Marina Zago* e Mariana Avelar**
Os títulos verdes (“green bonds”) são importantes instrumentos de captação privada de recursos financeiros para projetos sustentáveis do ponto de vista ambiental e social (quando são chamados de “social bonds”).
O conceito de títulos verdes é amplo e comporta uma variedade de instrumentos, juridicamente delineados ou não. Este artigo tem por objetivo apresentar o atual estado da arte da regulamentação do tema no contexto brasileiro, com enfoque no segmento de geração de energia renovável.
Regulamentação dos green bonds
A regulamentação dos títulos verdes no direito brasileiro tem como principal antecedente o incentivo a projetos de infraestrutura ou de produção econômica intensiva em pesquisa, desenvolvimento e inovação.
Trata-se da Lei 12.431/2011, que regulamentou a emissão incentivada de alguns títulos (debêntures incentivadas, certificados de recebíveis imobiliários e cotas de emissão de fundo de investimento em direitos creditórios) com vistas a captar recursos para financiar projetos considerados como prioritários pelo Poder Executivo federal. Como principal incentivo para emissão desses títulos, a lei reduziu as alíquotas do imposto de renda a 0% para pessoas físicas e a 15% para pessoas jurídicas.
A regulamentação inicial dessa legislação ocorreu com o Decreto 7.603/2011, posteriormente revogado pelo Decreto 8.874/2016.
Em sua redação original, o Decreto 8.874/2016 previa uma relação exemplificativa dos setores em que os projetos de investimento poderiam ser considerados prioritários para emitirem os títulos incentivados. Determinava, ainda, que poderiam ser prioritários apenas projetos (i) executados mediante concessão, permissão, arrendamento, autorização ou parceria público-privada, concessão, permissão ou autorização; ou, alternativamente, (ii) que fossem considerados como relevantes pelo ministério competente.
Green bonds para projetos de energia renovável
Especificamente em relação aos projetos de energia, e ainda na vigência da redação original do Decreto 8.874/2016, o Ministério de Minas e Energia (MME) emitiu a Portaria 364/2017, trazendo os requisitos para enquadrar os projetos como prioritários. Nesses parâmetros, foram contemplados projetos de geração de energia, independentemente da fonte empregada, desde que tenham sido objeto de outorga por meio de concessão ou autorização. Até setembro deste ano, o MME havia aprovado 1.084 projetos prioritários no setor de energia.
Assim, por um lado, projetos de geração centralizada baseados em fontes renováveis já eram comtemplados pela norma ministerial, fazendo a conexão direta entre títulos verdes e os incentivos previstos pela Lei 12.431; por outro, a necessidade de outorga (concessão, permissão ou autorização) afastaria, em princípio, projetos de GD (geração distribuída, que apenas passam por procedimento específico de acesso às redes das distribuidoras.
Recentemente, foi editado o Decreto 10.387/2020, que modificou o Decreto 8.874/2016, visando expandir a abrangência do que se considera “projetos prioritários”, que passou a alcançar projetos “que proporcionem benefícios ambientais ou sociais relevantes”. Consolidou-se, com essa alteração, o incentivo regulatório aos títulos verdes incentivados.
O Decreto de 2020 ainda explicitou o que se entende por projetos que proporcionam benefícios ambientais ou sociais relevantes, indicando expressamente como prioritários projetos de geração solar, eólica, PCHs (pequenas centrais hidrelétricas) e a partir de resíduos sólidos.
Houve avanço ao se definir critérios para que projetos de energia fossem enquadrados como prioritários. Entretanto, a modificação suscitou dúvidas sobre se, realmente, foi ampliado o universo de projetos de infraestrutura que poderiam se beneficiar dos títulos incentivados para alcançar projetos que apesar de proporcionarem benefícios relevantes não estavam compreendidos pela antiga redação. Exemplo disso são os projetos de GD.
A dúvida sobre o enquadramento da GD em alguma das três hipóteses do Decreto 8.874/2016 ocorre pois projetos que não são objeto de outorga continuam dependentes da análise de seu enquadramento pelo ministério responsável e a portaria ministerial existente ainda permanece restrita a projetos objeto de outorga do poder público.
PL 2.646: debêntures verdes incentivadas
Além da regulamentação existente, há perspectiva de ampliação das modalidades de fomento aos títulos verdes, por meio do Projeto de Lei 2.646/2020 (relator deputado Arnaldo Jardim), que tem por objeto criar novos instrumentos de investimento e aperfeiçoar outros já existentes, como fundos de investimento em infraestrutura.
Dentre outros aspectos, a proposta trata da debênture verde de infraestrutura (art. 6º). Para isso, aperfeiçoa o incentivo tributário existente ao emissor desses títulos, especificamente, a dedução do valor de juros incorridos do imposto de renda e da CSLL (Contribuição Social sobre o Lucro), além da redução da base de cálculo da CSLL, conforme abordado por Raquel Lamboglia Guimarães e Nicole Katarivas.
Para projetos ligados ao desenvolvimento sustentável, o incentivo é ainda maior: 20% a mais na exclusão dos juros pagos da base de cálculo da CSLL. Mas o PL exige que o projeto em questão seja certificado nacional ou internacionalmente caracterizando o título mobiliário como um título verde.
Próximos passos
A regulamentação nacional já deu um passo no sentido de incentivar os green bonds, mas há, ainda, um vasto campo a ser explorado. Ainda podem ser cogitados novos mecanismos de fomento, inclusive a outros títulos de captação de recursos privados, bem como a simplificação de procedimentos para a emissão desses títulos.
A previsão legal expressa dos títulos verdes incentivados pode e deve ser complementada pelo movimento legislativo já em curso. A criação das debêntures verdes de infraestrutura, conforme previsto no PL 2.646, sujeitas a regras e incentivos tributários próprios, pode ser mais um passo rumo a mecanismos de financiamento criativos e arrojados destinados à consolidação de uma economia baseada em projetos social e ambientalmente adequados.
Podem ser criados novos procedimentos que simplifiquem a emissão desses títulos – inclusive no âmbito da CVM (Comissão de Valores Mobiliários) – sem, contudo, perder de vista a necessidade de bom enquadramento desses projetos, afastando o risco do “greenwashing”. Estudos já foram feitos, ouvindo o mercado, quanto a novos possíveis incentivos e simplificações. É o caso do estudo “O Mercado Emergente de Finanças Verdes no Brasil”, do Laboratório de Inovação Financeira (LAB).
Eis, enfim, a nova realidade dos investimentos privados: daqui em diante, não se pode ignorar os parâmetros ambientais, sociais e de governança, parâmetros “ESG”, na sigla em inglês, na formação de carteiras e portfólios de projetos investidos. A regulação dos green bonds deve pegar carona nessa caminhada cada vez mais acelerada, e, esperamos, sem volta, fazendo convergir os interesses do capital privado com a busca por uma matriz energética mais limpa e sustentável.