Tales Silveira, da Agência iNFRA
Com um racha na diretoria, a ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) decidiu, na última quinta-feira (18), revisar a proposta de regulamentação do Trip (Transporte Rodoviário Interestadual de Passageiros), abrindo nova etapa da audiência pública sobre o tema, num prazo de 180 dias.
A decisão aconteceu após o diretor-geral da agência, Rafael Vitale, alegar fragilidades nos procedimentos adotados para elaboração e apresentação da proposta de norma que foi apresentada pelo diretor Davi Barreto, além de críticas ao conteúdo. Houve um empate entre a proposta de Vitale de rever o processo e a de Barreto para decidir por uma nova regra sobre o tema. A do diretor-geral venceu por causa do voto qualificado dele. A reunião completa está disponível neste link.
Na exposição do seu voto, o diretor-geral expôs a guerra interna que tem sido travada na tramitação desse processo. Uma maior abertura do mercado para maior competição é defendida por parte dos técnicos da agência. Mas a proposta é bombardeada pelas empresas do setor, que têm trabalhado contra o modelo, alegando que ele traz insegurança para os passageiros.
Vitale afirmou que servidores, em especial a ex-superintendente da área de passageiros, Sylvia Vasconcellos, tentaram constrangê-lo durante o processo de tramitação do relatório final da proposta de regulamentação do setor.
“Da noite para o dia a superintendente abriu uma nota técnica e conduziu sozinha a conclusão da audiência [pública]. Soa mais como um ato de repúdio e deslealdade institucional, tendo o único objetivo de constranger a diretoria colegiada recém-nomeada”, afirmou Vitale, lembrando que a atitude foi tomada após ela ser comunicada que seria substituída.
Vitale argumentou que os encaminhamentos dados pela ex-superintendente criaram interferências na tramitação do processo, o que poderia trazer problemas relacionados à lisura.
“O processo do marco regulatório foi reaberto no dia 29 de julho, às 19h08. A minuta de resolução foi assinada em 30 de julho, às 11h20. A nota técnica foi assinada no mesmo dia, às 12h08. O relatório de encaminhamento à diretoria foi assinado um minuto depois. E, por fim, a minuta de deliberação foi assinada também no dia 30 de julho, no mesmo horário, às 12h09. E o processo foi remetido ao apoio do gabinete um minuto depois”, ressaltou.
Interesses
A regulamentação do Trip interferiu diretamente na nomeação dos novos diretores da agência. Até o ano passado, o escolhido do governo para ocupar o cargo de diretor-geral era o diretor Davi Barreto, que vinha relatando o processo do Trip, apoiando os servidores que defendem a maior abertura do mercado, o que também era defendido pelo ministro da Infraestrutura, Tarcísio de Freitas, e pelos órgãos de defesa da concorrência do Ministério da Economia.
Um grupo de senadores ligados às empresas do setor de transporte rodoviário de passageiros embarreirou a nomeação de Barreto e outros diretores da agência até que o governo trocasse os nomes, o que ocorreu neste ano. O nome de Davi foi trocado pelo de Vitale. Os senadores também indicaram o nome de Guilherme Sampaio, que trabalhava na CNT (Confederação Nacional do Transporte).
A chegada dos novos diretores na ANTT trouxe um clima de insatisfação em parte do órgão. Em agosto deste ano, servidores entraram com uma ADI (Ação Direta de Inconstitucionalidade) no STF (Supremo Tribunal Federal) contra a nomeação de Guilherme Sampaio, apontando conflito de interesses, uma vez que, até dois dias antes de sua indicação, ele ainda era do quadro da CNT.
Em sua fala, o diretor-geral tratou do assunto da exoneração dos servidores da Supas afirmando que, na época, chegou a ser pressionado internamente a manter a superintendente no cargo. Além disso, acusou os servidores de vazamentos no intuito de criar “um cunho” político para a sua gestão.
“Fui informado, em tom do que defino como verdadeira chantagem, de que, caso eu exonerasse a superintendente, haveria uma debandada da Supas. Diferentemente da ameaça, somente dois ou três pediram exoneração, registrando em ofício que havia interferência política na agência. Não satisfeitos, vazaram o ofício à imprensa, na tentativa de imprimir uma narrativa mentirosa de que havia interesse no comando da Supas. A estratégia não deu certo”, disse.
