Mauricio Portugal Ribeiro*
O presente artigo[1] pretende tratar das preocupações mais comuns quando se fala na institucionalização de renegociações de contratos na administração pública: (i) a isonomia de tratamento entre contratados; (ii) o, assim chamado, “moral hazard”; (iii) a corrupção; e, (iv) o problema da exigência de transferência de controle como condição para eficácia do resultado da renegociação.
Nesse sentido, ele é a continuidade de 4 artigos anteriores, de minha autoria, sobre renegociação de contratos:
O primeiro, publicado em 31 de julho de 2023, estabelece uma agenda de pesquisa sobre o tema da flexibilidade e renegociação de contratos administrativos, em face de uma publicação sobre o tema que confundia uma série de conceitos básicos;
O segundo, publicado em 27 de outubro de 2023, comenta a resposta do TCU (Tribunal de Contas da União) à consulta realizada pelo Ministério dos Transportes e pelo Ministério de Portos e Aeroportos, sobre as regras a serem aplicadas aos contratos saídos do regime de relicitação;
O terceiro, publicado em 03 de novembro de 2023, tratou dos meios jurídicos e econômico-financeiros para renegociação e reestruturação dos contratos a saírem do regime de relicitação.
O quarto, publicado em 28 de novembro de 2023, trata das objeções levantadas pela doutrina tradicional do direito administrativo à renegociação de contratos administrativos, tais como o princípio da indisponibilidade do interesse público e a impossibilidade de alteração do objeto dos contratos administrativos, em cumprimento da exigência de prévia licitação.
Renegociação e isonomia entre contratados da administração
A primeira preocupação diz respeito à exigência, constante do nosso direito, de tratamento igualitário dos contratados da administração.
Para responder a essa preocupação, a oportunidade de renegociação oferecida aos concessionários cujos contratos estejam em crise, deve ser passível de extensão a todos cujos contratos estiverem em situação semelhante pelos motivos pelos quais o poder concedente ou agência reguladora entendeu ser cabível renegociar.
Portanto, na prática, a preocupação com a isonomia de tratamento entre concessionários converte a decisão de renegociar em uma decisão de criação de um programa de renegociação de contratos, ou, como eu prefiro chamar, de um Programa de Tratamento de Contratos em Crise.[2]
Para criação do Programa de Tratamento dos Contratos em Crise, é preciso responder às seguintes perguntas:
(a) O que caracteriza um contrato em crise para surgir o direito à renegociação?
(b) Quais os efeitos a serem produzidos pela incidência do direito à renegociação?
E isso levanta uma série de outras perguntas, como, por exemplo, quais os limites de alteração do contrato? O que pode ser perdoado ou modificado dos passivos e ativos regulatórios do concessionário? Quais obrigações podem ter seu cumprimento parcelado? Qual o parâmetro para decidir qual a extensão máxima de prazo do contrato? É viável desconsiderar a distribuição de riscos originária do contrato (as regras de reequilíbrio usadas no governo federal já desconsideram em muitos casos a distribuição de riscos, de maneira que eventual desconsideração nesse caso não nos colocaria em um novo terreno)?
Tratarei desse tema a seguir.
O que caracteriza um contrato em crise, que faça surgir o direito à renegociação?
Há vários critérios que podem ser adotados pelas normas legais, regulamentares ou pelas próprias agências reguladoras para traçar a linha entre os contratados cujos contratos estão em crise (e que, portanto, terão direito à renegociação) e os contratados que não terão direito a isso.
A forma talvez mais fácil de traçar essa linha seria dimensionar o montante das obrigações previstas no contrato que geram necessidade de investimento, com o montante de investimentos inadimplidos.
Mas nenhum indicador que se refira (i) ao mau cumprimento do contrato (números ou índices que mostrem o quanto ele está sendo descumprido), ou (ii) à condição financeira ruim da concessionária será capaz de separar os casos em que a má condição decorrer de incapacidade, inépcia, imperícia ou ineficiência do concessionário, dos casos em que isso decorrer de eventos fora do controle do concessionário.
Por isso, será sempre necessário haver um juízo do poder concedente ou da agência reguladora sobre se foram circunstâncias alheias ao controle do concessionário e dos seus acionistas que levaram ao descumprimento do contrato e a má condição financeira da concessionária.
