilíbrio cautelar: (i) probabilidade do direito da concessionária, (ii) o risco de dano e (iii) “impacto financeiro estimado do evento ou do conjunto de eventos de desequilíbrio superior a 2% (dois por cento) da receita tarifária bruta do último exercício financeiro auditado da concessionária”.
A cautelar será cabível não apenas quando forem demonstrados riscos diretos e imediatos de interrupção ou deterioração da qualidade do serviço público (art. 26, § 2º, inc. III), mas também quando a concessionária demonstrar prejuízos imediatos internos a ela, inclusive em relação a seus compromissos financeiros e relações com terceiros. Isso se justifica em vista da relação inafastável, ainda que por vezes não imediata, entre tais fatores e a sustentabilidade do serviço público. Daí a IN 33/2024 acertadamente indicar que a ANTT deverá levar em consideração fatores como “o impacto nas contas da concessionária, incluindo a geração de fluxo de caixa livre negativo, comprometimento dos indicadores financeiros ou impacto em dívidas financeiras” (art. 26, § 2º, inc. I).
A segunda modalidade é o “reequilíbrio parcial baseado em evidência”, que tem cabimento quando “o direito ao reequilíbrio é incontroverso ou está em condições de reconhecimento imediato” (art. 4º, inc. VII). A medida tem lugar em situações nas quais é possível estabelecer de forma imediata um valor estimado do reequilíbrio futuro, mas a complexidade da liquidação do desequilíbrio demanda aprofundamento da instrução. Desse modo, a recomposição contratual é escalonada em pelo menos duas etapas, pois o reequilíbrio de evidência será implementado sob a condição de ser ajustado ao final do processo principal de reequilíbrio (art. 24, § 1º).
A instrução do pedido, que deve ocorrer no prazo de sessenta dias, prorrogável por trinta dias, deverá já prever possível forma de reversão da medida, se isso vier a ser necessário no futuro, assim como poderá sugerir o condicionamento da medida mitigadora à apresentação de garantia pela concessionária, na hipótese específica em que se demonstrar haver risco de irreversibilidade da medida (art. 28, § 2º).
Em qualquer caso, prevê-se que as medidas mitigadoras podem resultar na antecipação de não mais do que 80% do valor estimado do desequilíbrio em discussão e não podem importar em recebimento de recursos antes do impacto financeiro que se busca neutralizar (art. 32). Caberá à Diretoria da ANTT a deliberação colegiada sobre aplicação das medidas mitigadoras (art. 30).
Essas regras evidenciam que a IN 33/2024 representa inegável avanço na prática de reequilíbrio no âmbito da ANTT. Além das inovações, houve consolidação de premissas e providências já adotadas em situações anteriores. No entanto, há espaço para observações e ressalvas.
Um primeiro ponto é que alguns dos requisitos de operacionalização não foram estabelecidos com plena exatidão. Como exemplo, o reequilíbrio por evidência é reservado a situações em que se identifique necessidade de prazo maior para a apuração definitiva do reequilíbrio e o valor em discussão for significativo (art. 24, § 2º). Mas esses conceitos – o prazo necessário e o valor significativo – não são especificados. Essa incerteza não é um dado negativo, pois confere flexibilidade ao processo decisório da ANTT. De todo modo, as restrições opostas aos pedidos apresentados pelas concessionárias deverão estar embasadas em justificadas adequadas e suficientes.
Um segundo apontamento tem a ver com o fato de que a mesma flexibilidade não foi adotada em relação aos reequilíbrios cautelares, dada a aplicabilidade restrita aos casos em que o desequilíbrio seja superior a 2% da receita tarifária bruta do último exercício financeiro auditado da concessionária.
Como regra, pode-se estimar que os danos mais significativos serão aqueles que ultrapassarem o filtro dos 2% – e a norma é positiva por reduzir o ônus e a complexidade argumentativa das decisões nessas situações. Contudo, não é possível descartar outras situações que demandem a observância do dever da ANTT de mitigar danos decorrentes dos desequilíbrios identificados. O filtro em questão não constitui limitação absoluta à possibilidade de exercício do poder de cautela – que, antes de tudo, deriva da lei e do compromisso da administração pública com a eficiência e a proporcionalidade no trato mais adequado das situações concretas, conforme os arts. 2º, parágrafo único, inc. VI, da Lei Federal 9.784/99 e 20 e 27 da LINDB.
Um apontamento final diz respeito ao art. 25, § 2º. A norma estabelece que, para formular o pedido de medida de mitigação, a concessionária deverá aderir à disciplina da IN 33/2024, reconhecer o caráter precário e reversível das medidas e – aqui está o ponto crítico – “comprometer-se a não pleitear, em qualquer foro judicial ou tribunal arbitral, a concessão de medidas liminares, tutelas de urgência ou antecipações de tutela que, de qualquer forma, busquem obstar eventual decisão da Agência que reverta as medidas concedidas”.
Essa previsão é passível de questionamentos. Se nem mesmo a lei pode excluir “da apreciação do Poder Judiciário lesão ou ameaça a direito” (art. 5º, inc. XXV, da CF), muito menos o regulamento poderia fazê-lo. Além disso, a renúncia é questionável não apenas por versar sobre situação futura, mas também pela natureza dos interesses envolvidos: se a concessionária entender que a manutenção das medidas de mitigação é necessária, ela poderá (ou mesmo deverá, diante de seus deveres para com o serviço público e perante terceiros) buscar as providências necessárias para acautelar a boa execução do contrato. Logo, a adesão à IN 33/2024 não impedirá que a reversão injustificada ou indevida das medidas de mitigação seja questionada, conforme a sistemática de resolução de disputas prevista em contrato.
[1] REISDORFER, Guilherme. Medidas cautelares de reequilíbrio de concessões – a Resolução 19/2023 da Secretaria de Parcerias em Investimentos de São Paulo. Disponível em https://agenciainfra.com/blog/infradebate-medidas-cautelares-de-reequilibrio-de-concessoes-a-resolucao-19-2023-da-secretaria-de-parcerias-em-investimentos-de-sao-paulo/.
[2] “A criação da metodologia de cálculo, a normatização das regras e procedimentos e os cálculos dos valores já foram feitos. As revisões tarifárias vêm sendo promovidas, restando apenas as decisões finais sobre as contestações dos valores adotados” (TCU, Acórdão 2.440/24-Plenário, Rel. Ministro Antonio Anastasia j. 13/11/2024).
* Guilherme F. Dias Reisdorfer é advogado na Justen, Pereira, Oliveira & Talamini. Doutor e mestre em Direito do Estado pela USP (Universidade de São Paulo).
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.