iNFRADebate: 2022 e os desafios nas licitações e contratos públicos – customizar leilões e produzir dados empíricos sobre riscos¹

Mauricio Portugal Ribeiro²

O primeiro mês do ano é sempre de retrospectivas e de planejamento do novo ciclo. Nesse contexto, me peguei pensando sobre o que seria um feliz 2022 no mundo das concessões e PPPs.

Eu vejo vários espaços para aprimoramento tanto na nossa teoria, quanto na nossa prática em torno dos contratos de concessão e PPP, mas queria focar em dois temas nos quais eu gostaria de ver evoluções neste ano: os leilões de concessão e PPP e a teoria e prática em torno da distribuição de riscos desses contratos.

A afirmação de Paul Milgrom³ no P3C⁴ de 2021 de que não faz sentido ter um modelo uniforme de leilão para todas as concessões e PPPs lançou um novo desafio para os agentes públicos e para os especialistas que os assessoram. No Brasil, praticamente todas as licitações de concessão e PPP utilizam o mesmo modelo de leilão: em duas fases, a primeira em envelope fechado, a segunda em viva-voz, sempre revelando o preço de reserva do poder concedente e usando um raio máximo de 20% do melhor preço para definir os participantes que passam para a segunda fase.

Em que casos devemos usar leilões em duas fases? Leilões em duas fases começaram a ser usados entre nós no setor elétrico no início dos anos 2000 e principalmente após 2010 se tornaram a modelagem padrão dos leilões entre nós. Em que casos devemos usar leilões em uma fase, com envelopes fechados? Há evidência empírica ou teórica da superioridade do leilão em duas fases? 

Em que casos devemos desistir de ter ou de revelar preço de reserva? O efeito âncora da revelação de preços de reserva é relevante em que circunstâncias? 

Em que casos é justificável o uso de arranjos que incentivam a atração de novos participantes para a licitação, mesmo com o risco de reduzir o valor de pagamento ao poder público, aumentar o pagamento público ao concessionário ou ter uma tarifa ao usuário mais alta do que a que poderíamos obter sem esses arranjos? Estou me referindo a arranjos que não permitem que a maior proposta de preço ganhe a licitação, como por exemplo o Leilão de Vickrey, ou a licitação por preço médio, que tem sido usada no setor de rodovias na Colômbia, ou ainda, em licitações que envolvem vários projetos, a proibição de empresas ganharem mais de um lote ou de ganharem determinada combinação de lotes, mesmo que ofereçam a melhor proposta para alguns desses lotes. Em que casos esses arranjos devem ser utilizados? Note-se que já usamos esse tipo de arranjo no Brasil no setor aeroportuário e em algumas licitações de grandes obras públicas.

Será que a modelagem do projeto afeta a eficiência do leilão? Por exemplo, o sistema “filé com osso” tão utilizado ultimamente pelo Governo Federal afeta negativamente a eficiência do leilão? 

Mais expertise na modelagem dos nossos leilões implicará também em análise mais atenta dos nossos leilões passados, coisa que até aqui não tem ocorrido entre nós. Será que na licitação da concessão da CEDAE, o poder público tinha condições de obter valores de outorga maiores se o leilão fosse estruturado de outra forma? E se os leilões dos 4 lotes da CEDAE fossem simultâneos, mas com prazo para a apresentação de propostas por várias horas ou alguns dias? Será que um leilão aberto por mais tempo e simultâneo para os 4 lotes poderia resultar em melhores propostas?

Ainda no caso da concessão da CEDAE, será que foi adequada a ordem do leilão de cada um dos 4 lotes? Será que o lote 3, que terminou dando vazio no primeiro leilão e foi licitado novamente posteriormente, não devia ter sido o primeiro lote a ser licitado no primeiro leilão? E as recentes licitações de 5G? Quais eram os arranjos alternativos que poderiam ter sido adotados para essas licitações? Será que não havia arranjos mais eficientes para a estruturação desses leilões? 

Enfim, é preciso usar mais expertise – a expertise desenvolvida em torno da teoria e prática dos leilões – para customizar os leilões de concessão e PPP no Brasil. Esse é o desafio, esse é o chamado para os bons agentes públicos empurrarem as fronteiras das nossas práticas, na direção do desenvolvimento de modelos de leilão mais eficientes, mais customizados em vista das particularidades de cada projeto. Felizmente, alguns agentes públicos já entenderam o chamado e já estão trabalhando para atendê-lo. Estou realmente curioso para saber onde isso vai nos levar neste ano de 2022.

