Entrevista: agenda setorial a ser superada nos próximos meses é pesada, diz Barroso, da PSR

Roberto Rockmann*

Há uma pesada agenda setorial a ser superada nos próximos meses na energia elétrica, na visão do presidente da consultoria PSR, Luiz Augusto Barroso. Além da renovação das concessões dos ativos de distribuição, geração e transmissão, há o empoderamento do consumidor com a geração distribuída solar, o crescimento da geração renovável a custo marginal zero e não despachável (não centralizada), o que muda a lógica das reformas dos anos 1990, segundo ele.

Todos esses nós precisarão ser desatados nos próximos meses. Em entrevista à Agência iNFRA, Barroso disse que tudo indica que no futuro teremos energia a preços muito baixos, que não viabilizariam nova oferta com os serviços que esse sistema precisa.

“Essa oferta possivelmente viria remunerada por encargos, o que torna a tarifa muito cara para o consumidor. A permanecer assim, só se salvarão arranjos capazes de evitar o pagamento dos custos desse legado de ineficiências. Isso aponta na direção de mudanças regulatórias urgentes, incluindo trabalhar nas consequências da possível inviabilidade do modelo atual”, destaca. A seguir os principais trechos da entrevista:
 
Agência INFRA: Com três meses de governo e com secretário executivo recém nomeado, o governo precisa dar um recado ao setor sobre o que quer? Esse vácuo não amplia tensões?
Luiz Augusto Barroso:  De fato, há muitos temas que demandam tratamento imediato. Além disto, o país precisa de uma visão estratégica por parte do governo, que norteie e gere confiança para o ambiente de investimentos. Na ausência deste direcionamento por parte do governo, é natural e legitimo que o setor se auto articule, com diferentes grupos lutando por suas pautas individuais. Como consequência desta fragmentação das ações individuais, o resultado para o bem-estar da sociedade provavelmente será bem abaixo do ótimo.

O novo modelo do setor elétrico celebra em março de 2024 duas décadas de existência. A reforma é discutida há quase dez anos, mas não avança. A modernização regulatória continuará atrasada?
A modernização não é um botão que, ao ser apertado, transformará o setor em “moderno” em 24 horas. Ela é um processo, um conjunto de ações ao longo do tempo centrado em uma visão de futuro, baseado em princípios, e que requer a discussão de temas complexos.

O setor de 2023 é bem diferente do de 2004. Agora há novos desafios que precisam ser equacionados com urgência, como o empoderamento do consumidor com a geração distribuída, o crescimento da geração renovável a custo marginal zero e não despachável, o que muda a lógica das reformas dos anos 1990.

O Brasil implementou com muito atraso elementos pensados há décadas. Temos que agora correr contra o atraso, mas precisamos também de uma direção. Em média, há uma necessidade de reajuste de um modelo regulatório a cada cinco ou dez anos, quando a tecnologia altera as bases conceituais.

No entanto, quanto mais tempo se leva para fazer os reajustes, mais os problemas se acumulam, criando mais legados, ou “heranças”, mais efeitos colaterais e, com isso, leva mais tempo para melhorar o setor, criando um “círculo vicioso” de atrasos e complexidades que é ruim para todos.

Um acórdão do TCU de 2015 aponta que o governo teria de anunciar com três anos de antecedência uma solução para as concessões vincendas, para evitar repetições de problemas anteriores, como os vistos em 2012, com a MP 579. Esse prazo venceu em maio de 2022 e com um acordo com o governo foi ampliado em sete meses. O TCU pode ampliar a pressão sobre uma decisão?
Existe uma grande preocupação com a incerteza sobre essas renovações, pois quando os prazos das outorgas se aproximam do fim, passam a afetar as fontes de financiamento, elevando os riscos envolvidos e, consequentemente, o custo de capital, o que é ruim para os consumidores finais.

Esse cenário é ainda mais complexo para o segmento de distribuição, cujas concessões precisam investir continuamente, independente do prazo da outorga. Essa foi uma preocupação do TCU, buscando evitar decisões intempestivas. Não acredito que o TCU queira interferir e decidir. Creio que quer apenas ouvir do executivo qual será a direção e o porquê, isto é, qual a lógica conceitual do processo de decisão.

No entanto, não decidir é decidir. Este ano é chave para termos um pano de fundo para o tema, devido ao prazo de 18 meses previsto em Lei para que o poder concedente se posicione no caso da Escelsa, a primeira concessão a vencer, em meados de 2025. Ou seja, os 18 meses expiram em janeiro de 2024. Precisamos discutir esse ano para termos algo bem elaborado até lá, reduzindo as incertezas indesejadas, que reduzem valor dos ativos e prejudicam os consumidores.

