Marina Anselmo Schneider*
As primeiras experiências com o free flow no Brasil ocorreram no contexto de um sandbox regulatório da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres). A CCR Rodovias iniciou o projeto com a instalação de pórticos na BR-101, entre Itaguaí, Itatiaia e Paraty, seguida pelo projeto Caminhos da Serra Gaúcha, da CSG, que entrou em operação em dezembro de 2023. Já em 2024, a CCR implantou o pedágio dinâmico no trecho São Paulo-Guarulhos e, mais recentemente, a Rodovia dos Tamoios, operada pela Concessionária Tamoios.
O sistema de cobrança eletrônica de pedágios com fluxo livre (free flow) tem sido amplamente debatido no Brasil, em especial depois que o Decreto 10.833/2021 estabeleceu diretrizes para sua implantação em rodovias federais. Inspirado em práticas internacionais, o modelo elimina a necessidade de praças de pedágio físicas, proporcionando maior fluidez ao tráfego. Como toda inovação regulatória, entretanto, o free flow apresenta desafios que precisam ser entendidos e tratados para garantir sua eficácia e sustentabilidade financeira.
Embora recente no Brasil, a tecnologia do free flow é utilizada há mais de uma década em outros países. O Chile implementou o sistema em 2004 como parte de um plano de modernização da infraestrutura viária. O sucesso chileno foi impulsionado por um arcabouço regulatório sólido e investimentos em tecnologia avançada, que garantiram uma transição eficiente e segura para o novo modelo de cobrança.
O marco regulatório chileno, composto pela Lei de Concessões de Obras Públicas (Lei 20.410) e pelo Decreto Supremo 900/1996, estabeleceu desde o início mecanismos claros de fiscalização, cobrança e sanções para inadimplentes. Essas medidas evitaram um cenário de desconfiança ou desincentivo ao pagamento, garantindo a sustentabilidade do sistema e sua aceitação pela população.
O sistema chileno utiliza um avançado mecanismo de leitura de placas, integrado a uma base de dados compartilhada entre diferentes órgãos governamentais. Essa integração permite a emissão automática de boletos para pagamento, com índices baixos de inadimplência. Caso o usuário não pague o boleto dentro do prazo, a legislação prevê sanções, como a inclusão do débito no registro do veículo e restrições para a renovação da licença anual. A ampla adesão aos dispositivos eletrônicos de cobrança no país, como o TAG (dispositivo eletrônico instalado nos veículos que permite a leitura automática) facilitou a aceitação dos motoristas. A implementação gradual e a transparência nos processos contribuíram para o sucesso do free flow no Chile.
O exemplo da África do Sul, por sua vez, foi bem diferente. O governo sul africano implementou o sistema denominado e-tolling nas rodovias da província de Gauteng em 2013. O projeto carecia de uma base legal sólida e de infraestrutura tecnológica eficiente para suportar o free flow. Embora tenha sido implantado sob a Lei de Rodovias Nacionais Sul-Africanas (National Roads Act, Act 7 of 1998), faltaram previsões claras para lidar com a inadimplência e integrar o sistema a outras formas de cobrança de passivo que aumentassem os incentivos para pagamento dos valores cobrados.
O projeto não contou com uma base legal sólida nem dispunha de uma infraestrutura tecnológica eficiente para suportar o free flow. Embora tenha sido implantado sob a Lei de Rodovias Nacionais Sul-Africanas (National Roads Act, Act 7 of 1998), o sistema careceu de mecanismos claros para lidar com a inadimplência e integrar a cobrança a outros processos de recuperação de débitos, que poderiam aumentar os incentivos para o pagamento das tarifas.
O resultado foram índices elevados de inadimplência e um descontentamento crescente dos usuários. Diante de protestos e boicotes ao sistema, o governo sul-africano concedeu anistias sucessivas aos motoristas inadimplentes. Apesar de politicamente conveniente, essa decisão desestimulou o pagamento regular das tarifas e criou um ciclo de inadimplência crônica. Como consequência, a Sanral (Agência Sul-Africana de Rodovias) acumulou bilhões de rands em dívidas não pagas, tornando o projeto financeiramente insustentável.
Ao observar essas e outras experiências internacionais, o Brasil deve adotar uma postura prudente e proativa na implementação da cobrança eletrônica de pedágios. A recente Medida Provisória 1.147/2022, que complementa o Decreto 10.833/2021, representa um avanço na regulamentação do tema, mas ainda há lacunas a serem preenchidas.
É fundamental que o Brasil desenvolva um arcabouço regulatório robusto que, para além da simples cobrança eletrônica, inclua mecanismos eficientes de fiscalização e penalização de inadimplentes. Entre as alternativas sugeridas por associações e especialistas do setor de logística, destaca-se a criação de um cadastro nacional de devedores de pedágios, integrado ao Denatran (Departamento Nacional de Trânsito), como forma de mitigar os riscos de inadimplência.
Assim como no Chile, o Brasil precisa investir em uma infraestrutura tecnológica confiável, capaz de realizar leituras automáticas de placas e integrar dados em tempo real. Isso envolve não apenas a instalação de equipamentos nas rodovias, mas também a criação de um banco de dados nacional para garantir a rastreabilidade dos veículos.
A comunicação clara com os motoristas deve ser uma prioridade. Na África do Sul, a falta de compreensão da população sobre o sistema foi um dos principais fatores para o fracasso do free flow. Para evitar esse cenário, é fundamental que as concessionárias realizem campanhas educativas, explicando o funcionamento, os benefícios do novo modelo e as consequências do não pagamento.
A implementação do sistema deve ser gradual, com testes-piloto em regiões específicas antes de uma adoção em larga escala. Essa abordagem permitirá ajustes regulatórios e tecnológicos, reduzindo riscos e aumentando a aceitação pública.
O sistema de free flow tem o potencial de transformar a gestão de pedágios no Brasil, aumentando a fluidez do tráfego e reduzindo custos operacionais. Além disso, traz benefícios ambientais ao diminuir engarrafamentos, que geram emissões extras devido ao funcionamento dos motores em marcha lenta e à constante aceleração e desaceleração. A tecnologia também elimina a necessidade de praças de pedágio físicas, que demandam infraestrutura significativa.
Com regulamentação clara, infraestrutura adequada, mecanismos adequados de mitigação da inadimplência e investimento na educação dos motoristas, o free flow tem tudo para se tornar uma realidade sustentável e vantajosa para o Brasil.
*Marina Anselmo Schneider é advogada especializada em Infraestrutura e Operações Financeiras e sócia do Mattos Filho Advogados.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.