Milton Carvalho Gomes*, Waleska de Sousa Gurgel** e Silvia Machado Leão***
A recente crise institucional entre o governo federal e as agências reguladoras brasileiras, que resultou na solicitação presidencial à AGU (Advocacia-Geral da União) para estudar possíveis alterações no marco regulatório, abre uma janela de oportunidade singular para o aperfeiçoamento de nossa governança regulatória. Este momento pode representar um ponto de inflexão na história da regulação brasileira, permitindo endereçar questões estruturais há muito negligenciadas em nosso ordenamento jurídico e nas práticas institucionais.
Uma análise retrospectiva do modelo regulatório brasileiro revela que a própria caracterização das agências reguladoras como autarquias especiais pode ter constituído um obstáculo involuntário ao desenvolvimento de relações institucionais mais sofisticadas. O peso da tradição jurídica administrativa brasileira, fortemente ancorada em conceitos de hierarquia e comando (mesmo quando implícitos nos amplos poderes de nomeação e exoneração dos dirigentes) acabou por contaminar a compreensão do papel das agências reguladoras. A nomenclatura “autarquia”, mesmo que qualificada como “especial”, carrega consigo todo um histórico de controle e supervisão que contradiz a própria essência do modelo regulatório independente, criando uma ambiguidade conceitual que tem reflexos práticos significativos na gestão pública brasileira.
Esta contradição conceitual manifesta-se cotidianamente nas relações entre ministérios e agências reguladoras. Os órgãos ministeriais, habituados a exercer tutela sobre autarquias tradicionais, frequentemente demonstram dificuldade em estabelecer uma dinâmica diferenciada com as agências reguladoras. O resultado é uma constante tensão entre tentativas de controle direto e resistências a essa intervenção, quando o ideal seria o desenvolvimento de mecanismos sofisticados de coordenação que preservassem tanto a autonomia técnica quanto a necessária sintonia com as políticas públicas setoriais.
O momento atual demanda a construção de novos paradigmas de governança regulatória. É necessário desenvolver instrumentos que permitam aos ministérios exercerem efetivamente seu papel de formuladores de políticas públicas setoriais, estabelecendo objetivos claros, metas mensuráveis e mecanismos de monitoramento de resultados. Simultaneamente, deve-se assegurar às agências a autonomia técnica necessária para definir os meios mais adequados para alcançar esses objetivos, reconhecendo sua expertise setorial e sua capacidade de dialogar tecnicamente com os agentes regulados do mercado.
A experiência internacional oferece insights valiosos nesse sentido. O modelo britânico de comunicações ministeriais às agências reguladoras tem se mostrado particularmente efetivo em estabelecer expectativas claras sem comprometer a independência regulatória. Nos Estados Unidos, o trabalho conduzido pelo OIRA demonstra como é possível promover coordenação interinstitucional preservando a autonomia técnica das agências. A adaptação criteriosa dessas experiências ao contexto brasileiro poderia contribuir significativamente para o aprimoramento de nossa governança regulatória.
Um caminho possível envolve a institucionalização de processos formais de planejamento regulatório conjunto entre ministérios e agências, os quais podem contemplar a elaboração colaborativa de agendas regulatórias, o estabelecimento consensual de prioridades e a definição clara de responsabilidades. A experiência internacional demonstra que a formalização destes mecanismos de coordenação contribui significativamente para a previsibilidade e efetividade da regulação.
A definição clara dos instrumentos e mecanismos de relacionamento entre ministérios e agências reguladoras constitui elemento central para o aperfeiçoamento da governança regulatória brasileira. Trata-se de estabelecer não apenas canais formais de interlocução, mas toda uma arquitetura institucional que contemple: instrumentos jurídicos adequados para a formalização das diretrizes governamentais; definição precisa das instâncias competentes para sua emissão; distinção conceitual entre diretrizes legítimas de política pública e interferências indevidas na autonomia técnica; e estabelecimento de sistemas de monitoramento e avaliação do alinhamento entre regulação e políticas setoriais.
A ausência dessa estruturação formal gera significativos custos de transação na relação entre governo e agências, criando um ambiente de insegurança jurídica no qual nem sempre estão claros os limites entre coordenação legítima e interferência indevida. A indefinição sobre quais instrumentos jurídicos devem ser utilizados para formalizar as diretrizes governamentais – e se estas devem emanar diretamente da Presidência da República ou dos ministérios setoriais – contribui para um cenário de baixa previsibilidade e transparência nas relações institucionais. O que se vê, na prática, é uma intensa troca de correspondências por meio de ofícios, emitidas pelas mais diversas instâncias governamentais, que supostamente contemplariam as políticas públicas a serem seguidas pelas agências.