E isso significa que, em qualquer hipótese, é preciso que a agência reguladora e o poder concedente possam escolher em quais casos eles entendam ser viável a renegociação do contrato. Essa escolha é manifestada exatamente por meio da criação de programa específico para tratamento dos contratos em crise.
Cada programa deve ser temporário e criado em vista das circunstâncias que levaram os contratos à situação de crise.
A especificação das ocorrências que, tendo impactado o conjunto de contratos, fizeram surgir o direito à renegociação deve ser realizada na criação de cada Programa de Tratamento dos Contratos em Crise.
No caso dos contratos licitados entre 2012 e 2014, há, como já mencionei nos artigos anteriores sobre o tema da renegociação, três eventos externos, que foram determinantes para os descumprimentos dos contratos:
(a) a assimetria entre uma modelagem feita em um momento de crescimento acelerado do país e que considerou que esse crescimento teria continuidade e a ocorrência da maior crise econômica da história do país logo no início da execução desses contratos;
(b) o poder concedente e as agências reguladoras terem tratado todas as dificuldades de execução desses contratos (inclusive aquelas que eram consequência de eventos graves de desequilíbrio) como se fosse decorrência da corrupção dos seus grupos controladores, apesar de não haver até aqui nenhuma evidência de que tenha havido corrupção envolvendo esses contratos;
(c) terem as condições de financiamento subsidiadas, nas quais os concessionários basearam as suas propostas, sido alteradas e depois suprimidas, sem que os projetos fossem reequilibrados para funcionarem com condições de financiamento de mercado.
Quais os efeitos que deveria ter a aquisição do direito à renegociação?
O Programa de Tratamento dos Contratos em Crise deve explicitar os limites da renegociação a ser realizada. Evidentemente, esses limites devem ser calibrados para resolver os problemas dos contratos afetados pelos eventos que levaram à crise.
Entre outros temas, se possível, o ato de criação do Programa de Tratamento dos Contratos em Crise deveria especificar:
(a) Quais eventos serão tratados como eventos imprevisíveis (e de impactos extraordinários), ou cujas consequências não se possa calcular, e, cujo risco, portanto, será tratado como do poder concedente. Certamente, eventos dessa natureza são a razão da própria instituição do programa, e, portanto, faz sentido já deixar claro que serão tratados como riscos do poder concedente. É importante notar que em vários casos não será necessária qualquer alteração dos contratos ou da legislação para isso. Em muitos casos, é possível, contudo, que seja necessária uma mudança de interpretação de regras contratuais.
(b) Como decorrência do item acima, a anulação de multas que foram aplicadas indevidamente sobre o contratado em vista de o poder concedente ou agência reguladora ter entendido até então que a responsabilidade pelos descumprimentos era do contratado;
(c) A metodologia econômico-financeira a ser utilizada para tratamento da renegociação, e quais os limites das alterações a serem realizadas no fluxo de caixa para efeitos regulatórios e no prazo do contrato;
(d) Como serão tratados os passivos e ativos regulatórios do concessionário;
(e) Se serão cabíveis alterações na distribuição de riscos contratual e quais as consequências econômico-financeiras dessas alterações[3]. Dessa perspectiva, para o passado, é importante saber em relação a quais itens de receita e custo vai se considerar as estimativas originárias e a quais itens vai se mudar essas estimativas para considerar os dados efetivos. Apesar de isso não ser em regra percebido, essas alterações de estimativas para a realidade configuram em regra alterações de distribuições de riscos para o passado. Seria importante ter clareza sobre isso já na instituição do programa. Também é relevante entender quais alterações de distribuição de riscos podem ser feitas para o futuro;
(f) Quais alterações serão realizadas nos contratos para modernizá-los e atualizá-los em face da política vigente de outorgas;
No nosso sistema jurídico atualmente, o ato mais semelhante a um Programa de Tratamento dos Contratos em Crise é a Portaria 848/2023 do Ministério dos Transportes, que teria, em tese, a função de estabelecer em relação às rodovias os limites da renegociação. Mas essa portaria tem várias insuficiências se formos analisá-la como uma portaria para criar um Programa de Tratamento de Contratos em Crise.
