iNFRADebate: As agências e os desafios da regulação no Brasil – Dos riscos e tentativas de captura à autofagia

Luiz Afonso dos Santos Senna*

A prosperidade não tem ideologia.  (Hélio Fernandes)

Sai governo, entra governo. Esta é a saudável rotina democrática. Ficam heranças, boas ou não, consequência das convicções ideológicas de quem sai, parte do rito que se repete a cada quatro anos. Esta sequência imprime o ritmo da construção do país e ecoa ao longo do tempo. União, estados e municípios vão se moldando, e a expectativa é que no longo prazo seremos uma nação coesa, sem os desequilíbrios sociais hoje observados, com níveis de desenvolvimento econômico elevados e, basicamente, uma população feliz.

Porém, o pragmatismo que a realidade nos impõe, nos faz lembrar que falta ainda muito para que o país atinja os objetivos que são comuns a todas as ideologias, a todos os partidos políticos e a todas as pessoas, no sentido mais amplo.

O ponto central nos países que nos servem de referência civilizatória é o planejamento. Infelizmente, o Brasil ainda está nos estágios mais primitivos de planejamento e implementação de projetos de longo prazo que, por definição, transcende os períodos de governos. 

A participação estatal na economia do país é ainda muito grande. Os tentáculos do Estado se fazem presente em diversos ramos de atividade, da extração de petróleo às comunicações e às finanças, da administração de portos e aeroportos ao abastecimento alimentar e ao processamento de dados. Segundo levantamentos recentes das secretarias do Tesouro Nacional e de Coordenação e Governança das Empresas Estatais, atualizados pelo jornal Estado de São Paulo, até junho de 2022, a União detém, de formas direta e indireta, o controle acionário de 131 empresas e participações minoritárias em outras 298. Entre as 46 empresas controladas diretamente, cuja fatia no PIB alcança a impressionante marca de 7,6%, 19 são deficitárias. Apenas em 2021, elas consumiram R$ 24,5 bilhões em recursos dos pagadores de impostos, cinco vezes mais do que em 2010. No total, de 2012 a 2021, a injeção da União para cobrir rombos de estatais atingiu R$ 160 bilhões, o equivalente a todo o gasto federal com saúde previsto para este ano, suficientes também para financiar a PEC da transição. A realidade mostra que as companhias estatais possuem muitas amarras para fazer negócios e muita morosidade para tomar decisões, sem contar os baixos níveis de governança. As estatais são representantes emblemáticos dos profundos e crônicos problemas enfrentados pelo setor público brasileiro, com excessos de pessoal, salários extremamente generosos e privilégios ilimitados para seus funcionários, o que as tornam trincheiras de defesa do estatismo e do corporativismo que impedem e atrasam a modernização da economia e da atividade produtiva do país.

Com tantas prioridades no Brasil, como segurança, relações exteriores e defesa, além de habitação, educação e saúde, entre outros, não faz sentido o Estado competir com a iniciativa privada na arena empresarial. Dentro deste princípio, as privatizações e concessões possuem uma função extremamente relevante: aumentar a eficiência da economia, a taxa de investimento e o crescimento, desta forma contribuindo e influenciando diretamente na redução da pobreza e da desigualdade. 

De volta à questão da falta de planejamento, é absolutamente clara a percepção de que não possuímos tradição de planejar e executá-lo, o que faz com que a cada novo governo haja um reinício. No caso de infraestrutura este é um sério problema, uma vez que se está falando de investimentos de longo prazo que requerem previsibilidade e compromisso como políticas públicas estáveis e continuadas. 

A infraestrutura como um todo (e o sistema de transportes em particular) precisa do estabelecimento de regras e métodos, e também de integração com o planejamento orçamentário do país. Isto significa que há a necessidade de serem estabelecidas diretrizes conjuntas de planejamento e gestão.

As sempre presentes restrições fiscais e dificuldades em garantir uma maior eficiência na atuação estatal nos setores de infraestrutura têm estimulado a busca por uma crescente participação de empresas privadas. O engajamento desses investidores de forma mais efetiva requer um ambiente macroeconômico estável e a eliminação de restrições de caráter político e institucional.

Os investimentos em setores de infraestrutura possuem longo prazo de maturação e são direcionados para ativos com utilização específica, o que eleva o risco de perda futura no poder de barganha em negociações com o governo. Essa particularidade é relevante, tendo em vista que a presença de significativas economias de escala e escopo implica na necessidade de uma maior intervenção regulatória do governo. Neste contexto, a estabilidade e confiança no arcabouço regulatório reduzem a percepção de risco por parte dos investidores e podem estimular uma maior participação do setor privado em projetos de infraestrutura.

A existência de entidades autônomas confere a credibilidade necessária à atração e retenção do investimento privado nos setores de infraestrutura. Nesse sentido, é essencial o delineamento de estruturas e medidas que fortaleçam o arcabouço institucional e que viabilizem a plena autonomia das agências reguladoras. 

As relações entre o estado e a sociedade precisam estar alicerçadas no planejamento, bem como em uma base sólida, que mantenha bons níveis de coesão e estrutura. Neste sentido, observa-se entre s países um forte movimento de participação privada no fornecimento de infraestrutura, o que reforça a necessidade de relações estáveis e vínculos e robustos entre o Estado e os prestadores de serviço privados. 

A iniciativa privada foi chamada para complementar os insuficientes recursos públicos, bem como aportar capacidade gerencial compatível com o restante das atividades econômicas que fazem uso da infraestrutura. Obviamente, a participação privada não se constitui em uma panaceia, e o governo necessita claramente dispor de fontes de financiamento consistentes e confiáveis. 

