Opinião

Opinião: Dispute boards nas concessões rodoviárias e ferroviárias – alguns pontos de atenção no novo regramento da ANTT

Diogo Uehbe Lima* e Otávio Piza**

Em 5 de abril foi editada, pela ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), a Resolução 6.040/2024, que altera a Resolução 5.845/2019, para incluir dispositivos que regulamentam o Comitê de Prevenção e Solução de Disputas nos contratos de concessões rodoviárias e ferroviárias, conhecido também como Dispute Board.

A previsão do Comitê tem como fundamento o art. 23-A da Lei de Concessões, que autoriza a inclusão, nos contratos de concessão, de “mecanismos privados para resolução de disputas decorrentes ou relacionadas ao contrato[1].

Por meio do Comitê, terceiros designados pelas partes contratantes poderão apreciar questões controversas, de natureza eminentemente técnica, que surgirem ao longo da execução do contrato.

A ANTT, que já vinha empregando o mecanismo pontualmente em alguns contratos[2], tem agora a possibilidade de utilizá-lo de forma mais ampla e padronizada, com potencial para sanear diversas situações conflituosas nas concessões reguladas e fiscalizadas pela agência.

De fato, é muito oportuno o estabelecimento do regramento para a constituição e funcionamento dos Dispute Boards. Parece-nos, no entanto, que alguns pontos merecem cuidado ou mesmo aprimoramento. Destacaremos três deles.

Em primeiro lugar, chamamos atenção para as vedações quanto às matérias que poderão ser analisadas no âmbito Dispute Board, em especial aquela indicada no art. 26-A, §3º, II, da Resolução 5.845/2019, que afasta da apreciação do Comitê as “divergências relacionadas à validade e legitimidade de atos praticados pela ANTT no exercício de sua atividade fiscalizatória e regulatória”.

Como se sabe, não é incomum que uma questão eminentemente técnica possa caracterizar (ou afastar), por exemplo, a imputação de uma infração contratual ou regulatória, a qual tende a demandar da ANTT o exercício de suas competências fiscalizatórias e sancionadoras, inclusive com a formalização de notificações e lavraturas de autos de infração. Nesse sentido, entendemos que a vedação disposta no art. 26, §3º, II, deve ser interpretada de forma restritiva.

Isso significa dizer que, ainda que não possa se pronunciar de forma direta sobre a validade ou a legitimidade dos atos da ANTT – categorias jurídicas –, o Comitê não estará impedido de apreciar questões de fato, de cunho técnico, que tenham ensejado, por exemplo, uma autuação pela agência, que, por sua vez, poderá ser reconhecida posteriormente como inválida ou ilegítima, após a análise da matéria técnica pelo Dispute Board.

Em outras palavras, ao Comitê é vedado fazer, diretamente, juízos de validade e legitimidade de atos fiscalizatórios e sancionadores praticados pela ANTT, mas não lhe é proibido apreciar questões técnicas cuja resolução poderá ter como consequência jurídica justamente o reconhecimento da invalidade ou ilegitimidade desses mesmos atos.

Essa sutileza na interpretação do dispositivo é relevante, inclusive, do ponto de vista procedimental. Veja-se, por exemplo, que inexiste vedação expressa à instalação do Comitê para apreciar questão técnica correlacionada ao objeto de ato fiscalizatório ou sancionador específico da ANTT.

O segundo ponto diz respeito às dúvidas que envolvem o uso do Dispute Board para produção de decisões meramente recomendatórias e não vinculantes.

Aqui se destaca a ampla discricionariedade que foi conferida à ANTT na opção entre a instalação do Comitê com função vinculante ou recomendatória, conforme previsão a ser disposta em contrato ou em compromisso específico firmado entre agência e concessionária (art. 26-B, caput).

Essa margem conferida à agência pode permitir que ela maneje de forma casuística as opções de Comitê, em relação ao grau de vinculação de suas decisões, conforme sua conveniência ou mesmo suas perspectivas de êxito em determinadas discussões em cada contrato de concessão.

É fundamental, portanto, que as novas cláusulas que venham a tratar dos Dispute Boards sigam um padrão que delimite com objetividade as hipóteses de instalação do comitê recomendatório, a fim de que seja assegurada a isonomia entre as concessionárias e evitada uma gestão excessivamente casuística ou mesmo arbitrária desse instrumento.   

Por último, destaca-se o dispositivo que autoriza a ANTT a se opor ao cumprimento de decisões vinculantes, “caso violadas as diretrizes da Resolução ou regras procedimentais previstas no regulamento da câmara escolhida” (art. 26-H, §4º).

Trata-se de uma prerrogativa que deve ser interpretada de forma bilateral, isto é, não se trata de direito exclusivo da agência, mas também dos agentes regulados, até para que seja assegurado um equilíbrio mínimo na relação entre ANTT e concessionárias.

Ademais, o dispositivo não delimita com clareza as situações que podem ensejar a resistência ao cumprimento da decisão do Comitê, parecendo-nos excessivamente vaga a referência à violação de “diretrizes da Resolução” ou de “regras procedimentais”.

O universo de hipóteses abrangidas no texto do dispositivo pode envolver situações de vícios sanáveis e de menor relevância, que nem sequer gerem qualquer impacto sobre o mérito da deliberação do Comitê, servindo como mero pretexto para uma oposição injustificada ao cumprimento de uma decisão vinculante.

Sem dúvidas, veio em boa hora a regulamentação dos Dispute Boards pela ANTT. Mas, para além do texto normativo, será necessário um engajamento concreto da agência na utilização isonômica, adequada e efetiva desse instrumento, com a participação contributiva das concessionárias. A experiência prática certamente permitirá um amadurecimento na interpretação e aplicação das novas regras[3]. Algo a ser observado nos próximos anos.


[1] Adicionalmente, a Lei 14.133/2021 (Nova Lei de Licitações) estabelece os meios alternativos de resolução de controvérsias no art. 151 a art. 154, entre os quais o comitê de resolução de disputas.

[2] A ausência de um regramento e de um uso uniformizado dos Dispute Boards no âmbito da ANTT foi objeto de alerta pelo TCU- vide Acórdão TCU 4037/2020 (Processo 018.901/2020-4) e Acórdão TCU 4036/2020 (Processo 016.936/2020-5)

[3] Está previsto para o ano de 2030 o início da Avaliação do Resultado Regulatório do novo regramento, conforme disposto no Art. 27-A da Resolução 5.845/2019. 

*Diogo Uehbe Lima é sócio de Batista, Uchida, Uehbe Advogados e mestre em Direito Administrativo pela PUC-SP.
**Otávio Piza é advogado associado de Batista, Uchida, Uehbe Advogados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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