Rosane Menezes Lohbauer e
Lucas Noura de Moraes Rêgo Guimarães*
O setor elétrico brasileiro, mais uma vez, vem passando por mudanças substanciais em sua legislação. Após uma primeira fase, marcada pelas privatizações da década de 90, criação da agência reguladora setorial, desverticalização da cadeia produtiva do setor e abertura do mercado (Leis n° 8.987/95, 9.074/95, n° 9.427/96 e n° 9.648/98), aperfeiçoou-se o modelo com a introdução de leilões regulados pela União, regulamentação da atividade de comercialização e criação de políticas públicas voltadas ao setor (Leis n° 10.438/02 e n° 10.848/04). Uma terceira fase pode ser caracterizada pela busca de soluções para o fim do prazo das concessões e pelo enfrentamento dos altos valores pagos na tarifa de eletricidade (MP n° 579/12 e Lei n° 12.783/13).
Atualmente vive-se sob a égide de uma “quarta onda” regulatória no setor elétrico brasileiro, surgida não apenas para corrigir as distorções causadas pela edição da MP n° 579/12 – merecendo destaque a introdução do regime de cotas para as usinas prorrogadas –, mas também para fazer frente à crescente judicialização do setor elétrico, à retomada do processo de abertura do mercado e ao inchaço do rol de finalidades da Conta de Desenvolvimento Energético – CDE, apenas para citar algumas. A intenção do governo atual em privatizar a Eletrobrás, por meio da pulverização de seu capital e venda de suas distribuidoras, aliada às medidas de empoderamento dos consumidores, compõem o cenário cambiante.
É dentro deste contexto que se inseriu a Consulta Pública n° 33, de 5 de julho de 2017, aberta pelo Ministério de Minas e Energia e que contou com amplíssima participação dos agentes e associações do setor elétrico. Na oportunidade, a Nota Técnica n° 5/2017/AEREG/SE trouxe todas as alterações pretendidas pela Pasta do governo na legislação vigente. Após análise das contribuições recebidas, o MME divulgou, em 9 de fevereiro de 2018, a minuta do Projeto de Lei, encaminhada à Casa Civil para posterior reenvio ao Congresso, para discussão e aprovação.
Sem pretender esgotar a discussão, este artigo analisa criticamente os principais pontos da minuta do PL, comparando-os com as propostas iniciais do MME, conforme constam da referida Nota Técnica.
Inicialmente, merece destaque o fim do regime de cotas para as usinas hidrelétricas prorrogadas ou licitadas conforme a Lei n° 12.783/13. Embora as mudanças visadas na proposta submetida à Consulta Pública pudessem ser aplicadas às usinas da Eletrobrás, fato é que se optou por desmembrar a “questão Eletrobrás” da proposta e submeter um Projeto de Lei em separado versando sobre sua desestatização. Requisito para a desestatização é justamente a saída do regime de cotas das usinas da estatal.
Um segundo ponto bastante ventilado e debatido diz respeito à redução dos limites de acesso ao mercado livre. Pela proposta original do MME, definia-se uma trajetória de abertura parcial do mercado, até 2028, para consumidores de alta e média tensão (Grupo A), alcançando o seu limite inferior de 75 kW de demanda. O segmento de baixa tensão encontrava-se excluído da abertura do mercado, em razão da falta de informações que permitissem avaliações mais profundas quanto a eventuais benefícios, para essa classe de consumo, da abertura do mercado.
Pela minuta de PL enviada à Casa Civil, há alteração da trajetória e inclusão de previsão legal para realização de estudos. A partir de janeiro de 2026 não será aplicado requisito mínimo de carga algum aos consumidores atendidos em tensão igual ou superior a 2,3 kV. Há uma sutil aceleração da trajetória. Por outro lado, até dezembro de 2022 o Poder Executivo deverá apresentar plano de extinção integral do requisito mínimo de carga para consumidores atendidos em baixa tensão, conforme proposta de inserção do art. 16-A, § 4°, na Lei n° 9.074/95.
Quanto ao tema, algumas experiências internacionais demonstram que a mera possibilidade de migração para o mercado livre não conduz, necessariamente, a uma maior abertura de mercado, especialmente para consumidores atendidos em baixa tensão. Pela inelasticidade da demanda, e ainda a baixa participação dessa despesa no orçamento familiar, há baixo interesse dos consumidores em pesquisar fornecedores e pequeno incentivo econômico para a migração, conforme estudos de Ali Hortaçsu et. al. (Power to Choose? An Analysis of Consumer Inertia in the Residential Electricity Market), Timothy Brennan (Consumer preference not to choose: methodological and policy implications), Yingkui Yang (Understanding household switching behavior in the retail electricity market) e o relatório da Australian Energy Market Commission (2017 AEMC Retail Energy Competition Review, Final Report). Em síntese, há consumidores que escolhem não querer escolher.
