Lucas Navarro Prado*
A diretoria colegiada da ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres), nos termos da Deliberação nº 513/2020, submeteu a audiência pública os estudos para subsidiar a prorrogação do contrato da FCA, bem como a minuta do respectivo termo aditivo e anexos, com o objetivo de colher sugestões com vista ao aprimoramento dos citados documentos. As contribuições foram recebidas entre os dias 6 de janeiro e 19 de fevereiro de 2021, período em que ocorreu uma única sessão pública e virtual, por videoconferência pela plataforma Teams, no dia 3 de fevereiro de 2021, nos termos da Resolução 5.891/2020-ANTT.
A audiência pública ainda não foi concluída, posto que não foi finalizado ou divulgado o relatório final da audiência; no entanto, em decorrência da análise dessas contribuições, foi identificada a necessidade de inclusão de novos investimentos, de revisão e atualização no estudo de demanda com fim de reforçar o caráter da vantajosidade da prorrogação antecipada (SEI 11729443, Fl. 01, Item 2.3).
Conforme entendimento da ANTT, as alterações necessárias não teriam o condão de alterar as premissas e diretrizes iniciais dos documentos jurídicos do projeto, motivo pelo qual consultou a Procuradoria sobre a conveniência de submeter tais alterações à validação complementar por parte da sociedade civil. A resposta à consulta veio pela Nota nº 00587/2022/PF-ANTT/PGF/AGU, de 13 de junho de 2022, proveniente da Procuradoria Federal junto à ANTT, concluindo ser prudente a promoção de ao menos uma sessão pública, preferencialmente de forma híbrida, que permita a participação popular.
Diante da publicidade da referida nota, tomamos a liberdade de fazer algumas ponderações quanto à relevância das alterações e à necessidade de novas sessões públicas presenciais, não sendo suficiente apenas uma sessão, como a nota da Procuradoria supõe.
É fundamental que se entenda a importância da participação social em processos de prorrogação de contratos de concessão, não podendo ser tratada como mera formalidade ou apenas mais um obstáculo a ser vencido pela Administração Pública. O custo de vivermos em uma democracia envolve ter que debater as decisões de política pública com os diversos agentes interessados, disponibilizando-se com antecedência os estudos atualizados e oferecendo tempo e condições suficientes para que esse debate ocorra em sua plenitude.
Relevância das alterações em curso nos documentos que fundamentam a prorrogação da malha da FCA
Já se sabe que as alterações implementadas nos documentos – após a versão disponibilizada para audiência pública – dizem respeito a novos investimentos, revisão e atualização no estudo de demanda; repercutem, portanto, no Capex, no Opex, no valor de outorga e na análise da vantajosidade.
Conquanto essas alterações não tenham ainda sido publicadas, tem sido noticiada a devolução de vários trechos pertencentes à atual configuração da Malha Centro-Leste, bem como há visões bastante críticas dos estados envolvidos em relação aos termos originalmente previstos para essa prorrogação1. Nesse sentido, esperam-se modificações substanciais no modelo inicialmente proposto, sob pena de claramente não atender a expectativa da sociedade civil afetada.
Lembre-se que a proposta inicialmente apresentada pela ANTT era de dificílima aceitação, tendo sofrido uma série de críticas principalmente quanto à necessidade de se fazer mais investimentos nos trechos como um todo que atualmente compõem a Malha Centro-Leste. Com exceção de Minas Gerais, nenhum outro dos oito estados envolvidos na Malha Centro-Leste receberia investimentos relevantes, o que fez surgir até mesmo ameaças de judicialização do procedimento de renovação em tela, por parte dos estados descontentes. Veja-se, a esse respeito, a imagem a seguir:
Em suma, não há como esconder que a viabilidade da prorrogação, do ponto de vista da demonstração da sua vantagem em relação à alternativa da relicitação, depende de uma mudança radical do modelo inicialmente proposto. Voltando à nota da Procuradoria, nesse contexto, ainda que tais alterações de modelo possam não ensejar modificações relevantes nos documentos jurídicos, elas dizem respeito ao cerne da discussão sobre a decisão de prorrogação ou relicitação, i.e., às condições técnicas e econômico-financeiras para atendimento da população residente e das empresas instaladas na área de influência da concessão. Evidentemente, os pontos de maior controvérsia são justamente aqueles atinentes aos investimentos obrigatórios e à destinação da outorga, ou seja, o que precisa ser alterado ao longo da revisão em curso para justificar a prorrogação.
