Bernardo Souza Barbosa* e Rafael Henrique Fortunato**
A reforma tributária instituída pela Emenda Constitucional nº 132, de 20 de dezembro de 2023, promoveu significativa reformulação no Sistema Tributário Nacional. O escopo deste artigo não é analisar as mudanças estruturais implementadas por essa reforma, mas sim propor uma reflexão crítica acerca do adequado tratamento tributário dispensado ao serviço de saneamento básico.
O Brasil ainda enfrenta grandes desafios no setor de saneamento básico, apesar de avanços no serviço de abastecimento de água. De acordo com o Instituto Trata Brasil, mais de 33 milhões de pessoas ainda não têm acesso à água tratada (15,80% da população brasileira) e, quando se fala em esgotamento sanitário, mais de 90 milhões de pessoas não têm ao seu alcance serviço de coleta, ou seja, 44,50% da população brasileira está à margem deste serviço. Esses dados refletem a grave defasagem do Brasil no que diz respeito à universalização dos serviços de saneamento básico, evidenciando a urgência de investimentos intensivos no setor.
Por sua vez, para universalizar os serviços de água e esgoto no Brasil são necessários, estima-se, R$ 357 bilhões até 2033, segundo o Plansab (Plano Nacional de Saneamento Básico), essa cifra foi revisada a partir de estimativas anteriores que variavam entre R$ 511 bilhões até R$ 753 bilhões, dependendo da metodologia e dos parâmetros considerados, de acordo também com o Instituto Trata Brasil.
No entanto, com o atual ritmo de investimentos, o país levaria mais de 40 anos para atingir essas metas, conforme estudo da KPMG. Ademais, para cumprir as metas de universalização, seria necessário um investimento anual de R$ 15,2 bilhões entre 2013 e 2033 (com base em valores de dezembro de 2012), o que demanda um esforço múltiplo das esferas pública e privada para preencher essa lacuna de investimento.
É nesse contexto que a regulamentação da reforma tributária deve ser encarada como uma grande oportunidade para a almejada virada da situação do saneamento no Brasil. E isso pode ser concretizado com o simples e justo adequado tratamento jurídico do saneamento, o que perpassa pela compreensão de sua essencialidade para a saúde pública do país, estabelecendo um regime diferenciado para as empresas que prestam serviços de abastecimento de água e esgotamento sanitário, sob pena de impactar negativamente a sustentabilidade econômico-financeira das companhias, comprometendo sobremaneira os investimentos essenciais para que o setor possa alcançar as metas de universalização nos prazos definidos pelo Novo Marco Legal do Saneamento.
É fato que o atraso do Brasil em relação aos serviços de saneamento básico traduz-se em reflexos diretos e negativos para a sociedade. À título de exemplo, em 2009, a OMS (Organização Mundial da Saúde) apontava a ausência de saneamento como o décimo primeiro fator de risco para as mortes no mundo. Neste contexto, em 28 de julho de 2010, a ONU (Organização das Nações Unidas) reconheceu o acesso aos serviços de saneamento como um direito de todo ser humano, sendo um fator primário de prevenção para problemas de saúde.
Importa destacar que o acesso à água potável melhora a qualidade de vida da população beneficiada, reduz a mortalidade infantil e a incidência de diversas doenças, bem como é capaz de mitigar os impactos ambientais. Soma-se a isso diversas externalidades positivas em saúde pública, aumento da produtividade da força de trabalho e melhoria da educação infantil, além de vantagens que podem ser mais facilmente apreciadas sob a perspectiva econômico-financeira.
Essa ínsita correlação entre o serviço de saneamento básico e saúde pública reclama um adequado tratamento tributário ao tema. Na União Europeia, por exemplo, a Diretiva do IVA (Imposto sobre o Valor Acrescentado) permite que os países membros apliquem taxas reduzidas para serviços de água e saneamento, considerando a relevância desses serviços para a saúde pública e o meio ambiente. Em vários países europeus, o saneamento básico recebe tratamento tributário diferenciado para incentivar seu desenvolvimento e assegurar que o custo não se torne um obstáculo para o acesso, especialmente em populações de baixa renda.
Por sua vez, a OCDE (Organização para a Cooperação e Desenvolvimento Econômico) recomenda que os países definam tarifas e políticas fiscais que favoreçam o acesso universal ao saneamento. Em alguns países em desenvolvimento, como a África do Sul, o fornecimento de água para necessidades básicas é subsidiado, e serviços de saneamento podem ser totalmente isentos de impostos para beneficiar populações mais pobres e fomentar melhorias sanitárias em áreas urbanas e rurais
No entanto, a reforma tributária inseriu o setor de saneamento na regra geral de incidência do chamado Imposto sobre Valor Agregado dual (IVA dual), composto pela CBS (Contribuição sobre Bens e Serviços) e pelo IBS (Imposto sobre Bens e Serviços). Isso significa que, conforme dados divulgados pela Abcon Sindcon (Associação e Sindicato Nacional das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto), a carga tributária para as companhias de saneamento básico passará dos atuais 9,74% para 26,50% de alíquota, caso o serviço de saneamento básico não seja enquadrado como serviço de saúde.
