Opinião

Opinião – Mobilidade urbana para céticos: o que falta para o novo marco?

Caio Figueiroa* e Luiza Nunes**

O ano de 2025 promete para a mobilidade urbana.[1] Discussões requentadas sobre os limites da regulação do transporte individual de passageiros por moto e seus impactos sobre o transporte público, tendências de desverticalização de atividades concentradas sob a mesma base contratual, disputas entre tecnologias distintas para a descarbonização do setor, além da proposta de reordenação da mobilidade em 21 regiões metropolitanas do país, mediante a seleção e estruturação de projetos de investimentos conduzidas sob a batuta do BNDES (Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social).

Para que levem a resultados efetivos, porém, é indispensável a implementação de mudanças severas ao atual panorama regulatório do setor. Apesar de contar com lei própria[2], cheia de boas intenções, há um consenso nacional acerca do atual cenário: de um lado, o descontentamento social com o preço dos serviços, considerando a qualidade da oferta; por outro, a fragilidade de operadores frente ao passivo acumulado ao longo de anos, devido à insuficiência de receitas tarifárias e novas fontes de remuneração dos serviços, somada, por vezes, a imprevisíveis ações e omissões do poder público.

O diagnóstico é que os esforços da União para estabelecer diretrizes gerais lá em 2012 não convenceu os seus destinatários – aqui, falando principalmente de municípios, os que, quando licitam seus serviços, costumam fazê-lo de acordo com modelos antiquados e com pouca base técnica, resultando, ocasionalmente, em afrontas à própria lei.

A razão para isto – arriscamos dizer – parece ser o comodismo propiciado no berço da precariedade, que enseja o teatro protagonizado por poder público e operador: enquanto o primeiro finge fiscalizar e garantir o serviço sem aviltar o bolso dos usuários, ciente da insuficiência de recursos para que seja adequadamente prestado, o segundo finge oferecer um serviço plenamente satisfatório.

Não estamos aqui, portanto, para reproduzir mais um texto a velar as mazelas da mobilidade. Nossa pretensão é lançar um pouco de luz sobre as dificuldades vivenciadas por um setor que é ainda visto como outsider no mundo da infraestrutura e das concessões, em que pese também seja palco de precedentes arrojados – como a revogação de uma caducidade acompanhada de transferência assistida da concessão (Linha 6 do Metrô de São Paulo), a prorrogação antecipada de contrato mediante a inclusão de novos serviços (ADI 7.048/SP) e, mais recentemente, a transferência de concessão acompanhada da unificação de contratos distintos, sob responsabilidade de uma única concessionária (Linhas 1, 2 e 4 do MetrôRio).

Neste primeiro texto da sequência que pretendemos publicar – e assim lançar reflexões sobre como aprimorar o panorama regulatório da mobilidade – damos destaque especial à instabilidade e fragmentação regulatória atual dos serviços de transporte público coletivo, a fim de sugerir como as novas bases e diretrizes do que se tem chamado de “novo marco legal da mobilidade urbana” podem ser aperfeiçoadas, a partir de experiências bem-sucedidas de setores que já vivenciaram parte das mesmas dificuldades.

Primeiro, importante contextualizar que o novo marco teve origem em setembro de 2021, por iniciativa do ex-senador e atual ministro do TCU (Tribunal de Contas da União), Antônio Anastasia, sendo o correspondente PL (Projeto de Lei) arquivado ao final da sua legislatura. O texto foi posteriormente retomado em esforço conjunto do Legislativo e Executivo[3] e aprovado recentemente no Senado, em dezembro de 2024, aguardando atualmente a deliberação da Câmara dos Deputados.

Em linhas gerais, o PL alteraria a PNMU (Política Nacional de Mobilidade Urbana) para resolução da “queda constante de produtividade e qualidade do transporte público”, declarando-se, em suas justificativas, que uma de suas causas de tal queda seria “o descumprimento rotineiro de cláusulas contratuais, principalmente as referentes ao equilíbrio econômico-financeiro da concessão”.

A leitura da proposição nos parece confundir, em alguma medida, a relação de causa e consequência da constatação. Mas ainda que tomada como verdadeira, ao avaliar as propostas para contornar essa situação, o PL soa mais como um convite a um déjà vu.

