Amanda Pupo e Dimmi Amora, da Agência iNFRA
Diferenças inconciliáveis entre o governo federal e a Vale frustraram a tentativa de um acordo bilionário de repactuação dos contratos de concessão das ferrovias Vitória a Minas e Carajás, que foram renovados pelo governo passado até 2057 e viraram objeto de disputa na atual gestão, insatisfeita com as bases e os valores do negócio fechado em 2020.
Após um início de discussões tumultuado em 2023, o governo e a mineradora acertaram ano passado ir à SecexConsenso do TCU (Tribunal de Contas da União) para repactuar os contratos. As tratativas aconteciam desde março deste ano, mas terminaram nesta quinta-feira (28) sem solução. Além da repercussão para as duas ferrovias operadas pela Vale – com indicativo de que o assunto pode parar na Justiça –, a falta de consenso traz implicações em cascata para o programa ferroviário do governo Lula.
Viria desta repactuação a maior parcela de recursos para preencher o que é classificado como “gap” de viabilidade de novas concessões de ferrovias, muito caras para o setor privado entrar sem ajuda do estado. O Ministério dos Transportes esperava mais R$ 7 bilhões nesse acordo com a Vale, além dos R$ 4 bilhões que já haviam sido antecipados pela mineradora, mas tinham caído direto na conta do Tesouro no fim de 2024.
Os impactos imediatos se concentram no projeto de concessão do corredor Fico-Fiol. Pelo que havia sido projetado até o momento, a Vale seria, em três frentes, peça-chave para viabilizar a concessão da ferrovia planejada para carregar a produção agrícola do Mato Grosso ao litoral de Ilhéus, na Bahia.
Além de o dinheiro da repactuação eventualmente ser usado numa conta vinculada da futura concessão, o projeto programado para ir a leilão no próximo ano depende da Vale também porque é dela a responsabilidade de executar, como contrapartida pela renovação, o trecho 1 da Fico (Ferrovia de Integração Centro-Oeste), Mara Rosa (GO) e Água Boa (MT), livrando o futuro operador desse investimento, calculado orçamentariamente em R$ 2,7 bilhões.
Essa obrigação, negociada na renovação de 2020, continua prevista para execução pela Vale. Mas as tratativas frustradas da repactuação mostraram que há um problema com o empreendimento. Segundo fontes, um dos motivos que impediram o acordo no TCU foi a Vale ter tentado sair da execução das obras de 80 quilômetros da Fico por entender que os prazos previstos não poderão ser cumpridos por exigências ambientais. Se o trecho não for garantido, a concessão do corredor Fico-Fiol ganha mais um fator de incerteza.
Além disso, o governo apostava suas fichas na mineradora para resolver o atual problema com a Fiol 1, concedida para conectar Ilhéus (BA) e Caetité (BA) e também essencial para manter a Fico-Fiol de pé, mas abandonada pela Bamin, que arrematou o ativo num leilão em 2021. Como mostrou a Agência iNFRA, a Vale e o governo conversavam para tentar encontrar um operador para o novo porto de Ilhéus e assim convencer a mineradora a assumir a Fiol 1. Mas, sem consenso nas repactuações da EFC (Estrada de Ferro Carajás) e EFVM (Estrada de Ferro Vitória a Minas), a solução fica mais improvável.
Embora o governo possa estudar outras soluções e fontes de recursos – inclusive de repactuações de outras ferrovias, como da MRS e da Rumo –, a forma como a Vale estava encaixada nos planos atuais fará com que ele tenha de voltar à prancheta, potencialmente atrasando o objetivo de voltar a leiloar ferrovias no Brasil. Pesa ainda o fato de as outras repactuações não chegarem no volume de recursos que viria da companhia de mineração.
Além do corredor Fico-Fiol, a repactuação das concessões da Vale também estava ligada a outro projeto previsto para ser licitado no próximo ano, o da EF-118, entre Rio de Janeiro e Espírito Santo. Quando apresentou o projeto em audiência pública, o governo propôs que o ramal entre Anchieta (ES) e Santa Leopoldina fosse executado pela mineradora por meio do contrato da EFVM.