Conclui-se, portanto, dado que os documentos originalmente apresentados na audiência pública têm que ser alterados em seus pontos centrais, a fim de caracterizar a vantagem da decisão de prorrogação, ser inexorável considerar a sessão pública já realizada como defasada e obsoleta, impondo-se a realização de novas sessões públicas. Aliás, a própria Procuradoria se manifestou no sentido de ser “prudente promover ao menos uma sessão pública, preferencialmente de forma híbrida, que amplie a possibilidade de participação”.
Direito aplicável ao caso concreto impõe o dever de reabrir a possibilidade de participação social mediante novas sessões públicas presenciais
O direito aplicável ao caso em questão impede que se considere suficiente apenas uma única nova sessão pública; tampouco permite aceitar que, ao colocar em discussão novas versões (substancialmente diferentes das anteriores) dos documentos da prorrogação, a ANTT pretenda encurtar o prazo de 45 dias previsto no art. 23, parágrafo único, da Resolução nº 5.624/2017.
A Lei Federal nº 13.448/2017 afirma que as prorrogações antecipadas do setor ferroviário devem ser previamente submetidas a consulta pública pelo órgão competente (no caso, a ANTT), juntamente com o estudo de vantajosidade. Veja-se a literalidade do texto legal:
“Art. 8º Caberá ao órgão ou à entidade competente, após a qualificação referida no art. 2º desta Lei, realizar estudo técnico prévio que fundamente a vantagem da prorrogação do contrato de parceria em relação à realização de nova licitação para o empreendimento.
[…]
Art. 10. As prorrogações de que trata o art. 5º desta Lei deverão ser submetidas previamente a consulta pública pelo órgão ou pela entidade competente, em conjunto com o estudo referido no art. 8º desta Lei.”
Ora, se há um novo estudo técnico que fundamente a vantagem da prorrogação (com diferenças significativas em relação à versão original, pelo que se supõe, a fim de atender as demandas dos estados), então, por decorrência lógica, não há dúvidas de que o caso da FCA deve ser novamente submetido ao escrutínio público, sob pena de tornar letra morta as disposições legais supracitadas da Lei Federal nº 13.448/2017, que exigem uma forma prescrita em lei para que seja válida a prorrogação. Nesse sentido, a ausência de nova consulta pública (ou reabertura do procedimento em andamento), em que se possa discutir o novo estudo sobre a vantagem da prorrogação, poderia levantar mesmo uma discussão de nulidade do eventual aditivo contratual celebrado nessas circunstâncias, pois, nos termos do art. 166, inc. IV, da Lei Federal nº 10.406/2002, “é nulo o negócio jurídico quando: […] não revestir a forma prescrita em lei”. Além disso, essa nulidade poderá ser reconhecida a qualquer tempo pelo Judiciário, visto que o “negócio jurídico nulo não é suscetível de confirmação, nem convalesce pelo decurso do tempo” (art. 169, também da Lei Federal nº 10.406/2002).
Como se sabe, a praxe da ANTT tem sido a de viabilizar a participação social, nos procedimentos de prorrogação, por meio de “audiência pública”, que, nos termos regulamentados por essa agência, significa um período de tempo em que os documentos ficam à disposição da sociedade civil para análise e oferecimento de contribuições, envolvendo ainda sessões públicas ao longo desse período, que são eventos presenciais, remotos ou híbridos, em que se podem discutir os documentos em tempo real, de forma mais dinâmica.
