iNFRADebate: Renovação da FCA é uma afronta às reais necessidades do sistema ferroviário e da população

Vitor Pires Vencovsky*

Projeto não apresenta vantajosidades que justifiquem uma renovação antecipada do contrato de concessão

Sempre fui um defensor de que os processos de renovação das concessões das malhas ferroviárias brasileiras fossem elaborados sob um ponto de vista técnico. É preciso focar em princípios que representem aumento de capacidade, eficiência, segurança e o efetivo desenvolvimento do modal sob os aspectos econômicos e sociais do país. No entanto, essa não parece uma preocupação do Governo Federal ao avaliar os atributos presentes no documento da renovação antecipada da FCA (Ferrovia Centro-Atlântica), aberta para consulta pública e manifestações no último dia 6 de janeiro. Repleto de lacunas – que de fato impedem um maior juízo da sociedade a respeito do que está proposto – e artimanhas, o documento não traz informações que justifiquem uma renovação por mais 30 anos.

Com 7.220 quilômetros de extensão, a FCA foi privatizada em 1996 e atualmente está sob concessão da VLI. É uma malha representativa, que atravessa Sergipe, Bahia, Espírito Santo, Rio de Janeiro, São Paulo, Minas Gerais e Goiás, além do Distrito Federal. Diante da sua importância na cadeia logística, chama atenção a ausência, nos documentos apresentados, de diversos elementos técnicos essenciais para a avaliação do processo pela sociedade:

Não há na proposta de investimentos a solução de conflitos urbanos

Propõe-se a renovação de uma ferrovia que atravessa mais de 300 municípios sem apresentar quais serão as obras para a resolução dos conflitos entre a ferrovia e as comunidades. O Caderno de Engenharia destaca que esses investimentos serão tratados oportunamente no processo. Oportunamente quando? Sem essas informações preliminares, qual é o objetivo de se ouvir a sociedade na audiência pública agendada para 3 de fevereiro?

Não há quaisquer informações sobre devoluções de trechos

Segundo o Caderno de Demanda, tais informações seriam apresentadas no caderno de passivos – documento que não foi disponibilizado até o momento. Prevê-se a redução de 1.571 quilômetros após a formalização da renovação, mas não nos é informado quais trechos serão devolvidos, os valores de indenização ou a proposta de destinação para esses ramais. A utilização para trens de passageiros ou projetos de reurbanização poderiam se tornar alternativas interessantes no aspecto socioeconômico para municípios que sofrem com infraestruturas obsoletas. Mais uma vez: não é possível entender o sentido da audiência de 3 de fevereiro próximo sem que a sociedade disponha de tais informações.

Não há informações sobre obras de expansão de capacidade

Dos R$ 3,3 bilhões de Capex, somente 530 milhões serão destinados a projeto de expansão de capacidade operacional e via permanente. Em uma concessão de mais de 7 mil quilômetros, é um valor irrisório, sobretudo considerando-se uma renovação por 30 anos. São duas ampliações de pátio no ano 1 e outras duas no ano 12, além da modernização de 520 quilômetros de via. Ou seja, investimentos em menos de 10% da extensão total da malha e uma parte após o vencimento da primeira parte do contrato. Não há uma duplicação de via sequer, uma semiduplicação, uma nova modelagem operacional, um trecho greenfield, nada. Em nenhum dos nove estados da Federação atravessados pela malha. Difícil identificar o sentido em se renovar o contrato. 

O investimento em material rodante é a maior parte do Capex e concentrado no longuíssimo prazo.

Dos R$ 3,3 bilhões de Capex (montante que já seria baixo para o tamanho da concessão e do prazo), cerca de 84% (R$ 2,77 bilhões) são em material rodante, o que por si só já é questionável. Está prevista a aquisição de 353 locomotivas. Desse total, no entanto, a grande maioria (322) tem previsão de aquisição após o vencimento da primeira parte do contrato, em 2027. Como se não bastasse o fato de a aquisição imediata ser irrisória, a maior parte das máquinas – nada menos do que 260 das 322 – está prevista para após o ano de 2047 (isso mesmo). Mais agravante ainda é o fato de que os valores projetados para investimentos em locomotivas e vagões não são vinculantes na proposta elaborada. Trocando em miúdos, não existe uma obrigação contratual a ser assumida para que sejam executados no prazo planejado.

Em suma, se a maior parte do Capex, que já é baixo, está concentrada em locomotivas e a imensa maioria das locomotivas está concentrada após 2047, o que resta de investimentos propostos é irrisório. Além do fato de que não há proposta para conflitos urbanos, trechos abandonados e nem sequer aumento de capacidade de via. 

Engana-se quem pensa que a falta de transparência na renovação da FCA é um mero descuido técnico de um planejamento mal executado. O primeiro instinto, após a leitura do material, é acreditar que houve erro processual e foi publicada versão equivocada. Há, porém, indícios de que os reais interesses são outros. O valor de outorga de R$ 4,98 bilhões é resultado de modelagem financeira em que se gasta o mínimo em investimentos. Assim, os recursos da outorga podem ser aplicados em outros projetos de interesse do governo federal, via os chamados “investimentos cruzados” – uma manobra política que burla o sistema licitatório, desviando os recursos que deveriam ser aplicados integralmente na malha que é objeto da renovação.

Todos esses aspectos apontam para a inexistência de vantajosidade na renovação antecipada. Afinal, boa parte dos investimentos serão posteriores a 2026 e poderiam perfeitamente ser executados por outro concessionário – a partir de uma nova licitação, com direito a ampla concorrência e um planejamento mais assertivo e estruturado do que este agora proposto.

*Vitor Pires Vencovsky é engenheiro e autor do livro Ferrovia e Sociedade (2019).
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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