Fernando S. Marcato* e Isadora C. Cohen**
O governo federal colocou como prioridade de sua agenda de infraestrutura resolver a situação de concessões em dificuldades. Das 24 concessões rodoviárias federais, 12 estão com problemas para cumprir suas obrigações contratuais. Dois dos mais importantes aeroportos (Galeão e Viracopos) estão em situação semelhante.
O problema não é novo, nem a tentativa de solução. Em 2017, foi editada a Lei de Relicitações[1] cujo objetivo era permitir que as concessionárias devolvessem voluntaria e consensualmente seus contratos. Ato contínuo, o governo organizaria uma nova licitação.
Apenas este ano (seis após edição da lei) foi relicitada a primeira concessão (aeroporto de São Gonçalo do Amarante, no Rio Grande do Norte). Ainda assim, o governo federal deverá desembolsar R$ 230 milhões para indenizar a concessionária que devolveu o ativo.
Além da demora em se estruturar uma nova licitação, a dificuldade da relicitação está na concessionária aceitar valor de indenização e realizar pagamento de eventuais multas pendentes. Concessionárias com empréstimos contraídos tem ainda mais restrições, visto que a indenização pode não ser suficiente para quitar esses financiamentos.
A alternativa que vem sendo proposta é a de se abandonar a relicitação e repactuar os contratos com as concessionárias existentes. A solução certamente é mais célere, mas enfrenta alguma resistência. Em resposta recente à consulta formulada pelo Ministério de Aeroportos e Portos, a área técnica do TCU (Tribunal de Contas da União) apresentou alguns obstáculos que dependendo do caso podem ser de difícil superação. Além disso, nem todas as concessionárias atuais estão dispostas ou tem condições de se engajar em um processo de repactuação.
Solução alterativa pensada por algumas áreas técnicas do governo federal e em estudo pelo Grupo de Pesquisa em PPPs, Concessões e Privatizações, da Escola de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas) é o mecanismo de venda assistida.
O modelo é inspirado na experiência pioneira da BR-163 em Mato Grosso: a Odebrecht vendeu sua participação na concessionária para a MT-PAR, empresa controlada pelo governo do Estado. Um TAC (Termo de Ajustamento de Conduta) firmado com a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) e avalizado pelo TCU permitiu a repactuação do contrato de concessão.
A diferença do que se encontra, atualmente, em gestação para o modelo de Mato Grosso é que não há necessidade de intervenção ou aportes dos governos estaduais. A venda é feita diretamente entre privados, supervisionada pelo governo federal.
Por esse novo desenho de venda assistida das concessões, o concessionário seria autorizado a iniciar a venda do controle da concessão e os potenciais compradores interessados poderiam interagir com o governo federal trazendo propostas para repactuação do contrato.
O governo contaria com um verificador independente que pudesse atestar a lisura do processo, resguardando naturalmente a confidencialidade das propostas.
Esse processo serviria para definir os termos finais da repactuação do contrato de concessão a ser firmado com a concessionária. Com base na decisão do TCU relativo à BR-163, a venda assistida com repactuação pode prever que:
- Os acionistas da atual concessionária não permanecem como controladores. Admite-se, eventualmente, a manutenção de participação societária minoritária;
- A repactuação verse sobre riscos que foram originalmente alocados ao concessionário, modificando projeções, investimentos e a própria matriz de risco contratual;
- Os passivos regulatórios devem ser equacionados (via pagamento) ou compensados, podendo ter também sua exigibilidade suspensa. Em caso de descumprimento contratual, os passivos voltariam a ser devidos; e
- Em caso de não acudirem interessados na compra da concessão, o acionista atual poderia permanecer no contrato, desde que o verificador independente validasse que o processo se deu de maneira adequada e dentro de parâmetros de mercado.
Do ponto de vista jurídico, não seria necessária a aprovação de lei que autorize essa alternativa. A troca de controle ou transferência da concessão estão previstas no artigo 27 da Lei 8.987/1995. Já o termo de ajustamento de conduta é faculdade geral atribuída às agências reguladoras competentes, sendo que eventual questionamento relativo ao risco moral associado à repactuação contratual estaria sanado pela troca de controle da concessionária.
Vale lembrar ainda que, apesar de algumas diferenças, o Estado de São Paulo já promoveu um processo de venda assistida. Nesse caso, o contrato de concessão para construção e operação da Linha 6 do Metrô foi transferido, com anuência do governo, para uma nova concessionária. Ajustes no cronograma de investimentos foram realizados no contrato, após a transferência da concessão[2].
A vantagem dessa alternativa é afastar o longo e moroso processo de relicitação, bem como o risco de o governo ter que arcar com a indenização, mesmo após a relicitação. Além disso, criam-se incentivos para que o atual concessionário colabore com o processo, permitindo negociar e equacionar os pagamentos e riscos associados a empréstimos e outras obrigações já contraídas. Isso porque o comprador pode assumir parte dessas obrigações no âmbito da negociação. Por fim, estabelece-se um programa específico e transitório para equacionar projetos que tiveram problemas de modelagem e sofreram com circunstâncias político-institucionais excepcionais. Preserva-se, porém, a solidez do programa brasileiro de concessões e o crescente fluxo de interesse de investidores nesse mercado.
[1] Lei 14.133/2017
[2] Para maiores informações sobre o processo, vale ouvir o Infracast com Thiago Mesquita, acessível no link: https://www.youtube.com/watch?v=yT4fqIU6Jk4
*Fernando S. Marcato é advogado e professor do curso de Direito da FGV (Fundação Getulio Vargas) em São Paulo (SP). Foi secretário de Estado de Infraestrutura de Minas Gerais; secretário executivo de Novos Negócios da Sabesp (Companhia de Saneamento de São Paulo); coordenador do Grupo de Pesquisa em PPPs, Concessões e Privatizações da Escola de Direito da FGV; e co-fundador do Infracast.
**Isadora Cohen é advogada. Foi chefe da Unidade PPPs do Estado de São Paulo; secretária executiva do Programa de Desestatizações do Estado de São Paulo; secretária executiva da Secretaria de Transportes Metropolitanos do Estado de São Paulo; coordenadora do Grupo de Pesquisa em PPPs, Concessões e Privatizações da Escola de Direito da FGV; e co-fundadora do Infracast.
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