Nesse contexto, evidente que, visando ao atendimento dos princípios administrativos da eficiência, economicidade e razoabilidade, não deve se exigir necessariamente que a audiência pública seja encerrada e que se abra outro procedimento; no entanto, a fim de aproveitar o mesmo procedimento, é essencial que assegure efetiva oportunidade de manifestação social sobre os documentos novos (substancialmente distintos dos originais, como se supõe, a fim de atender as demandas dos estados), realizando-se não apenas novas sessões públicas, como também reabrindo o prazo regulamentar de 45 dias para o oferecimento de contribuições, particularmente dadas as novas premissas econômicas, os novos investimentos inseridos e a nova fundamentação sobre a vantagem da prorrogação.
Ora, a FCA é o principal eixo de integração entre as regiões Sudeste, Nordeste e Centro-oeste, sendo uma rota importante para o fluxo logístico de carga geral, por meio de suas conexões com outras ferrovias, permitindo o acesso aos maiores centros consumidores do país. Nesse sentido, está-se a tratar da renovação de uma concessão de longo prazo, da malha ferroviária mais extensa do Brasil, que passa por oito estados diferentes, sendo eles Minas Gerais, Sergipe, Goiás, Espírito Santo, Distrito Federal, Rio de Janeiro, Bahia e São Paulo, e que, até agora, somente teve uma única sessão pública, por videoconferência, no âmbito de sua audiência pública.
É necessário que a população dessas unidades da Federação e seus representantes políticos tenham a oportunidade de discutir, em sessões públicas presenciais em seus respectivos territórios, a conveniência de se prosseguir com a prorrogação antecipada e em que termos. Lembre-se, por exemplo, que, dada a escassez de espaço para participação social organizado pela ANTT, houve mobilização local em Divinópolis, no oeste de Minas Gerais, tendo sido promovida uma audiência pública municipal (portanto, externa ao presente processo administrativo da ANTT) em 10 de outubro de 2021, em que se verificaram diversas críticas e demandas de investimentos para a região. Trata-se de uma evidência de quanto a sociedade civil está sedenta por oportunidades para se manifestar quanto às condições para prorrogação da Malha Centro-Leste2.
Do ponto de vista regulamentar, existe um poder-dever da ANTT de promover diversas sessões públicas para discussão da prorrogação, sempre que isso se mostrar necessário à adequada participação social, como ocorre no caso em tela. Como já dito, não se pode, por evidente, tratar as audiências e consultas públicas como mera formalidade. Nesse sentido, destaque-se o disposto na Resolução nº 5.624, da ANTT, de 21 de dezembro de 2017, que estabelece os meios do Processo de Participação e Controle Social no âmbito da ANTT, particularmente, seu art. 19º, § 2°:
“Art. 19. Serão realizadas sessões presenciais para as Audiências Públicas e Reuniões Participativas.
[…]
§ 2º Com o objetivo de permitir a efetiva participação de toda a sociedade abrangida, sempre que a situação exigir, poderá ser determinada a realização de mais de uma sessão presencial.” (grifo nosso)
Em suma, levando em consideração a extensão da Malha Centro-Leste, a previsão de devolução de trechos bastante significativos e a atual disputa por investimentos entre os estados, não parece razoável considerar que uma única nova sessão pública híbrida adicional seja suficiente para dar cabo da obrigação de participação social. Aliás, como veremos adiante, outras malhas com menor extensão foram objeto de audiências públicas com várias sessões públicas presenciais.
Outros processos de prorrogação ferroviária foram mais abertos à participação social
Como se sabe, ocorreram outras prorrogações antecipadas de renovações contratuais, como no caso da EFC (Estrada de Ferro Carajás) e EFVM (Estrada de Ferro Vitória a Minas), ambas da empresa Vale; da Malha Paulista, da empresa Rumo; e da Malha Sudeste, da empresa MRS, esta última aprovada pelo TCU (Tribunal de Contas da União), mas ainda não assinada.
Em todos esses precedentes, houve sessões públicas presenciais em cada uma das unidades da Federação em que a respectiva malha está localizada, conforme quadro elaborado:
Como se vê, as sessões públicas das outras renovações ocorreram em, no mínimo, um município de cada estado abrangido pela malha. Nesse contexto, a eventual realização de apenas duas sessões públicas no caso da prorrogação da concessão da FCA, que envolve 8 estados da Federação, seria algo absolutamente dissonante da prática adotada nos casos precedentes. Ficaria a impressão de que se “atropelou” a exigência de participação social nesse caso concreto.
