Opinião

Opinião – Entre tapas e beijos: Um amor possível?

Rose Santos*

Recentemente, me vi refletindo sobre a relação quase paradoxal entre o mercado de energia e suas peculiares vontades de regulação e regulamentação, quando conveniente, especialmente no que se refere à segurança e ao monitoramento de riscos. Essa reflexão foi inspirada pela famosa associação musical “Entre Tapas e Beijos”, que parece capturar bem o comportamento dos players do mercado: ora defendendo a regulação mínima e o tratamento bilateral das exposições, ora clamando por uma regulamentação mais rigorosa para evitar riscos sistêmicos e problemas de liquidez.

Não é novidade que, periodicamente, o mercado se vê surpreendido pelas grandes exposições de players que, meses antes, estavam em um “groove” perfeito, com posições contratuais ajustadas. Em determinados momentos, há uma defesa pela não interferência regulatória, confiando que as negociações da seara bilateral são suficientes para lidar com as exposições. No entanto, em outros momentos, surge uma necessidade urgente de regulamentação mais firme, que seja capaz de evitar que essas exposições, cuja relevância pode colocar em risco a estabilidade do mercado, gerem eventos de liquidez severos. O receio é que tais eventos possam acionar os temidos gatilhos de “loss sharing”, um mecanismo indesejado e sem responsabilidade definida, que transfere a responsabilidade para os bons players, que acabam arcando com custos e irresponsabilidades que não são seus.

Ao analisarmos os números do MCP (Mercado de Curto Prazo), observamos que, em 2023, o MCP contabilizou R$ 11,12 bilhões em transações, acrescidos de R$ 1,01 bilhão de GSF (Geração do Sistema de Produção de Energia). Em setembro de 2024, já se acumulava R$ 5,6 bilhões. Na BBCE, esse montante chegou a impressionantes R$ 72,2 bilhões no acumulado de 2024 – vale lembrar que esses números contemplam todos os produtos e horizontes negociados. Nesse contexto de grandes números e franca expansão, fica claro que, para não nos perdermos na “dança entre tapas e beijos”, é essencial que incluamos uma “nota estabilizadora” no arranjo musical; o sorriso culposo, quando não há intenção de quebrar (pós pisada no pé): a garantia.

Estamos vivendo um momento crucial para o setor elétrico brasileiro, com a abertura do mercado, o amadurecimento dos derivativos de energia e o surgimento de novos produtos que se integrarão ao nosso mercado em maior ou menor escala. É nesse cenário de expansão e sofisticação que as salvaguardas financeiras se mostram como a solução necessária para evitar que os “dançarinos” caiam ou cometam erros na dança, ou seja, para prevenir os sustos e as quebras inesperadas de players que, sazonalmente, expõem a vulnerabilidade de um mercado sem regulamentação estruturada ou sem investimentos necessários em seus profissionais e áreas de risco de mercado e crédito.

Esses episódios de volatilidade no PLD (Preço de Liquidação das Diferenças), as incertezas do modelo de operação do mercado, o descolamento entre os preços comerciais e os preços dos modelos tarifários, além dos efeitos das mudanças climáticas, evidenciam uma falha clara na regulamentação, que ainda não é capaz de mitigar os riscos. Aliás, vale destacar que esses fatores poderiam, por si só, justificar uma discussão aprofundada, já que são questões complexas e em constante transformação.

A referida Consulta Pública 10/2022 é, sem dúvida, um ambiente propício para o início de uma discussão frutífera. Não se trata simplesmente de adotar a proposta inicial como definitiva, mas de acelerar o debate, uma vez que se configura como uma ferramenta regulatória válida e aberta à contribuição. E, mais do que isso, no contexto legítimo e extremamente enriquecedor dessa discussão, será que não seria o caso de trazer novas propostas mais ousadas e criativas? Talvez uma compressão de margem? Ou, quem sabe, um tratamento específico para as exposições contratuais no mercado bilateral? E quanto à chiquíssima implementação de uma clearing? Quais seriam os desafios, considerando a volatilidade do PLD, a necessidade de precificação correta dos riscos e os custos intrinsecamente adjacentes que envolvem essa medida?

Concluindo a reflexão, não podemos seguir sujeitos aos sustos sazonais causados por eventos e exposições contratuais recentes na comercialização de energia, sem que haja a implementação de chamada de margem. Vale pensar e refletir sobre as medidas, os conceitos e metodologias de onde se faz a transposição do que é bilateral para o universo do risco sistêmico, risco de mercado e outros riscos afins.

Vou me despedindo e faço o convite para que possamos dançar muito em breve, “Entre Beijos e Amor”, de autoria multilateral entre o mercado e os órgãos setoriais.

* Rose Santos é diretora de Sustentabilidade e PD&I da Âmbar Energia e ex-conselheira da CCEE.

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