Isto porque os serviços de saneamento básico hoje não estão sujeitos à incidência do ISSQN (Imposto sobre Serviços de Qualquer Natureza), cobrado pelos municípios, dada a ausência de previsão dessa hipótese de incidência na LC nº 116/20023, nem a incidência do ICMS (Imposto sobre Circulação de Mercadorias e Prestação de Serviços) sobre o abastecimento de água tratada, por decisão do STF (Supremo Tribunal Federal) em 2013 (RE 607056).
A Emenda Constitucional nº 132/2023 previu que a lei complementar definirá operações beneficiadas com redução de 60% das alíquotas do IBS e da CBS, incluindo as relativas aos serviços de saúde. No entanto, em que pese o serviço de saneamento básico ser um serviço de saúde pública, o PLS (Projeto de Lei Complementar) 68/2024, ainda em discussão no Senado Federal, não o menciona como um dos serviços de saúde capazes de serem abarcados pela redução de alíquota.
Sendo os “serviços de saúde” passíveis de recebimento de um tratamento tributário diferenciado, com a redução de alíquotas, não se pode negar que o serviço de saneamento básicoestaria, sim, abrangido pela norma, já que a sua nota distintiva e marcante é justamente a natureza de matéria atinente à saúde pública. Nesse sentido, a Lei nº 8.080/1990, conhecida como Lei Orgânica da Saúde, estabelece as diretrizes para o SUS (Sistema Único de Saúde) e menciona o saneamento básico como um dos fatores essenciais para a promoção e proteção da saúde pública (art. 3º, §1º, art. 6º, I, art. 7º, IX).
O temporário, espera-se, esquecimento do legislador em apontar o saneamento básico como um serviço de saúde submete o setor a um anti-isonômico tratamento tributário, pois cria equivocada distinção entre contribuintes que se encontram em situação equivalente.
A não inclusão do serviço de saneamento básico como serviço de saúde na regulamentação da reforma tributária cria, ainda, uma naked preference (preferência nua)em favor daqueles contemplados na regulamentação, eis que dispensa tratamento desigual para serviços de saúde, sem que exista qualquer objetivo público legítimo que a justifique.
Por sua vez, sob a ótica regulatória, estamos tratando de contratos administrativos de longo prazo que demandam investimentos financeiros intensivos e significativa capacidade técnica, portanto são contratos complexos que requererem um alto grau de coordenação entre diversos setores da sociedade e em diferentes níveis de governo, especialmente porque o serviço de saneamento básico é de titularidade municipal.
Nesse sentido, a complexidade desses contratos evidencia a dificuldade que se colocará frente a necessidade de seu reequilíbrio econômico-financeiro, considerando o choque exógeno (expressão utilizada pelo Professor Marcos Nóbrega) que a reforma tributária provocará, ainda mais se considerarmos um ambiente com mais de 50 agências reguladoras subnacionais (22 agências municipais, 25 estaduais, 5 intermunicipais) que atuam na regulação dos serviços de saneamento básico (dados da Associação Brasileira de Agências de Regulação), bem como a dificuldade inerente de se proceder ao reequilíbrio de contratos de longo prazo.
Em um setor carente e que demanda, urgentemente, investimentos para que se alcance a tão almejada universalização, a não inclusão do saneamento como serviço de saúde tem o potencial de causar graves efeitos adversos ao usuário do serviço, o que, por certo, não é desejo do legislador, em especial se considerarmos todo esforço empreendido pelo Congresso Nacional para recente aprovação do marco legal do saneamento básico e, como consequência, o compromisso assumido normativamente com a universalização e qualidade do serviço.
A prevalecer a potencial carga tributária que incidirá sobre o setor de saneamento, fica fácil antever que o Brasil seguirá amargando índices de atendimento e qualidade distantes daqueles compatíveis com um país que elege a saúde pública como prioridade.
Tudo o que aqui se diz está longe de representar um palpite ou um argumento ad terrorem. Afinal, o raciocínio é muito simples: se com a carga tributária atual o saneamento básico caminha a passos vagarosos, que dirá com uma incidência mais gravosa?.
São com essas considerações que este artigo faz coro às legítimas iniciativas que buscam, sob a perspectiva jurídica, conferir ao setor de saneamento tão somente um tratamento jurídico rigorosamente adequado às suas peculiaridades, sob pena de se criar uma odiosa discriminação, cuja principal vítima é, antes de tudo, os usuários desse serviço essencial para a saúde pública.
* Bernardo Souza Barbosa é ex-procurador federal. É consultor do escritório Sacha Calmon, Misabel Derzi – Consultores e Advogados. Doutor pelo IDP (Instituto Brasileiro de Ensino Desenvolvimento e Pesquisa) e mestre pela FGV (Fundação Getulio Vargas) de São Paulo, é professor do IBMEC (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais) e procurador do município de Nova Iguaçu (RJ).
** Rafael Henrique Fortunato é procurador federal, atualmente assessor de Regulação no PPI (Programa de Parcerias de Investimentos). É professor do IBMEC (Instituto Brasileiro de Mercado de Capitais), mestre em Ciências Jurídico-Administrativas pela Universidade do Porto (Portugal), MBA em Economia e Regulação pela FGV (Fundação Getulio Vargas) e formado pela UFPE (Universidade Federal de Pernambuco), com disciplinas cursadas na Università degli Studi Roma Tre – IT.
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