iNFRADebate: A guerra de trincheiras no saneamento

Fernando Bernardi Gallacci*

O governo federal finalmente publicou novos decretos regulamentando a Lei 11.445/2007, com conteúdo que seria, a princípio, vocacionado para complementar o novo marco, veiculado pela Lei 14.026/2020. Acontece que na prática os Decretos 11.466/2023 e 11.467/2023 acabaram por revisitar premissas da reforma regulatória anterior, gerando várias reações combativas, seja mediante reportagens na imprensa, seja com pleitos de suspensão das normas perante o Congresso Nacional, seja ainda por meio da interposição de ADPF 1.055 pelo Partido Novo junto ao STF (Supremo Tribunal Federal). 

A postura do atual governo acabou reforçando os atritos que já estavam em curso desde o início do processo de revisão da legislação de saneamento, deixando claro o momento de guerra de trincheiras no saneamento básico brasileiro. 

Vale esclarecer que a tática de guerra de trincheiras ficou particularmente conhecida durante a Primeira Guerra Mundial, quando os combatentes se entrincheiraram cada qual de um lado, iniciando uma guerra na qual nenhum dos exércitos efetivamente avançava. Lutava-se por pequenos lotes de terra, com ataques exaustivos de uma trincheira para a outra. Ganhava-se uma posição numa semana apenas para perdê-la na semana seguinte. O resultado foi desastroso para a humanidade. 

O debate no saneamento básico brasileiro parece seguir semelhante mazela, com cada assunto sendo tratado como uma trincheira, cada qual com atiradores ferozes, prontos para trazer complexidade na defesa e ataque. Cada caso novo é questionado, com regulações saindo num governo somente para serem revogadas pelo governo seguinte, ou então para serem anuladas pelo Legislativo ou pelo Judiciário. 

Talvez o ponto de superação esteja em discutir aquilo que realmente importa, pensando em um modelo que possa superar as batalhas entrincheiradas, mas permitir o debate do essencial. Embora existam muitos assuntos, há três exemplos que chamam atenção no caso dos decretos. 

O primeiro exemplo diz respeito às críticas da submissão das “normas de referência” da ANA (Agência Nacional de Águas) diante da política pública fixada pelo Ministério das Cidades. Aqui é importante lembrar que a atividade regulatória já devia deferência ao disposto na política pública fixada pelo governo. No saneamento significa dizer que a ANA ou mesmo as outras agências não poderiam decidir por deixar de fomentar a universalização dos serviços, focando apenas em ações voltadas para modicidade tarifária. E isso porque a Lei 11.445/2007 dispôs dos objetivos da política pública nacional de saneamento básico, conferindo ao princípio da universalização importância central para esse tipo de serviço. A regulação precisa atuar dentro da política pública fixada pelo Parlamento, na qual havia delegações ao Poder Executivo para dispor sobre política pública federal do setor, com algumas questões nacionais, citando-se, por exemplo, as metas para redução de perdas. 

O essencial, então, parece ser apenas buscar participar da promulgação das diretrizes federais e acompanhar os normativos que serão veiculados como política pública para o saneamento de forma a, se necessário, questioná-los; lembrando, aliás, que o STF tem julgado algumas demandas em favor da autonomia das agências reguladoras (por exemplo ADIn 6.033), entendendo o papel de Estado que esse tipo de instituição representa.  

O segundo exemplo está ligado à possibilidade de manutenção e regularização das situações precárias de prestação dos serviços em certas localidades (cerca de 20% dos municípios de acordo com os últimos números). Aqui a judicialização parece fazer bem para esclarecer a legalidade de a medida ser veiculada por decreto, haja vista aparente excesso do poder regulamentar da Presidência da República e do confronto do dever de licitar da Constituição e da legislação aplicável. 

Não obstante, também é verdade que o tema deveria ser abordado sob duas outras óticas distintas. De um lado, deve-se pensar em como fazer a regularização vis-à-vis as obrigações de modicidade tarifária e universalização, considerando que os novos decretos autorizam mudanças contratuais e revisões tarifárias para viabilizar a manutenção das situações precárias. A forma de revisar essas situações precisa urgentemente ser objeto de discussão se há desejo genuíno de salvar, ainda que temporariamente, alguns desses casos. De outro lado, deve-se pensar que talvez seja positivo por fim nessas situações precárias, com pagamento de indenização garantido ao atual prestador (§5º do art. 42 da Lei 11.445/2007), e com delegação dos serviços para um novo operador, limpando passivos regulatórios e permitindo maior controle das metas. Essa transferência – que não é trivial – deveria ser objeto de discussão profunda para definição de critérios de indenização e de todo o processamento de nova delegação. Aqui sim parece estar algo essencial, cujos contornos seguem alijados das batalhas travadas até o momento. 

Por fim, o terceiro exemplo tem relação com a possibilidade de prestação direta, por equiparação, de uma empresa estadual quando os serviços de saneamento forem organizados dentro de regiões metropolitanas, aglomerações urbanas e microrregiões. Esta questão está dentro de uma discussão que já dura anos após o julgamento da ADIn 1842 no STF, visto que existem diversas ADIns questionando cada modelo de regionalização que apareceu nos últimos 10 anos. O ponto central, contudo, parece seguir residindo nas mesmas perguntas: O que o Brasil deseja como federalismo de cooperação? Há avocação de competências constitucionais no caso de interesse comum? Ou a competência segue com os municípios que tão somente precisam discutir seu exercício com outros entes? É possível existir o exercício por equiparação de titularidade? 

O essencial para superar as dúvidas hoje em discussão no modelo da Paraíba é retomar essas perguntas mais simples, dado que os julgados do STF e a legislação existente nitidamente não detiveram o condão de esclarecer como se dá a questão da titularidade nos casos regionalizados. Talvez dar um passo para trás aqui permita dois passos para frente depois. 

Os maiores perigos da guerra de trincheiras no saneamento parecem estar nas manobras abruptas que acabam por driblar as linhas de argumentação, mediante verdadeiro ataque relâmpago ao ordenamento jurídico, afastando o debate verdadeiro e causando novos fronts de combate cujo deslinde possivelmente tardará a dar as respostas que a população precisa. É dizer, prejudica-se a universalização, aumentando cada vez mais a probabilidade de revisão das metas hoje fixadas para 2033. 

Deve-se obter o quanto antes um armistício desta guerra, com julgamento célere das demandas sub judice e aprofundamento em debate parlamentar, plural e democrático daquilo que efetivamente é essencial. E o importante precisa ser sempre o usuário com direito à universalização.

*Fernando Bernardi Gallacci é sócio do SouzaOkawa Advogados.
O iNFRADebate é o espaço de artigos da Agência iNFRA com opiniões de seus atores que não refletem necessariamente o pensamento da Agência iNFRA, sendo de total responsabilidade do autor as informações, juízos de valor e conceitos descritos no texto.

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