Concessões de serviços públicos referem-se à gestão de fluxos de caixa que contém deveres (investimentos, manutenção e operação do ativo público em níveis de qualidade pré-fixados) e direitos (tarifa), em que um contrato robusto é a figura central. Nele estão definidas regras, direitos, deveres e todas as demais obrigações referentes à prestação de serviços que se estenderão por períodos que ultrapassam oito governos (em uma concessão de 30 anos), assim como os riscos, identificados e alocados às partes que melhor lidam com os mesmos.

Este grande desafio pressupõe agências reguladoras fortes, com credibilidade, independentes e altamente capacitadas tecnicamente.

As concessões, privatizações e delegações de serviços fazem parte do acervo de iniciativas. Trata-se da desvinculação dos papéis de Poder Concedente, Regulador e Produtor, até então concentrados em uma única figura (o governo) e que agora incluem as agências reguladoras e empresas privadas, o que viabiliza maiores níveis de eficiência no fornecimento e gestão de serviços públicos. O investidor necessita estabilidade e segurança, que significa trabalhar tão somente com os riscos assumidos, materializados nos contratos. Neste sentido, quanto mais estável for o ambiente político, regulatório e jurídico, maior a disponibilidade do investidor participar do esforço de prover infraestrutura em parceria com o Estado. 

Diante de tal dicotomia, é evidente que o fortalecimento das agências reguladoras deve afastar um sem número de riscos, dentre eles, a captura e o risco político. Precisam ser regidas por regramentos claros, transparentes e inequívocos. Para reduzir a discricionariedade nas tomadas de decisão, as agências reguladoras possuem arranjos que visam prover as mesmas com governança qualificada, visando assegurar previsibilidade, tecnicidade, transparência e independência, itens fundamentais para uma agência que faça jus a esse nome. Em caso contrário, ocorre o que tecnicamente é denominado “captura”, ou a subordinação das mesmas às vontades de algum dos grupos de interesse envolvidos, como as concessionárias, os usuários e o próprio governo.

Em qualquer nível, e sob qualquer dimensão, a captura de uma agência reguladora e redução de seu papel, mesmo por parte dos governos (principalmente!), vai na contramão absoluta do que deveria estar ocorrendo no país nos âmbitos federal, estaduais, municipais e intermunicipais, e em contrariedade até mesmo com a linha institucional de governos que defendem a maior eficiência na prestação de serviços públicos, o que não ocorre sem agência reguladora com a autonomia respeitada e atuante em suas diversas atribuições. 

A vontade do Estado ao criar as agências reguladoras foi instituir um ente independente da força dos governos, objetivando o cumprimento dos contratos, a modicidade tarifária, com os direitos dos usuários e com compromisso com o objetivo maior do projeto.

Exatamente por isso, o exame da denominada tutela (ou controle autárquico, na melhor expressão) é fundamental para a adequada compreensão das autarquias, que não estão subordinadas hierarquicamente ao Poder Executivo.

As agências reguladoras, para cumprir seu papel, precisam ter como base institucional: independência, com indicação dos dirigentes, duração do mandato, quarentena, requisitos técnicos e independência das decisões;  controle externo, com relatório anual, fiscalização das agências pelo Legislativo e Executivo, transparência das agências, análise custo-benefício (Análise do Impacto Regulatório – AIR), audiências e consultas públicas, ouvidoria; articulação com outras políticas públicas, com articulação com outras agências, com defesa da concorrência, com agências de fomento e com a defesa do consumidor. Por fim, os quadros técnicos devem receber remuneração compatível com o elevado nível de profissionalização exigido em uma agência que faça jus a esse nome.

Tem-se observado que em substantiva parte das agências no país, tanto no nível nacional como subnacional, que os pressupostos básicos acima mencionados não estão presentes, o que pode representar um sério risco para que as mesmas posam exercer na plenitude seu relevante papel institucional. Muito embora reconhecendo que ainda falta muito a ser alcançado, a agência que tenho o privilégio de presidir está entre as que dispõem de plena independência para a tomada de decisão.  

Ao mesmo tempo, mais recentemente, tem-se observado uma certa proliferação de agências muitas delas sem os necessários pressupostos de governança, nem tampouco as básicas noções de escala, escopo e integridade da rede, o que dificilmente as viabilizará no longo prazo. Além disso tal fato tem gerado também uma certa competição predatória entre agências (notadamente no setor de saneamento). O que em um determinado momento pode parecer interessante (a competição), na realidade representa um sério risco para a robustez e sustentabilidade do sistema regulatório do país, na medida em que o mercado regulatório não se caracteriza como tendendo à competição perfeita. Esta pseudocompetição pode ser considerada, em verdade, uma autofagia. 

Autofagia trata-se do ato de o homem ou animal nutrir-se da própria carne; no sentido figurado, pode também ser conceituado como o que promove a própria ruína ou perdição; autodestrutivo. 

Dentro da lógica do planejamento, e da lei como a forma de efetivar uma intenção econômica e social, é definitivamente chegada a hora de uma parada para reflexão: o país quer realmente agências reguladoras fortes, sem interferências, e segurança jurídica, previsibilidade e robustez nas decisões regulatórias externas, ou deseja uma subordinação? O país quer agências competindo de forma autofágica? O país quer mesmo cumprir contratos e passar segurança ao mercado, investidores, consumidores e usuários?

Este momento histórico de transição de governos é extremamente propício para tais reflexões, caso realmente queiramos prover o Brasil com perspectivas robustas e economicamente sustentáveis de fornecimento de infraestrutura para o futuro do Brasil.

*Luiz Afonso dos Santos Senna é PhD em transportes, professor titular da UFRGS, engenheiro civil e conselheiro-presidente da Agergs (Agência Estadual de Regulação dos Serviços Públicos Delegados do Rio Grande do Sul).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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