Há preocupação de que a renovação das concessões seja muito rasa, ou seja, fique apenas em critérios de qualidade e satisfação e não direcionem as distribuidoras a atuarem como DSOs?
Não vejo necessariamente um problema nisso. Os contratos renovados terão vigência de 30 anos. Se vierem muito “amarrados”, sem flexibilidade regulatória, isto pode ser ruim. Além disso, é importante lembrar que muitas concessões têm contratos renovados pela [lei] 12.783, com vigência para além de 2040. Vamos querer conviver por tantos anos com contratos tão distintos? Em suma, ainda que os novos contratos possam vir com diretrizes para modernização, não vejo necessidade de virem com muitos detalhes nessa direção. Deixar espaço para a regulação é importante.

A discussão da renovação das concessões coincide com questões financeiras de algumas distribuidoras. Isso pode afetar o trâmite do processo?
Acho que é possível discutir diretrizes gerais, ao mesmo tempo em que se busca sustentabilidade para as distribuidoras mais complexas. Temos uma regulação robusta, posta em prática há anos para todas as concessões do país, e que gerou resultados bem positivos, com a redução contínua da parcela que fica com as distribuidoras nas tarifas, a chamada Parcela B.

No entanto, representar todas as distribuidoras por modelos econométricos, que é base importante da regulação tarifária, se torna uma missão bastante difícil quando há particularidades extremas em algumas concessões. Esse é o caso de Light e Enel Rio, as concessões mais complexas a serem renovadas no curto prazo, em função de fatores de criminalidade e sociais que atingem cerca de 20% dos consumidores. Esse tema precisa ser mais bem equacionado no modelo de renovação. Entendo que é possível fazer isso sem prejuízo ao modelo geral para as demais concessões.

Há várias judicializações no setor, existentes e potenciais. Como se poderia resolver estas questões?
A judicialização ocorre quando uma das partes não vê como justo o processo decisório do executivo ou regulador. Reduzir isso passa por preparar melhor os quadros do MME e ANEEL para um processo de decisão muito bem qualificado. Igualmente, passa por preparar os agentes para entender que em um processo decisório existem ganhadores e perdedores, e é preciso saber perder dentro de um processo técnico.

Perder uma batalha e explicitar as diferenças é melhor para o projeto de país do que judicializar. Também é importante observar que negociar faz parte do jogo, mas não se pode negociar princípios. Interferir enfraquecendo os poderes e governança do setor, como têm ocorrido com os PDL, é ruim. É importante mostrar aos que querem ser “escolhidos” como vencedores por estes instrumentos “exógenos” que que amanhã o escolhido poderá ser justamente seu concorrente.

O setor pode viver uma crise semelhante ao do início dos anos 1990 diante de tantas tensões e disputas presentes e crescentes?
Tenho preocupações nesse sentido. Para dar um exemplo, tudo indica que no futuro teremos energia a preços muito baixos, que não viabilizam nova oferta com os serviços que esse sistema precisa.Essa oferta possivelmente viria remunerada por encargos, que torna a tarifa muito cara para o consumidor. A permanecer assim, só se salvarão arranjos capazes de evitar o pagamento dos custos desse legado de ineficiências. Isso aponta na direção de mudanças regulatórias urgentes, incluindo trabalhar nas consequências da possível inviabilidade do modelo atual.

E o hidrogênio verde, é sonho ou ficção? O Brasil pode se dar bem mesmo?
Há um forte debate global sobre se o hidrogênio verde é hype ou hope. Abstraindo desta discussão, e supondo que é hope, ou seja, esperança, o Brasil precisará atestar conformidade da renovabilidade de energia que produz o hidrogênio verde com critérios sendo definidos pelos mercados compradores.

A União Europeia, principal mercado consumidor para o Brasil, em fevereiro de 2023, publicou dois atos importantes sobre esta certificação de energia, e a Alemanha está conduzindo um leilão global de hidrogênio.

E aqui tenho uma preocupação: a construção das térmicas a gás da lei da capitalização da Eletrobras, com produção inflexível, aumentam as emissões da matriz energética nacional, sobretudo no Nordeste, região onde os investimentos de hidrogênio verde estão sendo planejados. Em nossas análises, esse aumento de emissão pode dificultar a atratividade do Brasil para a produção de hidrogênio verde.

*Roberto Rockmann é escritor e jornalista. Coautor do livro “Curto-Circuito, quando o Brasil quase ficou às escuras” e produtor do podcast quinzenal “Giro Energia” sobre o setor elétrico. Organizou em 2018 o livro de 20 anos do mercado livre de energia elétrica, editado pela CCEE (Câmara de Comercialização de Energia Elétrica), além de vários outros livros e trabalhos premiados.

As opiniões dos autores não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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