Identifiquei que há uma certa distância entre o conhecimento sobre teoria e prática dos leilões e a atividade de modelagem de projetos no Brasil. As entidades que modelam projetos no Brasil têm pouco conhecimento sobre o tema e muitas vezes sequer sabem em que situações um projeto poderia se beneficiar de expertise nessa área. Por isso, pretendo, pessoalmente, dedicar em 2022 algum tempo para contribuir para construir a ponte entre os especialistas na área de teoria dos leilões com experiência prática de modelagem de leilões e agentes públicos e seus consultores interessados em usar essa expertise. Algumas horas do trabalho pro bono do Portugal Ribeiro Advogados e meu estarão focadas nisso.

O segundo espaço para aperfeiçoamento é o tratamento dos temas em torno dos riscos e da distribuição de riscos em projetos de infraestrutura. 

Precisamos atingir o rigor no tratamento desse tema que se encontra, por exemplo, nos trabalhos de Douglas W. Hubbard⁵.  É verdade que seus trabalhos focam mais em gestão que em distribuição de riscos⁶, mas me parece que o seu aporte é muito útil para os que estão preocupados com distribuição de riscos em contratos públicos em geral, mas particularmente nos de longo prazo, como concessões e PPPs. Os trabalhos de Hubbard são uma exortação ao uso de metodologias quantitativas, com base em dados empíricos e, em minha opinião, eles já se tornaram também emblemáticos em relação ao rigor conceitual no tratamento do tema. Por isso, eles podem nos ajudar a uniformizar a linguagem e disseminar o conhecimento básico sobre gestão de riscos, o que certamente nos ajudará muito nas discussões sobre distribuição de riscos.

Mas o mais importante que se pode extrair da leitura de Hubbard é a percepção de que precisamos começar a coletar e sistematizar dados empíricos sobre os eventos gravosos que afetam a execução dos contratos públicos em geral e particularmente de concessão e PPP. Precisamos evoluir na direção de termos clareza quantitativa sobre o que estamos fazendo quando distribuímos riscos. 

Atualmente, o trabalho mais avançado entre nós sobre distribuição de riscos em contratos públicos é o estudo, comissionado pela ABCON – Associação Brasileira das Concessionárias Privadas de Serviços Públicos de Água e Esgoto, sobre melhores práticas na distribuição de riscos em contratos de concessão e PPP no setor de saneamento, intitulado Regras Padronizadas Sobre Distribuição de Riscos, Equilíbrio Econômico-Financeiro e Modelos Regulatórios⁷.  O Portugal Ribeiro Advogados é um dos autores desse trabalho, que vou chamar aqui de “Estudo ABCON-Portugal Ribeiro-Pezco”.

Nesse estudo, usamos como critério para atribuição de riscos às concessionárias a sua capacidade de controle sobre a ocorrência dos eventos gravosos (capacidade de prevenir e de limitar os efeitos do evento). Apesar desse estudo ser, como eu disse, o trabalho mais avançado entre nós sobre esse tema, é preciso reconhecer que ele não realizou qualquer abordagem empírico-quantitativa. A análise que dá origem às regras de distribuição de riscos sugeridas se desenvolve no plano qualitativo. 

Sobre o alicerce que o Estudo ABCON-Portugal Ribeiro-Pezco representa, é preciso, dar o próximo passo, que seria agregar informações com base em dados empíricos sobre severidade e distribuição de probabilidades de ocorrência dos eventos gravosos. Se o controle pelo concessionário é o ponto de partida para um tratamento minimamente consistente da distribuição dos riscos, os dados sobre severidade e distribuição de probabilidades são condição sine qua non para sabermos o que de fato estamos distribuindo e para viabilizar arranjos mais sofisticados de compartilhamento de riscos entre as partes. 

Note-se que até aqui a precificação de riscos em projetos de concessão e PPP foi feita pelo uso do CAPM – Capital Asset Pricing Model que, malgrado as deficiências já notadas pela literatura, continua sendo uma ferramenta central para avaliar a relação do conjunto de riscos de um projeto e do retorno, da rentabilidade que um ente privado pode esperar do projeto. Por outro lado, para tratar de riscos de forma desagregada no momento da modelagem da distribuição de riscos do contrato de concessão, para quantificar os riscos e eventualmente estabelecer arranjos mais sofisticados de compartilhamento, é preciso usar outras metodologias talvez menos conhecidas, mas já disponíveis há décadas, como por exemplo, o Método de Monte Carlo.