Isso porque, em primeiro lugar, ela teve que cumprir os termos da Resposta do TCU (Acórdão 1593/2023) à consulta realizada pelo Ministério dos Transportes, que comentei em artigo que publiquei anteriormente. E, como já notei no mencionado artigo, se a Resposta do TCU for seguida à risca, nenhum contrato saído do regime de relicitação será renegociado, pois os termos que a Resposta do TCU estabelece inviabilizam, da perspectiva econômico-financeira, a continuidade desses contratos.
Em segundo lugar, não me parece que estava claro quando da elaboração da referida portaria quais seriam exatamente a metodologia e os limites aplicáveis às renegociações.
O estabelecimento das condições a constarem do Programa de Tratamento dos Contratos em Crise não é algo trivial. É preciso fazer simulações considerando os dados dos contratos que serão renegociados para verificar se as condições estabelecidas no programa serão suficientes para viabilizar a continuidade dos contratos.
A preocupação com o “moral hazard”
A segunda preocupação na criação de um programa de renegociação de contratos administrativos seria com o moral hazard, muitas vezes mal traduzido entre nós para “risco moral” ou “perigo moral”. Essa preocupação pode ser definida como o temor de que a possibilidade de obtenção da renegociação se torne mais atrativa do que o cumprimento do contrato.
Em minha opinião, a preocupação com o moral hazard é relevante se a qualquer tempo os concessionários puderem exigir a renegociação dos seus contratos. Se esse fosse o caso, seria necessário regular as condições de acesso ao direito à renegociação de forma a criar obstáculos que tornassem a opção de cumprimento do contrato mais atrativa do que o descumprimento que viabilizasse a renegociação.
O problema do moral hazard é, contudo, minorado se, conforme defendi acima, os programas de renegociação forem temporários, instituídos por decisão do poder concedente e da agência reguladora, em vista de circunstâncias fora de controle dos concessionários que tenham impactado os seus contratos. Isso porque os concessionários nunca terão certeza de que o poder concedente ou agência reguladora abrirá um programa que permita a renegociação dos contratos.
Em outras palavras, a alta incerteza quanto à possibilidade de renegociação do contrato é a melhor vacina contra a criação de incentivos para não cumprir o contrato na expectativa da obtenção de vantagens com a renegociação.
As concessões cujos contratos atualmente estão em processos de renegociação, aquelas de rodovias e aeroportos federais, licitadas entre 2012 e 2014, não tinham a hipótese de renegociação em seu horizonte.
Quando esses contratos entraram em crise – como já mencionei, a crise provém sobretudo da assimetria entre o cenário de crescimento acelerado em que foram modelados e a maior crise econômica do país, que os atingiu no início da sua execução – não estava disponível um regime de renegociação. Não me parece haver nenhuma razão para crer que eles preferiram a crise na expectativa de uma renegociação generosa ao cumprimento dos contratos.[4]
A preocupação com a corrupção
A corrupção poderia contaminar e distorcer a decisão sobre a abertura de programa de renegociação e sobre os aspectos objeto das renegociações.
Isso levaria alguém, por exemplo, com tendências lavajatistas, a – baseado na suposição de que todas as relações público-privados no Brasil estão contaminadas pela corrupção – impedir renegociações de contratos.
Por outro lado, a experiência recente – considerando inclusive os próprios achados da Operação Lava-Jato – mostra que, mesmo o ambiente formal de contratações mediante licitações e submetidas à fiscalização do TCU não impediu a corrupção no âmbito da Petrobras e de outras empresas estatais.
Por isso, o meu entendimento é que a possibilidade de corrupção não deve impedir a realização de renegociação, uma vez que está claro que é possível que, em vários casos, haja vantagens econômicas e financeiras para o poder público e para os usuários em renegociar os contratos.
Nesse sentido, me parece que a preocupação com a corrupção no caso das renegociações deve levar ao monitoramento, acompanhamento e controle mais detido das decisões em torno da criação dos programas de renegociação e em relação às decisões tomadas no processo de renegociação.
No caso do processo das renegociações dos contratos federais de rodovias e aeroportos licitados entre 2012 e 2014, creio que essa preocupação já está devidamente tratada, uma vez que os aditivos que resultarem da renegociação só entrarão em vigor após a aprovação do TCU, que em tese teria função de evitar a ocorrência de corrupção.