A recente publicação da Portaria 995/2023 pelo Ministério dos Transportes simboliza um avanço significativo na formalização e transparência das diretrizes de política pública setorial no Brasil. Ao instituir a Política Nacional de Outorgas Rodoviárias por meio de ato normativo público e formal, o Ministério estabelece um precedente importante que deveria ser replicado em outros setores regulados: a necessidade de que as diretrizes governamentais sejam não apenas estabelecidas, mas também adequadamente publicizadas por meio de instrumentos jurídicos próprios.
Este modelo contrasta com práticas menos transparentes de orientação por meio de ofícios ou comunicações, contribuindo para maior segurança jurídica e previsibilidade no relacionamento entre ministérios e agências reguladoras. A formalização por meio de portaria ministerial permite o amplo conhecimento das diretrizes pela sociedade e pelas agências reguladoras, além de viabilizar o posterior acompanhamento de sua implementação e o controle social sobre a adequação entre as políticas públicas formalmente estabelecidas e sua execução.
O estabelecimento de ritos e procedimentos claros para a formalização das políticas públicas setoriais, acompanhados de métricas objetivas para avaliação de seu cumprimento, pode contribuir simultaneamente para dois objetivos aparentemente contraditórios: fortalecer a autonomia técnica das agências e assegurar seu alinhamento com diretrizes governamentais legitimamente estabelecidas. Isso porque a existência de canais institucionais adequados para a coordenação reduz o espaço para interferências informais e permite avaliar objetivamente tanto o respeito à independência das agências quanto sua efetividade na implementação das políticas públicas oficialmente definidas.
A implementação de sistemas robustos de avaliação de impacto regulatório também se mostra fundamental neste processo de aprimoramento. Estas avaliações devem incorporar tanto as análises técnicas setoriais quanto considerações sobre alinhamento com políticas públicas mais amplas e impactos socioeconômicos abrangentes. A criação de metodologias específicas para avaliar a coordenação entre objetivos políticos e implementação regulatória poderia contribuir significativamente para a qualidade do processo decisório.
Outra inovação importante seria o estabelecimento de mecanismos formais de apresentação de resultados que contemplem tanto aspectos técnicos quanto o alinhamento com diretrizes governamentais estabelecidas, o que poderia incluir relatórios periódicos de implementação, avaliações de resultado e fóruns regulares de discussão entre agências e ministérios supervisores. A transparência destes processos é fundamental para permitir o controle social e o aprimoramento contínuo dos mecanismos de coordenação.
A criação de instâncias permanentes de diálogo institucional também se mostra fundamental. Estas estruturas devem funcionar como espaços de construção de entendimentos comuns, alinhamento de expectativas e resolução preventiva de potenciais conflitos. A experiência de países com tradição regulatória mais consolidada demonstra que a existência destes fóruns contribui significativamente para a harmonia institucional e para a qualidade da regulação.
O momento atual apresenta uma oportunidade única para avançar nessa agenda. A iniciativa da AGU de estudar aprimoramentos no marco regulatório deve ser vista como um catalisador para uma discussão mais ampla sobre governança regulatória. O envolvimento da academia, do setor privado e da sociedade civil neste debate pode contribuir para a construção de soluções inovadoras e adequadas à realidade brasileira.
A superação dos desafios atuais não requer necessariamente uma revolução no marco regulatório, mas sim um refinamento dos instrumentos de governança existentes e o desenvolvimento de novos mecanismos de coordenação. O objetivo deve ser a construção de um ambiente regulatório que combine previsibilidade, eficiência e legitimidade democrática, sem comprometer a necessária independência técnica das agências reguladoras.
A consolidação de um modelo regulatório maduro e sofisticado é um processo contínuo que demanda aprendizado institucional e adaptação constante. O momento atual oferece uma oportunidade singular para dar passos significativos nessa direção, contribuindo para a promoção da segurança jurídica no ambiente de negócios e para o desenvolvimento sustentável do país. O sucesso desta empreitada dependerá da capacidade dos diversos atores envolvidos em construir soluções que equilibrem os diferentes interesses em jogo, sempre tendo como norte o interesse público e a efetividade regulatória.
* Milton Carvalho Gomes procurador federal, procurador-geral da ANTT e doutorando em Direito e Economia pela Universidade de Lisboa.
** Waleska de Sousa Gurgel é procuradora federal, subprocuradora-geral de matéria regulatória da ANTT, mestra em Direito pelo Centro Universitário de Brasília.
*** Silvia Machado Leão é procuradora federal, subprocuradora-geral Substituta da Procuradoria Federal junto à ANTT.
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