Roberto Rockmann*, colunista da Agência iNFRA
O Brasil deve conviver com uma considerável sobreoferta física de energia elétrica entre 2022 e 2030, e que pode superar 20% em média em alguns anos nesse período, segundo análise da PSR. O excesso é medido em percentual de garantia física em relação à demanda para os próximos dez anos seguindo três linhas: 1) a oferta atual e em construção; 2) na segunda, acresce-se a contratação dos 8 GW de térmicas da Eletrobras; 3) a entrada em operação da usina nuclear de Angra 3.
No cenário atual, o primeiro, sem a incorporação dos 8 GW de térmicas da Eletrobras e com a contratação já programada de geração distribuída e do mercado livre, a sobreoferta física fica acima de 20% até 2025 e aí começa a recuar lentamente até chegar a 12% em 2030. No segundo, considerado o jabuti das térmicas da Eletrobras, a sobreoferta se mantém acima de 20% de 2022 a 2030, atingindo 20% em 2030. Já com a inclusão da usina nuclear Angra 3, a sobreoferta física também se mantém acima de 20% na década e atinge 22% em 2030.
“Esse é o custo do Congresso, muita oferta foi decidida para entrar em operação independente da necessidade do sistema”, destacou Luiz Barroso, presidente da PSR, que divulgou o estudo no fim do Enase (Encontro Nacional de Agentes do Setor Elétrico). “Isso não é contratual, algumas distribuidoras podem ter necessidades locais de contratação.”
Mercado regulado sem demanda
O dado indica que os leilões do mercado regulado deverão ser cada vez menores, com os consumidores migrando para o mercado livre e geração distribuída solar. A sobreoferta física também pode pressionar para baixo o PLD (Preço de Liquidação de Diferenças) e ter impacto sobre decisão futura de investimentos e contratos. Também haverá impacto sobre o GSF (risco hidrológico). “Porque o grosso dessa oferta em excesso é com Custo Variável de Produção nulo”, ressaltou.
Sobreoferta não significa tranquilidade no abastecimento
Cabe ressaltar que essa sobreoferta física não representa segurança total no abastecimento na década. Não é promessa de tranquilidade, ao contrário. Ano passado, o país ingressou em 2021 com uma sobreoferta de 20% e conviveu com problemas, com temores de corte nos horários de pico durante o fim do período seco. Com uma matriz com cerca de 60% dependente das hidrelétricas, a variável chuva é importante, assim como a gestão dos reservatórios e ter soluções de oferta de potência e armazenamento. A complexidade do sistema exigirá soluções energéticas, um planejamento realista e uma governança fortalecida e ágil.
“Hoje a confiança nas hidrelétricas se reduziu, devido a secas severas, restrições operativas que aparecem de repente. Isso mostra que é muito importante a gente ser o mais realista possível na representação das hidrelétricas e fatorar isso no planejamento. Embora tenhamos avançado na época da crise hídrica, ainda acho que tem muita coisa que o ONS ainda não está alinhado com a EPE [Empresa de Pesquisa Energética] e, se esse alinhamento ocorrer, isso pode mostrar que contamos menos com as hidrelétricas que o representado no planejamento.”
“Aí a expansão muda, com espaço para as térmicas a gás. Por outro lado, acho que a gente deveria passar a representar na expansão a variabilidade dos custos das térmicas a gás, aproveitando o gancho da crise atual”, analisa Barroso. Será também importante incorporar o impacto das mudanças climáticas no planejamento, será também uma variável muito importante. Sem levá-lo em conta, o custo da expansão pode ficar 30% mais alto, segundo estimativa da PSR.
Gestão de recursos hídricos se torna essencial
A gestão da água nos reservatórios das hidrelétricas e a gestão dos recursos hídricos, que envolve agências, ministérios, municípios e estados, vai se tornar ainda mais vital. O Brasil deveria aproveitar o momento de tranquilidade que a situação hídrica trouxe para discutir mecanismos que atribuam mais agilidade ao setor elétrico, disse o diretor-geral do ONS (Operador Nacional do Sistema Elétrico), Luiz Ciocchi. Entre os temas que podem ser debatidos estão os serviços ancilares, micro e minigeração distribuída, usos múltiplos das águas. “Temos que buscar agilidade para pensar nos problemas que vierem no futuro, esse é um desafio.”