A elaboração de um plano de mobilidade alinhado ao planejamento urbano, a instituição de novas fontes de custeio e a cobertura do déficit tarifário resultante da diferença entre a tarifa pública e tarifa de remuneração mediante o pagamento de subvenções são apenas algumas das diretrizes da legislação vigente ainda não atendidas em parte considerável dos sistemas existentes. A PNMU, evidentemente, não conseguiu atingir o seu propósito; mas não por insuficiência da previsão legal de instrumentos que, hoje, a proposta de um novo marco reitera.

O que faltou, então? Como um dos autores já teve a oportunidade de apontar em outro texto,[4] há uma lacuna considerável em termos de enforcement dos instrumentos previstos em lei.

Especificamente para lidar com as dificuldades inerentes ao ambiente desordenado da regulação – isto é, para sanar a instabilidade e fragmentação da regulação praticada pelos entes subnacionais –, o PL, de fato, inovou ao atribuir como competência da União a edição de normas de referência, destinadas a orientar os entes subnacionais na instituição e aplicação de parâmetros mínimos de qualidade e produtividade dos serviços (art. 10-B, § 1º e art. 16, X).

Tal proposta teve por inspiração o novo marco legal do saneamento básico, setor que também lidava com a insegurança jurídica proveniente da regulação local. No caso do saneamento, a Lei 14.026/2020 concentrou à União, sob competência da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), a edição de diretrizes regulatórias de abrangência nacional sob diversos temas previamente definidos, cuja adesão pelos reguladores ou titulares dos serviços locais condicionaria o acesso a recursos públicos federais ou a contratação de financiamentos com recursos da União.

Fica evidente a existência de incentivos, lógica que não foi replicada no PL 3.278/2021.

Ao não estabelecer qualquer tipo de consequência, premial ou sancionatória, para a adesão às normas de referência, a iniciativa de instituí-las para a mobilidade perde sua eficácia antes mesmo de vir ao mundo. Basta refletir sobre determinações legais mais simples, como a aplicação de reajustes tarifários, cuja inadimplência do Poder Público não implica qualquer tipo de constrangimento, ainda que implique a constituição de novos passivos ao erário.

Para robustecer a proposta e transplantar de maneira apropriada o instrumento do setor de saneamento, é preciso avançar.

Primeiramente, entendemos primordial a definição das implicações ao ente que delibere não aderir às normas de referência, seja impondo restrição ao acesso de recursos federais destinados a programas de financiamento (PAC Refrota, Fundo Clima), ou a programas de auxílio direto da União (PNAMI), seja impedindo o uso de mecanismos acessórios para viabilizar contratos de longo prazo.[5] A restrição cogitada apenas instrumentaliza o spending power da União –  nada de novo até aqui.

Para potencializar os resultados desta medida, então, caberia revisar o dispositivo que limitou a prestação de assistência financeira pela União aos entes subnacionais a situações excepcionais, de emergência e estado de calamidade (cf. inclusão do inciso XII ao art. 24, c.c. inciso XI do art. 6º). Ao tratar deste auxílio – ainda que futuro e incerto – sem condicionantes, o PL impede, por exemplo, que a União crie incentivos de adesão às normas de referência por meio de eventuais modalidades adicionais de assistência financeira aos municípios aderentes.[6]

Além disso, faltou a iniciativa de definir o “quem” e “o que”. Por se tratar de designação de competência, a entidade responsável pela edição das normas de referência para o setor de mobilidade deve ser desde logo identificada, seja essa o Ministério das Cidades, ou mesmo a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres).

Não ignoramos o desafio que seria alocar a qualquer um destes entes a atribuição de editar tais normas, embora o caso da ANA sirva de parâmetro importantíssimo, já que essa agência também não contava com a expertise necessária para desempenhar o mesmo papel no setor de saneamento básico, mas foi qualificada para tanto.

Para que não se trate, portanto, de mais uma previsão legal vazia, é necessário que o agente nacional regulador do setor de mobilidade urbana seja, desde logo, indicado – passando-se, inclusive, à sua qualificação à execução das novas funções referenciadas, se o caso.

