Opinião

Opinião – Poder de Polícia no contexto de um contracting state e o papel das concessões de serviço público

*Marcos Nóbrega e Rafael Henrique Fortunato

Os contratos de concessão, nas últimas décadas, alcançaram o centro do debate jurídico ao atuar como importante mecanismo de implementação de políticas públicas. O universo da contratação pública, de forma geral, assumiu uma relevância inquestionável na moderna administração pública, de modo que hoje é possível, de acordo com Jody Freeman e Martha Minow, aludir ao estado do nosso tempo como um contracting state, já que a administração adotou a cultura do contrato como forma de realização de seus fins institucionais.

De acordo com Pedro Costa Gonçalves, a contratação pública reconfigurou o papel do Estado no estabelecimento de pontes de cooperação com as entidades privadas, podendo-se dizer, num patamar de segurança jurídica inédito, que o contrato administrativo é de fato uma “instituição do nosso tempo”. É por meio da contratação pública que o estado prestador ganha força para cumprir seus objetivos constitucionais.

Neste cenário, o particular assume o papel de partilha com o estado da tarefa de prosseguir o interesse público e os respectivos fins institucionais. Dessa forma, reconhece-se aos agentes privados uma função crucial na execução de tarefas de interesse público, ele passa a desempenhar tarefas nucleares do estado, tornando manifesto que a governação não constitui uma missão exclusiva do poder público.

Essas constatações nos levam a refletir sobre a reconfiguração dogmática do poder de polícia na atualidade.

Em essência, o poder de polícia é a atividade da administração pública que impõe limites a direitos e liberdades.

O conceito de poder de polícia tem origem nas sociedades patriarcais da antiguidade grega e romana, circunscrevendo-se a esfera privada da família, sofreu uma profunda transformação com o advento do absolutismo monárquico, onde passou a designar a integralidade da ação estatal. Essa noção foi revisitada com a Revolução Francesa e o Iluminismo que filosoficamente defendia a separação de poderes e o império das leis, como forma de limitar o poder absoluto do monarca e restringir o seu poder de polícia.

No Estado pós-moderno, como definido por Chevallier, o poder de polícia sofre profundas transformações, sobretudo porque há uma crise de legitimidade da soberania estatal e da própria ideia de governabilidade. Se o estado moderno podia ser graficamente representado por uma pirâmide, o estado pós-moderno é visto como uma rede de relações, onde diversas entidades com capacidade de ação autônoma guardam uma relação muito mais horizontal do que a verticalidade ínsita a noção de subordinação.

Adilson Abreu Dallari, em 1997, já afirmava que “a administração pública cada vez mais se aproxima dos particulares, para deixar a cargo destes certas atividades que tradicionalmente eram ou seriam suas, tornando cada vez mais indistinto o limite entre o público e o privado”.

Nesse contexto, a crescente delegação de atividades públicas ao particular tornava cada vez mais manifesto que os agentes privados poderiam desempenhar atividades eminentemente públicas e, neste ponto, o art. 175 da Constituição Federal traz a segurança jurídica necessária.

 No entanto, a ausência de um dispositivo constitucional semelhante, que permitisse a delegação do poder de polícia, inviabilizou até o momento, por parte dos nossos tribunais superiores, a revisão do dogma da sua indelegabilidade.

A doutrina majoritária também é contrária a possibilidade de delegação do poder de polícia. Há uma defesa da tese segundo a qual a imposição de restrições e condicionamentos à liberdade e à propriedade dos particulares é atividade própria e inerente à soberania, ao princípio democrático e atentaria quanto ao princípio da isonomia. Há ainda autores que defendem que este munus público só poderia ser exercido por servidores públicos estáveis. A posição majoritária, portanto, é a de que não se pode permitir a delegação das atividades de ordenação, ou seja do exercício de atos de autoridade pública. 

Ocorre que, na nossa opinião, a ausência de um dispositivo constitucional que autorize expressamente o exercício do poder de polícia por agentes privados não pode ser interpretado como vedação à delegação do poder de polícia.

O intérprete constitucional não pode se furtar de analisar o contexto atual no qual está inserido a prestação de serviços públicos no Brasil, em grande parte executado por meio de contratos de parcerias.

Com efeito, a nova realidade constitucional, menos verticalizada e consensual, já impõe por si só uma leitura menos rígida do dogma da indelegabilidade do poder de polícia, sobretudo considerando o princípio da eficiência e de uma administração pública gerencial.