Um terceiro ponto bastante debatido durante o período da Consulta Pública diz respeito à possibilidade de separação entre lastro e energia, no momento da contratação. A proposta inicial havia sido criticada por estar pouco clara e por deixar a regulamentação da matéria para decreto a ser publicado posteriormente.
A proposta almeja separar a contratação de confiabilidade de suprimento, isto é, contratação de lastro, da gerência descentralizada do risco de mercado, isto é, a contratação da energia. Entende o MME que a contratação no modelo atual envia sinais distorcidos na alocação de custos, já que os agentes participantes do ACL não contribuem para a expansão do Sistema, na medida em que dependem apenas das sobras exportadas pelo ACR ou das parcelas remanescentes da garantia física de empreendimentos novos não contratada nos leilões regulados. Os custos da expansão do Sistema acabam recaindo, portanto, apenas sobre os consumidores do ACR.
Embora a medida busque corrigir sinal distorcido, ainda há incerteza em saber se a mera apresentação de lastro junto às instituições financeiras será suficiente à obtenção de empréstimo com condições favoráveis, ou se tal medida legal será traduzida em maior risco e, portanto, aumento das taxas de juros, com repercussão na tarifa.
Quanto ao texto legal, a minuta de PL aperfeiçoa a proposta inicialmente submetida à Consulta Pública, na medida em que fixa para junho de 2020 o estabelecimento, pelo Poder Concedente, de cronograma para a implantação da forma de contratação de lastro; das diretrizes, regras, padrões e alocação de custos referentes à contratação; de regra explícita para definição dos montantes de lastro a serem contratados para o Sistema.
Embora ainda faça depender de regulamentação, a minuta do PL fixa um calendário para implantação da contratação de lastro separado da energia, o que é percebido como maior segurança jurídica pelos agentes do setor.
Consoante afirmado anteriormente, a proposta de aprimoramento do setor elétrico do MME busca também frear o movimento de judicialização iniciado nos últimos anos, como por exemplo as discussões a respeito das novas finalidades da CDE e do risco hidrológico, sendo este último um dos casos com maior número de agentes socorrendo-se ao Judiciário. Por meio da obtenção de liminares, diversos agentes furtaram-se à liquidação de suas posições contratuais no Mercado de Curto Prazo, culminando em valores represados da ordem de R$ 6 bilhões até o fim de 2017, valor esse que poderia chegar a R$ 10 bilhões ao fim de 2018, caso nenhuma medida fosse tomada.
A solução proposta já na Nota Técnica do MME – e mantida na minuta do PL enviado à Casa Civil – busca fazer retroagir a 2013 a repactuação do risco hidrológico, compensando os agentes com extensão de seus respectivos prazos de outorga (limitada a sete anos). Além da geração termelétrica fora da ordem de mérito, também foram excluídas do Mecanismo de Realocação de Energia – MRE (i) a antecipação de garantia física outorgada a projetos hidrelétricos estruturantes e (ii) a restrição de escoamento da energia oriunda destes empreendimentos em razão de atraso na entrada em operação das instalações de transmissão.
Inovação trazida pela minuta do PL diz respeito à fixação de data para vedação da repactuação do risco hidrológico (janeiro de 2019). Anteriormente, a proposta do MME condicionava a vedação à vindoura regulamentação da ANEEL.
Por fim, cabe destacar um último ponto da minuta do PL, relacionado à inclusão de modificação na legislação referente à aquisição de imóveis por estrangeiros. A proposta objetiva incluir exceção às restrições contidas na Lei nº 5.709/71 para aquisição de imóveis rurais por pessoa jurídica brasileira controlada por pessoa física ou jurídica estrangeira, destinados à execução das atividades de geração, transmissão e distribuição de energia elétrica. A medida é benéfica para eliminar esta barreira à entrada de investidores estrangeiros no setor, aumentando a competitividade.
Contudo, pela redação sugerida na minuta do PL, podem ser levantadas algumas incertezas. Primeiro, o texto não define se toda a área adquirida ou apenas parte dela precisar ser destinada a projetos do setor elétrico. Segundo, não está claro se a regra vale apenas enquanto perdurar o empreendimento ou se se trata de aquisição definitiva do imóvel para esse fim. Por fim, há dúvida quanto à real utilidade da alteração legislativa, uma vez que para muitos projetos de geração – em especial eólicos –, o arrendamento afigura-se como solução mais praticada que a aquisição do imóvel.
A minuta do PL ainda se encontra na Casa Civil e a sinalização da Pasta de Minas e Energia em endereçar uma solução para o desarranjo setorial é vista com bons olhos. Porém, considerando o ambiente político – ano eleitoral e priorização de outras pautas pelo Governo – e o ambiente setorial – endereçamento da “questão Eletrobrás” em PL autônomo e busca de solução para a desjudicialização por meio do próprio Judiciário –, espera-se pouca pressa por parte do Executivo no envio da minuta ao Congresso, e muito debate por parte do Legislativo, quando o PL for enviado.