A proposta de instituição de normas de referência para o setor deve, ainda, ser revista no que se refere à abrangência de seu conteúdo, restringida pelo PL à qualidade e à produtividade dos serviços.

Tal restrição renega toda a espinha dorsal do transporte público, estabelecida, entre outros fatores, pela regulação tarifária e por seus impactos sobre a estrutura de remuneração dos operadores, a alocação de riscos entre contratantes, os parâmetros para o reajuste e revisão tarifária e a fixação de novas gratuidades.

A indefinição da abrangência das normas, aliás, representa um prato cheio para que se suscite a inconstitucionalidade do mecanismo, por dar margem a interpretações no sentido de que o dispositivo legal, tal como previsto, põem em risco a autonomia dos titulares dos serviços, discussão esta que também se materializou no setor de saneamento.

Nossa leitura, em síntese, é que a disciplina atual sobre as normas de referência merece aprofundamento, a fim de conferir eficácia ao instrumento, considerando o potencial de impulsionar a uniformização regulatória do setor. Uma legislação que apenas se preocupa em externar boas práticas, mas não o faz de maneira efetiva, não surtirá os efeitos desejados para mudar a realidade, e a PNMU é prova concreta disto.

Assim, a criação de um novo marco para o setor é, sim, imprescindível à materialização de bons projetos, mas não deixemos que o entusiasmo irrefletido por sua aprovação nos agregue funcionalidades fictícias, que nos levarão aos mesmos problemas de sempre já na sequência de sua publicação. A obtenção de efeitos positivos a partir do PL é possível, porém, para isso, é preciso revê-lo com lentes práticas, conforme a experiência dos próprios setores que o inspiraram.


[1] Agradecemos a Felipe Sande, Yahn Rainer e Mariana Sanches pelas instigantes discussões a partir de versões anteriores deste texto.

[2] Lei Federal nº 12.587, de 3 de janeiro de 2012, que institui as diretrizes da PNMU (Política Nacional de Mobilidade Urbana).

[3] Em abril de 2023, o Projeto de Lei 3.278/2021 foi retomado por iniciativa do senador Veneziano Vital do Rêgo. Simultaneamente a essa discussão no Legislativo, a Secretaria Nacional de Mobilidade Urbana (Semob), vinculada ao Ministério das Cidades, submeteu uma proposta para reforma setorial ao Fórum Consultivo da Mobilidade Urbana, criado pelo Decreto nº 10.803, de 17 de setembro de 2021, e que foi objeto de consulta pública entre 2022 e 2023, contando com cerca de 840 contribuições. No início de 2024, e após a consolidação do texto, a Semob apresentou a proposta ao Senado, que optou por incorporar a iniciativa escrutinada como substitutivo ao PL 3.278/21.

[4] Cf. SANCHES, Mariana; FIGUEIROA, Caio Cesar. Uniformização regulatória para a mobilidade urbana: uma proposta para contornar as mazelas do financiamento convencional do transporte público. No prelo, 2025.

[5] Aqui, chamamos atenção para a Lei Complementar 212, de 14 de janeiro de 2025, que além de estabelecer um programa de negociação de dívidas dos estados, permitiu a constituição do Fundo de Equalização Federativa, sendo parte de suas receitas passíveis de cerem cedidas como garantia pública em contratos de PPPs.

[6] Mais do que isso, caberia revisitar o dispositivo a fim de que a União possa apoiar situações corriqueiras, porém insuperáveis isoladamente, como nos sistemas municipais dependentes de subvenções.

* Caio Figueiroa é sócio do Cordeiro, Lima e Advogados. Mestrando em Direito Público e especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP. MBA em PPPs e Concessões pela Fespsp. Vice-Presidente e Diretor de Comunicação da Abradade. É pesquisador da Fipe (Fundação Instituto de Pesquisas Econômicas).

** Luiza Nunes é coordenadora da equipe de Direito Público Consultivo do Cordeiro, Lima e Advogados. Mestranda em Direito Público e especialista em Direito Administrativo pela FGV Direito SP. Graduada em Direito pela PUC-SP.

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