Abertura do mercado para a alta tensão expõe divergências entre geradoras e distribuidoras

Roberto Rockmann*

No contexto da maior abertura da história do mercado de energia, a partir de 1° de janeiro de 2024, quando todos os consumidores ligados em alta tensão poderão escolher seu fornecedor, geradoras temem a falta de isonomia com as distribuidoras na competição por não terem tanto acesso aos dados dos consumidores.

Já as distribuidoras receiam o aumento de custos com o potencial maior número de desligamentos e a suspensão de fornecimento, e mais inadimplência com a expansão do número de consumidores livres.

Esses são alguns dos pontos em destaque, segundo a análise das cerca de 50 contribuições da CP (Consulta Pública) 28/2023, concluída em 13 de outubro, pela ANEEL (Agência Nacional de Energia Elétrica). A CP se refere ao aprimoramento das regras do comercializador varejista, figura regulatória pela qual as novas migrações para o mercado livre a partir de janeiro serão feitas.

Eletrobras quer competição isonômica 
Maior geradora e transmissora do país, a Eletrobras defende o estabelecimento de mecanismos que criem tratamento igual entre todos os agentes. Para a empresa, é necessário impedir o privilégio a comercializadores varejistas que integrem o mesmo grupo econômico de distribuidoras com informações sobre consumidores que pretendem ingressar no mercado livre. Além de acesso aos dados, a empresa teme a criação de barreiras “burocráticas ou mesmo físicas”.

Nesse contexto, a Eletrobras propõe como alternativas regulatórias: 1) a impossibilidade de migração dos consumidores cativos para representantes varejistas que estejam vinculados a um grupo econômico com participação na respectiva distribuidora; 2) a intensificação do processo de fiscalização por parte da ANEEL, visando mitigar e punir práticas não isonômicas identificadas ao longo do processo de migração. 

Em sua contribuição, a Abrage (Associação Brasileira das Geradoras de Energia Elétrica) destaca que a ANEEL deveria “emitir comando de modo que não haja uso privilegiado de dados do consumidor em prol das distribuidoras”. Ainda ressalta que a agência deveria fortalecer a fiscalização e aprimorar o canal de denúncias.

Na nota técnica que embasa a CP e no voto do relator, diretor Ricardo Tilli, é proposto que a CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) seja a centralizadora dos dados dos agentes. Para a Abraceel (Associação Brasileira das Comercializadoras de Energia Elétrica), esse é o primeiro passo para a criação de um ambiente de open energy em que o consumidor passaria a ter o controle dos seus dados, mas que será fundamental avançar mais, por exemplo, prevendo “a disponibilização dos dados individualizados para os agentes varejistas.

Para as comercializadoras, falta ainda definir também os dados que a CCEE centralizaria: “Sugerimos a inclusão do histórico de notificações de suspensão de fornecimento e do histórico de notificações de impossibilidade de suspensão do fornecimento, com motivação expressa”.

O tema da concorrência e do acesso a dados ganha dimensão com a abertura de 1º de janeiro, quando todos os consumidores ligados à alta tensão poderão se tornar livres. Apenas no primeiro mês de 2024, segundo dados da ANEEL, deverão ser mais de 2.100 migrações, maior número da história. Estudo da CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica) estima que 72 mil consumidores poderão migrar para o mercado livre, que hoje reúne pouco mais de dez mil empresas.
 
Receio com a inadimplência
A expansão do mercado livre e o aumento das negociações trazem outro receio: aumento de desligamentos e suspensão de fornecimento com elevação da inadimplência.  

As distribuidoras estão atentas a isso, por temerem “impacto significativo” de custos em razão de demandas de suspensão e religação solicitadas, em volume potencialmente elevado pelo grande aumento do mercado livre com o ingresso de novos clientes, segundo a contribuição da Energisa.

Já a EDP propõe a remuneração, por parte do comercializador varejista, pela suspensão do fornecimento, “de forma a cobrir os custos deste serviço, sem que ocorram repasses aos demais consumidores via tarifa.” 

A consultoria Thymos sugere a criação de um fundo de garantias de contratos regulados e de uso do sistema de transmissão, para que os comercializadores varejistas sejam protegidos de eventual inadimplência. “A participação neste fundo seria opcional ao agente varejista, mediante atendimento às regras e procedimentos a serem definidos pela CCEE.”

As geradoras também estão atentas a esse ponto. Uma preocupação é a eventual demora, por parte do judiciário, em analisar pleitos de não desligamento, um fator alheio à governança do setor elétrico. “Mesmo que num primeiro momento os efeitos decorrentes da morosidade supracitada estejam restritos ao representante varejista, as consequências podem ser sistêmicas no caso de uma comercializadora entrar em default”, destaca a Eletrobras.

Supridor de última instância
A figura do comercializador varejista será responsável por todas as operações e obrigações dos consumidores no mercado livre. Nesse contexto, alguns agentes veem como necessária a criação de mecanismos de assistência ao consumidor que, por qualquer motivo, perca o seu comercializador varejista.

Na crise de gás da Europa em 2022, muitas comercializadoras fecharam as portas pelas oscilações de preço, o que deixou consumidores desprotegidos. Nesse contexto, ganha dimensão a figura do Supridor de Última Instância (SUI), que teria a responsabilidade de atendimento dos consumidores entre a perda da antiga representação do seu comercializador varejista e a busca por um novo. A figura ainda não está regulamentada no Brasil.

Para a Enel, essa atividade, se criada, deveria ser assumida prioritariamente pelas distribuidoras, “sem prejuízo de, no futuro, ser designada a outros agentes de forma concorrencial”.

Para a Neoenergia, os custos e riscos do Supridor de Última Instância precisariam estar “completamente separados dos custos e riscos da distribuidora”, já que isto poderia “representar custos não previstos e indevidos de serem suportados pelo mercado cativo que permaneceu na distribuidora”.

Detalhamento no início de 2024 
A ANEEL poderá definir o detalhamento das medidas apenas no início do próximo ano. Em reunião na semana passada, a agência deliberou que a agenda regulatória 2024-2025 será discutida em audiência pública nessa quarta-feira (01). O aperfeiçoamento das regras do comercializador varejista – figura pela qual as migrações para o mercado livre da alta tensão serão feitas – está no primeiro lugar da agenda.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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