César Mattos* e Sandro Gonçalves**
Na última terça, dia 8 de dezembro, a Câmara dos Deputados aprovou o PL (Projeto de Lei) 4.199/2020, conhecido como “BR do Mar”, que altera a regulação do serviço de navegação de cabotagem1 no Brasil. A versão aprovada após intensa discussão no plenário da Câmara manteve a linha mestra do texto original do Poder Executivo: ampliar a concorrência no setor.
Diferentemente da aviação civil, atividade na qual apenas recentemente (Lei 13.842/2019) a entrada de empresas com 100% de capital estrangeiro foi autorizada, a navegação de cabotagem nunca teve tal tipo de restrição. As duas maiores empresas de cabotagem no Brasil (com exceção da Transpetro, que atua com petróleo) são de propriedade de grupos estrangeiros: a Aliança, do grupo dinarmarquês Maersk, e a Mercosul Line Navegação e Logística Ltda, do grupo francês CMA-CGM. A origem do capital, portanto, nunca foi problema. A origem da embarcação, sim.
A principal questão concorrencial, aqui, diz respeito à possibilidade de afretamento (aluguel) de embarcações estrangeiras. A lei atual impõe severas restrições a esse tipo de operação, obrigando, como espécie de condição à realização dela, que empresas desejosas de atuar na cabotagem ou de ampliar sua participação nesse mercado contratem a construção de navios no Brasil. Isso aumenta substancialmente o capex requerido para entrar e, depois, crescer na atividade.
Por trás da regra que permite o afretamento de embarcação estrangeira na cabotagem e no transporte fluvial apenas no caso de a empresa de navegação possuir lastro em frota própria, construída ou em construção no país, está a ideia de vincular a política de transporte aquaviário à política de construção naval, há muito tempo materializada na legislação brasileira.
Não por acaso, enquanto na aviação comercial o aluguel de aeronaves é a regra, na cabotagem o afretamento de navio estrangeiro ainda é a exceção. Diante disso, o que pretende o legislador? A principal mudança da BR do Mar é relaxar as restrições atuais das duas modalidades principais de afretamento: por tempo, quando se aluga uma embarcação armada que traz também pelo menos parte da tripulação; e a casco nu, quando se aluga apenas a embarcação, desarmada e sem tripulação.
Inicialmente, no quadro abaixo, comparamos as condições existentes no regime atual de “afretamento por tempo”, conforme a Lei 9.432/1997, que continuará valendo para as empresas que NÃO aderirem ao programa “BR do Mar”, com as condições previstas no “BR do Mar”.
A BR do Mar amplia bastante o escopo dos afretamentos a tempo, diminuindo custos de transação na economia, em especial, ao permiti-los (i) para operações que envolvam contratos de longo prazo, os quais requerem maior segurança de atendimento; e (ii) para operações especiais de cabotagem, barateando a abertura do serviço em novas cargas, rotas ou mercados. Sem as novas hipóteses de afretamento, quase nada disso seria viável.
Mas é no “afretamento a casco nu” que se introduz uma flexibilização mais profunda na cabotagem: para realizá-lo, libera-se gradativamente a empresa brasileira de navegação da contrapartida de possuir embarcações próprias ou de contratar a construção de navios em estaleiros nacionais. O quadro abaixo faz para a mudança do regime no afretamento a casco nu a mesma comparação que realizamos para o afretamento a tempo.
A redação atual da Lei 9.432/1997 deixa claro a dependência do afretamento a casco nu tanto do fluxo de encomendas aos estaleiros nacionais quanto do estoque de embarcações próprias, no arcabouço regulatório atual da cabotagem. Esse regime implica que quanto menor (maior) uma empresa de cabotagem for, maiores (menores) as restrições para ela crescer pela via do afretamento a casco nu, gerando uma tendência natural a uma concentração no mercado.
Tornar o afretamento independente do fluxo de encomendas (o contrato em eficácia) e do estoque de embarcações próprias permite quebrar essa tendência concentradora atual do setor de cabotagem, gerando um grande potencial de concorrência.
Em particular, o afretamento permite aos entrantes ou empresas menores “testar” o mercado antes de investir em uma frota própria. Mais do que isso, favorece a multimodalidade. Empresas de transporte terrestre, por exemplo, passam a poder se verticalizar mais facilmente, seja com a propriedade de EBNs próprias, seja contratualmente com empresas menores, que passarão a ter mais oportunidades para afretar navio estrangeiro. Isso significa que, com as regras do BR do Mar, o transporte rodoviário e o de cabotagem tendem a ser mais complementares do que substitutos.
Note-se que navios não são ativos que se caracterizam integralmente como “custos afundados”, pois o proprietário pode reutilizá-los para outras cargas e rotas assim que um determinado uso original se mostre não rentável. No entanto, há algum grau de “custos afundados”, pois navios para cargas, como de granéis líquidos, por exemplo, não são reversíveis para carregar granéis sólidos. Ademais, se a empresa internaliza um navio, há custos para reutilizá-lo em outro país. Essa rigidez, que pode ser entendida como característica de custos afundados, constitui uma barreira à entrada quando se limitam as duas possibilidades de afretamento acima.
Após a flexibilização dos dois tipos principais de afretamento, a segunda grande mudança prevista no texto aprovado da BR do Mar foi a redução da alíquota do AFRMM (Adicional de Frete de Marinha Mercante), tributo que alimenta o Fundo de Marinha Mercante.
Atualmente, a alíquota do AFRMM é de 25% na navegação de longo curso, 10% na cabotagem; e 40% na navegação fluvial e lacustre, quando do transporte de granéis líquidos nas regiões Norte e Nordeste. A proposta aprovada pela Câmara dos Deputados reduziu e uniformizou as alíquotas do AFRMM em 8%, o que tende a reduzir o chamado Custo Brasil nesses serviços. Além disso, a uniformização gera mais neutralidade na política setorial, evitando que uma atividade aquaviária seja mais gravada, em benefícios de outras. Desde 1997, a lei prevê não incidência de AFRMM para cargas cuja origem ou destino seja porto localizado na região Norte ou Nordeste. Esse benefício foi prorrogado, no projeto aprovado, até 2027, para as navegações de cabotagem e fluvial.
O AFRMM é um subsídio cruzado que onera o preço do serviço de navegação para os contratantes, ao passo que gera recursos para a construção de embarcações ou sua ampliação nos estaleiros nacionais. O governo brasileiro nunca realizou estudos quantitativos sérios de custo e de benefício para avaliar o resultado econômico e social dessa política. Na falta deles, a discussão legislativa abraçou a hipótese bastante razoável de que o Adicional não precisa mais ter o tamanho que tinha, dado o ônus que impõe à produção de bens e o volumoso estoque de recursos (cerca de R$ 20 bilhões) de que dispõe o Fundo de Marinha Mercante, responsável pelo financiamento das atividades de construção naval.
Concluindo, a BR do Mar promove avanços importantes ao colocar a competição no centro da política pública para a cabotagem. A maior barreira para crescer neste setor são as rígidas regras de afretamento existentes, o que torna o mercado mais concentrado, a competição menor e os preços maiores do que poderiam ser neste serviço. A flexibilização dos afretamentos a tempo e a casco nu poderá gerar uma verdadeira revolução no transporte marítimo brasileiro, com transbordamentos generalizados para os setores que demandam o transporte de carga em suas cadeias produtivas. Constitui redução na veia do Custo Brasil, com aumento da produtividade geral do país.
Com a palavra, agora, o Senado.