Daniela Alcaro e Erico Mello*
Nos últimos anos, a segurança do mercado de energia brasileiro tem passado por um processo de aprimoramento, especialmente diante dos desafios financeiros enfrentados por algumas comercializadoras. Ainda assim, o setor tem demonstrado resiliência e capacidade de adaptação, e dessa forma continua a fornecer energia para os consumidores livres.
Nesse contexto, e com a crescente complexidade das operações e a diversificação de agentes, surge no setor uma inquietação legítima: como aprimorar a segurança e a estabilidade do mercado sem sufocar sua vitalidade?
Em momentos como este, é importante a colaboração de todos os agentes e o reconhecimento de que nem todas as soluções virão exclusivamente do regulador. Veja, os agentes reguladores são essenciais, mas não podem de maneira alguma ser a única fonte de segurança, e sim devem servir como o alicerce para um mercado maduro e responsável pelas suas próprias ações.
Nesse sentido, alguns stakeholders vem trabalhando na proposição de soluções e ideias que já estão sendo colocadas na mesa e cabem como alternativas válidas e dignas de debate dentro do setor — como, por exemplo, soluções análogas à criação de uma contraparte central, a criação de uma própria contraparte central e até medidas de autorregulação por parte dos agentes.
Embora também reconheçamos o potencial da contraparte central (“clearing”) como uma solução estruturante para os desafios que enfrentamos, é evidente que se trata de uma medida voltada ao longo prazo. Enquanto esperamos alcançar a excelência, podemos buscar ações de curto e médio prazo que pavimentem o caminho para a chegada desse recurso, tornando o mercado melhor durante o processo.
Diante deste cenário, o fortalecimento das estruturas já existentes e a mobilização dos próprios agentes do setor despontam como caminhos mais viáveis e imediatos. Entre essas alternativas, a autorregulação vem ganhando destaque como uma estratégia que alia conhecimento técnico com responsabilidade setorial.
Um exemplo bem-sucedido vem do mercado financeiro e pode servir de referência para o setor de energia. No passado, os próprios participantes do mercado se organizaram, por meio da Anbima (Associação Brasileira das Entidades dos Mercados Financeiro e de Capitais), para desenvolver mecanismos de autorregulação que proporcionaram um melhor funcionamento do mercado, trouxeram mais segurança e facilitaram a fiscalização pelo regulador, tanto pela CVM (Comissão de Valores Mobiliários) quanto pelo Banco Central.
As lições do mercado financeiro de algum modo já inspiraram o mercado de energia. Agentes do setor têm desenvolvido várias ações para trazer mais segurança e aprimoramentos. Quem acredita que o mercado de energia não está se movimentando para enfrentar a questão da segurança está, provavelmente, distante de sua realidade.
A Abraceel (Associação Brasileira dos Comercializadores de Energia Elétrica), por exemplo, criou recentemente um Grupo de Trabalho Especial de Segurança de Mercado. O colegiado tem a missão de aprofundar propostas para fortalecer a resiliência e a sustentabilidade do mercado de energia elétrica. Ela caminha para se tornar um agente de autorregulação de fato. A associação já possui um histórico de contribuição para a evolução dos mercados. Foi pioneira, por exemplo, na defesa da bilateralização do risco, que busca eliminar do Mercado de Curto Prazo eventuais inadimplências, e na disseminação de conhecimento através, por exemplo, da elaboração e divulgação do manual de boas práticas na gestão de risco.
A BBCE (Balcão Brasileiro de Comercialização de Energia), por sua vez, tem recentemente desempenhado um papel importante ao contribuir para a maior segurança do mercado. A instituição está conduzindo iniciativas relevantes, ligadas à liquidação financeira e à gestão de garantias do mercado de energia. Alternativas interessantes e de aplicação em curto espaço de tempo.
A CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) também merece destaque pelo excelente trabalho de supervisão e monitoramento de mercado que vem desenvolvendo, como, por exemplo, ao criar o fator de alavancagem dos agentes com intuito de reduzir e mitigar riscos de inadimplência.
Existem ainda outros exemplos, mas é importante destacar que há espaço considerável para o fortalecimento da autorregulação. Isso implica que o próprio mercado exija dos seus participantes que eles desenvolvam ferramentas de gestão de risco mais sofisticadas, criem boas estruturas de governança e ampliem a transparência de suas operações. Implica, também, em fomentar uma ética de responsabilidade individual e coletiva, na qual cada agente compreenda que a estabilidade do sistema é uma construção constante e compartilhada.
Segurança de mercado sólida não se impõe, se constrói cotidianamente por meio da responsabilidade compartilhada entre os seus participantes. Nesta jornada, a autorregulação se apresenta como uma ferramenta essencial para consolidar práticas mais consolidadas e confiáveis, promovendo o desenvolvimento do setor energético com equilíbrio, maturidade institucional e compromisso de longo prazo.
* Daniela Alcaro e Erico Mello são sócios-fundadores da Stima Energia.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.