Enfim, é preciso produzir dados empíricos e dar tratamento estatístico, matemático aos achados da experiência. Já há bastante informação sobre os eventos gravosos relativos a cada risco, frequência e severidade nos pleitos de reequilíbrio realizados pelas concessionárias perante as agências reguladoras. Imaginem por exemplo se a ANTT, a ANAC e ANEEL divulgassem de maneira sistemática toda a base de dados de pleitos de reequilíbrio e decisões sobre eles. Isso nos traria informação ao menos sobre os eventos cujo risco os concessionários entenderam que foi atribuído ao poder concedente⁸ e que impactaram as concessões nos últimos 20 anos (no caso da ANTT e da ANEEL) e nos últimos 10 anos no caso da ANAC, e sobre a sua frequência e severidade. Os dados para isso estão em ampla medida disponíveis nos processos administrativos conduzidos por essas agências. É preciso dar transparência a esses dados, e criar incentivos para a sua sistematização e análise. Essa é uma fronteira do conhecimento sobre os riscos de projetos de infraestrutura no Brasil que precisamos expandir. E as agências reguladoras, particularmente as federais, têm um papel central nisso. É uma evolução que deveriam fazer. 

Como acho que ainda há um caminho longo para convencer as agências reguladoras de tomarem para si esse desafio, o meu foco durante 2022 será em um tema bem mais trivial, mas ainda assim fonte de risco relevante para os concessionários. Estou montando, juntamente com Eduardo Jordão e Felipe Sande, uma iniciativa para produção de dados empíricos sobre reajustes de contratos de concessão e PPP. Como as nossas agências reguladoras, principalmente as menores, ainda são bastante opacas, o sucesso dessas iniciativas depende de conseguirmos montar uma rede de informações que não dependa das próprias agências. Esse é o desafio que já estamos enfrentando, por meio da realização de parcerias com aqueles que podem nos fornecer as informações necessárias ao trabalho. Falarei mais sobre isso oportunamente quando tiver clareza sobre os resultados desse trabalho.

Enfim, que os ventos de 2022 nos permitam evoluir! Que o chamado de Paul Milgrom nos incentive a usar a teoria dos leilões para aumentar a eficiência dos nossos leilões de concessão e PPP, aprendendo a cada passo com a necessária experimentação de novos modelos! E que possamos avançar alguns passos na direção de produzir dados empíricos sobre a execução dos nossos contratos de concessão e PPP. 

Isso seria não mais que um Feliz Ano Novo em atos e fatos no mundo das licitações e contratos públicos.

1) Eu queria agradecer a Eduardo Jordão, Felipe Sande e Thiago Araújo pela leitura deste artigo e sugestões de conteúdo e forma. Quaisquer equívocos são de minha exclusiva responsabilidade.

2) Especialista na estruturação e regulação de projetos de infraestrutura, autor de vários livros e artigos sobre esse tema, sócio do Portugal Ribeiro Advogados, Mestre em Direito pela Harvard Law School, Ex-professor de Direito de Infraestrutura da FGV-RJ, Professor de Modelos Regulatórios da FGV-Direito-SP e apresentador do Infra em Pauta.

3)Milgrom recebeu o Prêmio Nobel de Economia em 2020 por contribuições no âmbito da teoria e prática dos leilões.

4)Conferência internacional sobre os setores de infraestrutura que organizei juntamente com a Necta e com a B3. Mais informações sobre o P3C podem ser encontradas no seguinte website: https://p3c.com.br/

5) Vide “The Failure of Risk Management – Why its broken and how to fix it”, Wiley, Second Edition, 2020; e “How to Measure Anything: Finding the Value of Intangibles in Business”, Wiley, 2014.

6) Entre nós, há quem não consiga distinguir claramente esses temas. A falta de rigor conceitual e a mistura metodológica leva a ilações que me parecem ter pouca utilidade para evolução da discussão. Um exemplo de texto desse tipo é o “Matriz de riscos e a ilusão da perenidade do passado: precisamos ressignificar o conceito de tempo nas contratações públicas”, de autoria de TEIXEIRA JÚNIOR, Flávio Germano de Sena; NÓBREGA, Marcos e CABRAL, Rodrigo Torres Pimenta, disponível em https://inovecapacitacao.com.br/matriz-de-riscos-e-a-ilusao-da-perenidade-do-passado-precisamos-ressignificar-o-conceito-de-tempo-nas-contratacoes-publicas/

7) Esse estudo está disponível no seguinte website: https://conteudo.abconsindcon.com.br/estudo-regulacao.

8) Não seria possível, contudo, obter por esse meio informação sobre eventos que impactaram as concessões, mas que são risco atribuído nesses contratos ao concessionário.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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