“Se não tiver água, teremos problemas de novo, essa sobreoferta é teórica, temos de ter muita atenção com a agenda de curto prazo, mas não podemos perder de vista soluções para problemas no médio e longo prazo”, disse o presidente da CPFL Energia, Gustavo Estrella.
Segundo dados da ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico), a demanda por água no Brasil é crescente, com aumento estimado de aproximadamente 80% no total retirado nas últimas duas décadas. A previsão é de que ocorra um aumento de 24% na demanda até 2030. A perda relativa das hidrelétricas não reduz sua importância e impõe uma reflexão urgente sobre o sistema de precificação da água acumulada nos reservatórios das hidrelétricas, item importante para a modernização do parque de geração construído há décadas.
A gestão múltipla das águas é um ponto de alerta, principalmente no Sudeste, aponta a EPE no Plano Decenal 2031, que destaca que a modernização de hidrelétricas existentes na região já enfrenta desafios de operação em cenários de falta de chuvas. O uso múltiplo das águas cria desafios para a operação e o planejamento, enquanto as hidrelétricas deverão ter papel relevante para modular a carga e oferecer energia nos horários de ponta.
Leilões de neutralidade tecnológica
O país precisa começar a mirar em soluções energéticas. Precificação da água nos reservatórios das hidrelétricas, leilões de neutralidade tecnológica e planejamento que preveja entrada de fontes mais competitivas são pontos essenciais. “O leilão de reserva de capacidade ano passado não teve neutralidade tecnológica, na Europa já houve contratação de 1600 MW de armazenamento”, disse o presidente da Enel, Nicola Cotugno. “As fontes renováveis são as mais competitivas. Para esse avanço continuar, as hidrelétricas e a nova tecnologia de hidrelétricas reversíveis terão de ter um papel muito importante no sistema ao lado da transmissão”, observa José Renato Domingos, vice-presidente da CTG.
A sobreoferta é o pano de fundo que expõe as fragilidades do modelo sancionado em 2004 que previa a contratação de distribuidoras no mercado regulado. Incluída no PL (Projeto de Lei) 414, a separação fio e energia se torna essencial para que não se fragilizem ainda mais as finanças das distribuidoras, que sentem cada vez mais a migração de clientes para o mercado livre e para a geração distribuída solar. Em paralelo, a tarifa do mercado regulado se torna cada vez mais pesada com encargos e tributos.
“Cerca de 70% dos reajustes estão ligados ao ativo regulatório, conta que já foi paga, mas está vindo agora. É preciso criar modos de evitar esse rally das tarifas. Se isso for num crescendo, os consumidores poderão não pagar em algum momento”, disse o presidente da CPFL. Uma maneira é planejar a matriz da forma mais competitiva possível e incorporar soluções que tragam ganhos.
PL 414 exigirá longa discussão infralegal
O PL 414 ainda traz a criação de um encargo para lidar com os contratos legados das distribuidoras, que pelo modelo de 2004 tiveram de contratar energia compulsoriamente a longo prazo. A aprovação do PL seria o primeiro passo para isso. Haverá a necessidade de detalhamento. As distribuidoras esperam que, depois de definida sua criação, ele seja debatido em consulta pública. “O projeto de lei prevê abertura em 42 meses, mas haverá uma grande discussão infralegal sobre vários pontos dessa abertura e isso levará meses. Ou seja, os 42 meses estão muito perto”, destacou Estrella.
Estudo ainda em andamento da PSR feito para o Banco Mundial mostra que o Brasil poderia expandir sua base de forma mais competitiva apenas com o avanço das renováveis, reduzindo ainda mais a pegada de carbono do setor elétrico e trazendo mais competitividade no preço, caso fosse essa a decisão tomada. Mas o avanço de fontes variáveis (Barroso não gosta do termo intermitente) exigiria que as hidrelétricas desempenhassem uma outra função.
“Essa maior presença exigirá que as hidrelétricas sejam remuneradas pelo serviço ancilar que elas prestam, porque atuam como baterias”, destaca. Hoje parte do custo da expansão via renováveis é feita com a cobrança de ESS (Encargos Serviços do Sistema), parando no colo do consumidor. “Se a decisão for feita só com renováveis, parte desse custo teria de ir para as renováveis”, aponta.
*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.
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