No caso dos serviços públicos exercidos sob regime de concessão, a possibilidade dessa delegação é ainda mais justificável, não apenas a partir de uma abor­dagem pragmática, já que muitas vezes não será viável por parte do Estado a adoção de medidas de polícia em tempo hábil ou mesmo porque ela demandará custos tão significativos que não se concretizará, mas também sob a ótica constitucional, uma vez que a atuação do privado pode favorecer a criação de novas soluções mais aderentes ao serviço público que já executa e, portanto, prestigiar-se-á o princípio da eficiência, previsto no art. 37 da Constituição Federal.

Com efeito, é importante deixar claro que, da mesma forma como a delegação do serviço público não exime o estado da responsabilidade pela sua prestação, a delegação do poder de polícia não significa a exclusão do Estado do seu exercício. Em ambas as hipóteses, caberá ao poder público regular tanto a delegação do serviço público quanto a delegação do poder de polícia.  

No caso dos serviços públicos exercidos sob o regime de concessão, a delegação do poder de polícia não será, como regra, o único objeto da delegação da função pública ao particular, mas acessória ou incidental. Nesse ponto, cabe trazer as lições do Prof. Pedro Costa Gonçalves que defende que as concessionárias de serviço público podem, dentro do exercício regular das atividades que lhe foram cometidas, e desde que previsto na lei e no contrato de concessão, exercer: (i) poderes públicos regulamentares em caráter infralegal, por meio dos quais os delegatários elaboram regulamentos próprios de instrução aos usuários quanto à prestação de serviços públicos; (ii) poderes impositivos e de execução coercitiva, por meio dos quais eles exercem funções específicas de comando sobre terceiros no que concerne à prestação do serviço público delegado; e (iii) poderes públicos administrativos gerais, que garantem às concessionárias e permissionárias, em alguns casos, o poder de celebrar contratos administrativos na condição de Poder Público, instituindo-se cláusulas exorbitantes.

No mesmo sentido, Flávio Amaral e Rafael Véras defendem que a concessão do Porto Organizado representa hipótese de “concessão de serviço público cumulada com o exercício de uma função de polícia administrativa, por meio da qual o concessionário, de acordo com a autorização prévia legislativa, estabelece limitações e condicionamentos à liberdade individual em prol de um interesse coletivo”.

O PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) do Governo Federal vem trabalhando na estruturação de projetos de concessão de parques e florestas nacionais. Nesses equipamentos públicos, a proteção ambiental é a máxima perseguida pelos órgãos de governo, o que impõe ao particular um grande esforço de fiscalização e monitoramento, sem que, para tanto, lhe seja possível exercer o poder de polícia em todas as suas dimensões.

Nesse sentido, especialmente em grandes áreas ambientalmente protegidas, onde há riscos de invasão, desmatamento ou incêndios, ao particular apenas cabe comunicar aos poderes públicos as ilegalidades que constatar, sem que, para tanto, o uso coercitivo do poder de polícia lhe seja possível. É sobre esse cenário que o operador do direito deve se debruçar e questionar se não devemos, como sociedade, avançar com uma nova interpretação constitucional que possa efetivamente garantir a proteção de bens e serviços delegados aos parceiros privados.     

Por fim, cabe ficar atento ao projeto de lei que cria o Estatuto da Segurança Privada, aprovado pelo Senado Federal (SCD 6/2016, texto original PLS 135/2010), que define quais são os serviços de segurança privada, entre eles está incluído a segurança em unidades de conservação. Um passo importante na proteção de áreas ambientalmente sensíveis. 

No mais, importante ter em conta que o disposto no art. 4º, III, da Lei nº 11.079/2004, que veda a delegação do exercício do poder de polícia nos contratos de PPP (Parceria Público-Privada) não impede sua delegação nos contratos de concessão da Lei nº 8.987/1995. A opção do legislador para os contratos de PPP, a nosso ver, é equivocada e anacrônica, na medida em que não observa as especificidades dos mais diversos serviços públicos passíveis de execução na forma prevista pela Lei nº 11.079/2004.

**Marcos Nóbrega é conselheiro substituto do TCE-PE (Tribunal de Contas de Pernambuco). Professor da UFPE (Universidade Federal de Pernambuco). Pós-doutor pela Harvard Law School e pela Kennedy School of Government da Harvard University. Pós-doutor pela Universidade de Direito de Lisboa.
** Rafael Henrique Fortunato é procurador Federal e assessor no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos) do Governo Federal. Mestre em Direito Administrativo pela Faculdade do Porto.
As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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