Parecer
Antes do pedido de encaminhamento do diretor-geral, o relator, diretor Davi Barreto, apresentou o seu parecer favorável à norma. Em seu voto, de mais de 500 páginas, Barreto informou que fez uma análise sobre todos os incisos e suas razões para cada dispositivo apresentado na proposta do novo Marco Regulatório. Para o diretor, o marco tenta adequar os normativos da agência à legislação aprovada para o Trip pelo Congresso em 2014, de forma a reduzir as barreiras de entrada.
“O ponto mais importante aqui é a migração do sistema cartorial, que institui barreiras de entrada ao serviço, por um sistema de avaliação do desempenho, com mecanismos efetivos de monitoração e avaliação que possibilitem a saída de operadores que não atendam às condições mínimas de serviço”, disse.
Ao todo, a proposta contém 209 artigos distribuídos em nove capítulos. Eles tratam da habilitação; cadastro; autorização; regras de viagem; relação com usuários; previsão de indicadores e avaliação de desempenho; aspectos de ordem econômica; relação com os órgãos de defesa da concorrência; disposições transitórias e disposições finais.
Divergências
Durante a fase de discussões, Barreto tentou rebater afirmações feitas por Vitale de falhas no processo de tramitação da proposta. Argumentou ainda contra outras questões apontadas pelo diretor-geral, como a falta de análises sobre os apontamentos feitos pelo TCU (Tribunal de Contas da União) durante Reunião Participativa 5/2021 da ANTT, em setembro deste ano.
“De fato, este é um dos processos mais polêmicos que já passaram pela agência. Mas não vi nenhuma irregularidade formal. Todos os pontos do processo de participação social foram seguidos. As manifestações da nota técnica da Supas e na reunião participativa foram analisadas no voto. Algumas foram acatadas ou não”, argumentou Barreto, qualificando a proposta como a “mais debatida da história da agência”.
Barreto também refutou a tese apontada por Vitale de que, por ter sido bastante alterada ao longo de sua tramitação, a nova minuta deveria ser posta em nova audiência pública.
“Em que medida elementos adicionais dirigidos ao longo do processo de controle social, seja por sugestão da empresa, associação ou servidor, podem gerar um dever a determinado agente de alterar a minuta? É muito comum as decisões da agência serem alteradas após a audiência pública. Vide as concessões de infraestrutura”, afirmou.
Vitale voltou a argumentar que o encaminhamento pela revisão da minuta acontece pelo questionamento acerca do processo de tramitação. O objetivo é fazer com que a proposta seja colocada em audiência pública para que seja mantida a lisura do processo e garantir a segurança jurídica, segundo ele.
Votação
O voto de encaminhamento de Vitale foi acompanhado pelo diretor Guilherme Sampaio. Já o parecer de Barreto teve voto favorável do diretor Fábio Rogério Carvalho. Como a agência está sem um dos cinco diretores por não ter havido convocação do substituto, Vitale deu voto qualificado e sua proposta saiu vencedora.
Desde outubro, Barreto vem cobrando a nomeação do diretor substituto para preencher a vaga de Alexandre Porto, que renunciou ao mandato. O primeiro da lista é o superintendente Murshed Menezes. Mas Vitale se recusou a fazer a nomeação, alegando haver uma divergência de entendimento sobre se é dever ou não da diretoria nomear o substituto, conforme mostrou a edição 1.146 da Agência iNFRA.
O diretor-geral também fez uma nova lista para a troca dos atuais substitutos, o que vai acontecer no fim deste ano por causa do prazo, sugerindo ao governo que o atual superintendente da Supas, indicado por ele, fosse o primeiro da lista. Os outros diretores não concordaram e a lista foi modificada.
Se a deliberação do Trip for feita após o novo período de audiência previsto, a diretoria atual já estará mudada. Além de um novo diretor, que poderá ser escolhido para a vaga de Alexandre Porto, o diretor Fábio Rogério Carvalho também deverá deixar o cargo em fevereiro, com o fim de seu mandato.