Nos últimos tempos, o Ministério dos Transportes já havia desistido de colocar a Vale na execução do empreendimento, mas tinha a pretensão de viabilizar o trecho final com o dinheiro das repactuações, seja da mineradora ou de outras concessionárias.
“Precificação justa”
Ao informar em nota que a comissão na SecexConsenso não chegou a um acordo, o Ministério dos Transportes disse nesta quinta-feira (28) que caberá à pasta agora adotar “medidas administrativas e judiciais para garantir a precificação justa dos ativos públicos federais concedidos à Vale”. “Com base em avaliações técnicas de precificação do ativo, verificou-se sub-avaliação, que provocou dano ao erário gerado pelas duas renovações antecipadas de contratos”, disse o ministério comandado por Renan Filho, que representou o Executivo nas negociações. A ANTT (Agência Nacional de Transportes Terrestres) também participou.
Além do fator ambiental na construção da Fico, o cálculo sobre a base de ativos das duas ferrovias foi o outro ponto sobre o qual a concessionária e o governo não chegaram a um consenso. O valor foi apresentado pelas concessionárias de ferrovias nas renovações antecipadas feitas na gestão passada, e o TCU indicou que elas deveriam ser revistas pela agência reguladora. Com prazo enxuto para negociar, a ANTT precisou se fiar num cálculo “mais seguro” sobre a base de ativos, entendendo que a concessionária deveria pagar mais do que o acertado em 2020, mas a Vale não concordou com os números.
A mineradora se manifestou nesta quinta apenas por um fato relevante ao mercado. Nele, disse estar “adimplente” e que adotará as medidas necessárias para “assegurar seus direitos e responsabilidades”, além de afirmar que permanece comprometida com as “bases gerais” para a repactuação estabelecidas no acordo fechado em dezembro do ano passado – e pelo qual houve o adiantamento de R$ 4 bilhões à União. Os aditivos assinados para a abertura do processo de negociação definem que o valor será devolvido caso não haja acordo até 17 de dezembro. O dinheiro retornaria à Vale por meio de descontos nos valores de outorga devidos por ela.
Já a falta de consenso envolvendo a Fico diz respeito a um trecho de 80 quilômetros da ferrovia próximo a uma área indígena. Segundo fontes, a obra já havia obtido a LI (Licença de Instalação), mas a autorização estava suspensa aguardando o chamado PBA-CI (Componente Indígena do Plano Básico Ambiental). Embora a Infra S.A., que é responsável pelo licenciamento, tivesse um prazo para conseguir a liberação, a Vale avaliou que a licença não sairia no período estimado.
As negociações vinham ruins há algum tempo, com a Vale querendo devolver o trecho da Fico e pagar uma indenização de R$ 1,3 bilhão para isso. Mas várias áreas do governo indicavam serem contrárias, alegando que isso criaria grande dificuldade política para gerir a implementação da obra.
Mas, de acordo com uma fonte a par das negociações, o governo chegou a aceitar reequilibrar o contrato para abarcar os custos a mais que a Vale alegava que teria com essa parte do projeto e também para dar um tempo maior de construção. No entanto, os integrantes do governo ficaram perplexos com a apresentação, no último dia de negociação, de um preço considerado exorbitante para esse reequilíbrio, que foi superior a todo o custo orçado da obra.
Com isso, o clima das negociações foi descrito por envolvidos como negativo, com a mineradora classificada como inflexível diante das demandas mais importantes do governo. Do outro lado, desde o início das tratativas, a companhia se sente incomodada com a condução pelo Executivo, que chegou a indicar que a Vale deveria dezenas de bilhões pelas renovações fechadas em 2020, número que foi reduzindo com o avançar das conversas. Além disso, a governança da companhia também tornava o debate mais burocrático, já que qualquer abertura de negociação era de difícil aprovação nas instâncias internas da empresa.