Não parece sensato permitir que renovações contratuais de malhas ferroviárias com extensão muito menor, como é o caso da EFVM e da EFC, que possuem, respectivamente, 905km e 892km, tenham passado por três a quatro sessões públicas presenciais, enquanto a concessão da FCA, com, aproximadamente, seis vezes a extensão dessas outras malhas, seja objeto de apenas uma única sessão pública presencial.
Sendo assim, em atenção ao princípio da isonomia, impessoalidade e moralidade, deve-se garantir que a renovação contratual da FCA receba o mesmo tratamento que os outros processos de prorrogação antecipada.
Da necessidade de renovação do prazo de 45 dias para as contribuições em relação aos documentos novos
Por derradeiro, é preciso se manifestar contrariamente à pretensão de se facultar um prazo menor que 45 dias para a manifestação da sociedade civil quanto aos documentos novos que venham a ser publicados pela ANTT. Essa hipótese claramente vem sendo cogitada pela agência, cuja Procuradoria se manifestou no sentido de ser “razoável que se lance mão de prazo reduzido, dispensada a renovação, por inteiro, do prazo de 45 dias”.
A conclusão da Procuradoria parece decorrer de uma premissa equivocada, i.e., de que estaria diante apenas de uma mera “prorrogação” ou “reabertura” da audiência pública e, portanto, poderia ser concedido um prazo menor para oferecimento de contribuições complementares.
Ora, mas não é disso que se trata o caso concreto, ao menos se tomarmos como premissa que a ANTT dará resposta razoável à imensidão de críticas recebidas por conta da ausência de investimentos relevantes em todos os demais sete estados da Federação abrangidos pela Malha Centro-Leste, com exceção de Minas Gerais. Espera-se, portanto, quando os novos estudos vierem a público, que tenham sido implementadas alterações bastante substanciais no modelo que primeiramente foi submetido ao escrutínio público.
Nesse contexto, não se trataria de oferecer contribuições complementares, mas, a rigor, de oferecer contribuições sobre uma nova proposta de prorrogação, dado o grau de inovação em relação à proposta anterior. Isso impõe, por decorrência lógica, a devolução da integralidade do prazo de 45 dias para a sociedade civil se manifestar.
Conclusão
Diante do exposto, é possível observar a relevância da renovação contratual da FCA, que somente por sua dimensão e complexidade deve ensejar mais de uma sessão pública presencial no âmbito da Audiência Pública 12/2020. Levando em consideração (i) o recuo da pandemia da Covid-19 e a atual possibilidade de serem realizadas sessões públicas presenciais, (ii) os precedentes das malhas ferroviárias já prorrogadas e (iii) a legislação e a regulamentação aplicáveis, o correto seria realizar ao menos oito sessões públicas, uma em cada capital de cada uma das unidades da Federação envolvidas, ou seja, em Belo Horizonte, Aracaju, Goiânia, Vitória, Brasília, Rio de Janeiro, Salvador e São Paulo.
Talvez isso possa soar como exagero, em uma primeira análise, porque outros processos de prorrogação tiveram no máximo quatro sessões presenciais. Porém, a Malha Centro-Leste é a maior de todas até o momento submetida a prorrogação, envolvendo oito estados da Federação, sendo que nos precedentes citados houve sessões públicas em todas as capitais. Por isso, a realização de mais sessões presenciais nada mais é que um custo natural em um ambiente democrático, de um país federalista, que busca compor os interesses dos estados e seus respectivos cidadãos.
De qualquer forma, reduzir o prazo usual de 45 dias e realizar somente uma única nova sessão pública híbrida, como parece ser a pretensão da ANTT, não é uma alternativa razoável nem juridicamente válida, a nosso ver, com o devido respeito. Esperamos, assim, que a ANTT opte por um caminho diferente, que dê a devida valoração à participação social nos procedimentos de prorrogação de concessões ferroviárias.