O problema da mudança de controle
Evidentemente, que a renegociação de contratos de concessão pode gerar benefícios para a concessionária e seus controladores.
Mas, assim como é difícil distinguir em que casos a má condição do contrato e da concessionária é consequência de circunstâncias externas ou incapacidade do concessionário, também é difícil definir se os benefícios gerados para a concessionária pela renegociação são apenas algo a que ela já teria direito se fossem respeitados os seus direitos a reequilíbrio, ou se decorre das características específicas do processo de renegociação.
Nesse contexto, em vista da dificuldade de mapear a causa da geração de valor decorrente do processo de renegociação, pode fazer sentido o poder público e a agência reguladora cogitarem de, na criação do Programa de Tratamento dos Contratos em Crise, incluir disposição que exija a transferência do controle da concessão como condição para a entrada em vigor do aditivo decorrente da renegociação, assim como outras condições que permitam ao poder concedente se apropriar parcialmente de benefícios que possam ser gerados pelo próprio processo de renegociação, a serem especificados no próprio ato de criação do programa.
Conclusão
Ao se falar em renegociação de contratos, é comum se levantar preocupações com a isonomia de tratamento entre administrados, o moral hazard, a corrupção e a possibilidade de se exigir a substituição do acionista controlador da concessionária, como condição de efetividade do aditivo resultante da renegociação.
A preocupação com isonomia pode ser tratada por meio da criação de Programas de Tratamento de Contratos em Crise, que disciplinem tanto o surgimento do direito à negociação quanto o os efeitos do surgimento desse direito.
O surgimento do direito à renegociação deve estar lastreado tanto na constatação de descumprimentos relevantes dos contratos a partir de índices estabelecidos para tanto, quanto na atribuição pelo poder concedente e agência reguladora desses descumprimentos à ocorrência de eventos não controláveis pelo concessionário.
As regras do Programa de Tratamento dos Contratos em Crise devem estabelecer os efeitos do surgimento do direito a renegociação disciplinando a metodologia e os limites de alteração dos contratos que serão cabíveis para lidar com a crise dos contratos.
A preocupação com o moral hazard pode ser tratada por meio da temporalidade dos Programas de Tratamento dos Contratos em Crise, que devem ser criados quando o poder concedente e/ou agências reguladoras entenderem que ocorreram circunstâncias fora do controle dos concessionários que impactaram de forma relevante a capacidade de cumprirem os contratos. A alta incerteza sobre se o Poder Concedente e agência reguladora vão criar esses programas é importante para evitar o moral hazard.
A preocupação com a corrupção deve permear todas as decisões e ações da administração pública. E as regras de conformidade e os controles da administração pública devem funcionar normalmente na análise das decisões para criação dos Programas de Tratamento dos Contratos em Crise e das decisões adotadas no processo de renegociação.
Quando entender cabível, o poder concedente e/ou a agência reguladora devem incluir, na criação do programa, regras que exijam a transferência de controle das concessões como condição para a efetividade do aditivo que vier a ser produto da renegociação. Todas essas preocupações são legítimas e devem influenciar o modo como os Programas de Tratamento dos Contratos em Crise devem ser criados e executados. O que não podemos deixar é que elas nos paralisem e nos impeçam de adotar o curso de ação que, do ponto de vista econômico-financeiro, é melhor para os usuários, contribuintes e sociedade.
[1] O autor gostaria de agradecer a Augusto Dal Pozzo e a José Mauricio Conti pelo convite para ministrar, no dia 10 de novembro, aula aberta no curso “Direito da Infraestrutura na Atualidade: Aspectos Financeiros e Administrativos”, no qual pela primeira vez teve oportunidade de tratar de forma estruturada do tema deste artigo.
[2] Isso apesar de em muitos casos não haver outros contratos em situação semelhante ao em crise. Isso é particularmente comum no caso de contratos municipais.
[3] Já mencionei em outros trabalhos a dificuldade de se desenvolver parâmetros técnicos para definição das consequências econômico-financeira da alteração da distribuição de riscos.
[4] No entanto, ao longo sobretudo do governo Bolsonaro foi muito comum se ouvir, particularmente no Ministério da Economia, o argumento de que o “moral hazard” deveria impedir qualquer renegociação desses contratos.